84 - RUA. EXTERIOR. NOITE.
Carioca sai do Bar do Campo, seguido de Chicão e de Preto. Entram no corcel. Preto atrás, com Chicão, e Carioca dirigindo. Carioca liga o motor e o corcel arranca, cantando pneu.
85 - RUA. EXTERIOR. NOITE.
Eduardo e Helena caminham de mãos dadas, continuando o clima da seqüência 73. Cruzam com Laurentina e Jussara e, pouco depois, com Janaína e Marilene, e, mais adiante, com Prisciliana e Geralda. Mas, como aconteceu nas seqüências anteriores, nenhuma delas parece ver Helena.
86 - ADRO DOS PROFETAS. EXTERIOR. NOITE.
Eduardo e Helena entram no adro e param no patamar das escadas que descem para o Largo dos Passos da Via-sacra.
EDUARDO
- Eu te quero, Helena! Te quero muito!
HELENA
- Se você me quisesse, mesmo, Eduardo, já teria me encontrado.
EDUARDO
- Mas eu te encontrei!
HELENA
- Não. Você não me encontrou. Eu (frisa a palavra eu) é que te encontrei.
EDUARDO (Carinhoso)
- E me prendeu.
HELENA
- Não. Eu não te prendi.
EDUARDO (Mesmo tom)
- Eu não
HELENA
- Quem é preso, asfixia, Eduardo. Só quem se prende acaba solto.
Eduardo abraça Helena.
EDUARDO
- Mas eu te amo, Helena!
HELENA (Suave)
- Então, não me prende.
Eduardo olha Helena, confuso, e deixa cair os braços.
HELENA (Sorrindo)
- Deixa que eu me prenda.
Helena abraça Eduardo e beija-o. É um beijo de entrega total. A câmera faz um giro em volta dos dois e fixa-se na estátua do Profeta Abdias, apontando o dedo para o céu.
87 - CASA COLONIAL. SALA PRINCIPAL. INTERIOR. NOITE.
Maria Germana diverte-se no meio de um grupo. Ulysses aproxima-se, hesitante.
ULYSSES
- Escuta...
Maria Germana pára de dançar e olha Ulysses, rindo.
MARIA GERMANA
- Quem é você? (Cínica.) A litania mal cantada, que não tem colo?
ULYSSES
- Maria Germana, por favor...
MARIA GERMANA (Continuando)
- Como é mesmo? Ah! Em arte, quem não sabe, ensina. Quem sabe, faz.
Maria Germana olha à volta e, com um gesto largo, mostra o ambiente.
MARIA GERMANA (Sorrindo, sarcástica)
- Como você pode ver, aqui todo mundo é artista. Todo mundo faz.
ULYSSES (Implorando)
- Por favor.
MARIA GERMANA (Com força)
- Deixa de ser criança, Ulysses!
Ulysses puxa Maria Germana por um braço, com força.
ULYSSES
- Maria Germana!
MARIA GERMANA
- Quê que você quer? Outra foda?
Maria Germana, num gesto brusco, solta-se.
MARIA GERMANA
- Colo, eu não tenho.
ULYSSES (Vencido)
- Maria Germana, escuta...
MARIA GERMANA (Seca)
- Eu já dei que podia dar. Talvez dê de novo, se você for a São Paulo. Agora...
ULYSSES (Vencido)
- Mas você me...
MARIA GERMANA (Cortando)
- Ulysses, criança é minha filha. Ela é que ainda precisa de colo, tá?
Maria Germana afasta-se de Ulysses.
MARIA GERMANA
- Tchau. Apareça por São Paulo e talvez eu repita a dose, ok?
Ulysses fica parado, imóvel, confuso com aquela inversão de comportamento.
88 - RUA. EXTERIOR. NOITE.
O corcel de Carioca e Preto em alta velocidade, os faróis varrendo a escuridão.
89 - CORCEL. INTERIOR. NOITE.
Close do rosto de Carioca, dirigindo, tenso, mas, satisfeito. Na banco traseiro, os rostos de Preto e Chicão, imersos na penumbra.
90 - COLONIAL HOTEL. INTERIOR. NOITE.
Eduardo e Helena entram, de mão dadas, e dirigem-se à Recepção. Eduardo usa a mesma roupa da seqüência 86. O Recepcionista age como se não visse Helena.
RECEPCIONISTA
- Boa noite, Dr. Eduardo.
EDUARDO
- Boa noite. O 6, por favor.
RECEPCIONISTA
- Tem um recado pro senhor.
EDUARDO
- De quem?
RECEPCIONISTA
- Do Dr. Fábio.
O Recepcionista entrega a chave e o recado a Eduardo.
HELENA (A Eduardo, ao mesmo tempo)
- Quem?
EDUARDO (Com indiferença)
- Um engenheiro aí.
RECEPCIONISTA (Ao mesmo tempo)
- E ele também pediu que...
Eduardo guarda o recado no bolso, sem ler, e pega a chave.
EDUARDO (Cortando)
- Boa noite.
RECEPCIONISTA
- Mas, Dr. Eduardo...
Eduardo não responde. Pega a mão de Helena e ambos se afastam em direção às escadas. O Recepcionista encolhe os ombros e faz um trejeito de desdém com os lábios.
91 - CASA COLONIAL. INTERIOR. NOITE.
A festa continua, cada vez mais animada e frenética. Ulysses, parado junto do vão de uma janela, ainda confuso, como no final da seqüência 87, olha Maria Germana, dançando no meio de um grupo. Ulysses sente-se, mais do que nunca, um estrangeiro. Mas, apesar disso, ainda se nota no seu olhar, permeado pelo desespero e pela angústia, uma réstea de esperança. E é essa esperança que o obriga, ainda que irracionalmente, ele sabe, a permanecer naquela festa. Uma Drag Queen, espalhafatosa, aproxima-se de Ulysses, com grandes gestos afetados.
DRAG QUEEN
- Mas tão sozinho, amor?!? Vem comigo! Ah, vem, eu dou tudo que você quiser!
Tenta agarrar Ulysses, mas tropeça na roda do vestido e quase cai. Ulysses afasta-se, o rosto crispado, denotando não só espanto mas, também, e muito marcadamente, o arrependimento de estar ali, naquele momento. Sem saber o que fazer, mas ainda agarrado àquela réstea de esperança, àquele desejo de que Maria Germana se arrependa e volte para ele, Ulysses começa andando pela casa. A câmera acompanha-o. Sem destino, Ulysses entra num corredor. Um pouco à frente, um jovem, gay, nu, chorando, esmurra uma porta.
GAY 1
- Eu me mato, viu!? Eu me mato!
A porta abre-se e aparece outro gay, mais velho, também nu.
GAY 2
- Pode matar! Mata mesmo!
Ulysses passa e escuta-se o barulho da porta, batida com força. Ulysses aproxima-se de um vão que parece ser a porta de um banheiro. Pára, como avaliando a necessidade de urinar, e abre a porta. A porta range. Ulysses vai entrar, mas pára. A câmera segue o olhar de Ulysses. Uma mulher com ar de total indiferença, debruçada na pia e vestida, deixa-se enrabar por um homem. O homem volta-se, sem parar os movimentos. A mulher continua indiferente.
HOMEM
- Quê que há? Nunca viu, não, porra!?!
Ulysses fecha a porta, num gesto rápido. Uma moça nua passa junto dele, correndo, e arrasta-o. Pegado de surpresa, Ulysses deixa-se levar. A moça abre uma porta e empurra Ulysses para dentro de um quarto. Diversas mulheres e homens, todos nus e sentados à volta de uma mesa-de-cabeceira, cheiram cocaína. No vão da janela, duas mulheres atracam-se e gemem alto. A moça mostra, com um gesto triunfante, um saquinho plástico cheio de pó. Um homem pega o saquinho e despeja-o no tampo da mesa-de-cabeceira. Ao mesmo tempo, a moça aponta Ulysses.
MOÇA (Gritando)
- Gente! Peguei um marciano!
Todos olham Ulysses, menos as lésbicas, e uma mulher tenta levantar-se.
MULHER
- Me dá ele! Eu quero ele!
A mulher não consegue levantar-se e cai por cima da mesa-de-cabeceira, espalhando as carreiras de pó. Tumulto. Todos gritam e tentam aproveitar o pó espalhado no chão. Ulysses sai do quarto e entra em outro corredor, com diversas janelas e uma porta no fundo. Ulysses pára junto de uma das janelas e olha para fora. A escuridão é total e no vidro apenas se reflete o rosto de Ulysses, pontilhado pelo brilho distante das estrelas. Ulysses tenta abrir a janela, mas não consegue. Fica imóvel durante alguns instantes e, voltando-se, olha a porta, no fundo. O barulho da festa, amortecido pela distância, é bem menor. Ulysses começa andando, pára junto da porta, volta-se e olha o corredor, e, de repente, como que tomado por uma resolução súbita, abre a porta, num gesto brusco. A câmera segue o olhar de Ulysses. A primeira imagem que Ulysses vê é a si mesmo, refletido num espelho que cobre a parede fronteira, entre duas janelas, onde estão escritas, com batom, algumas palavras. Vinda de dentro do quarto, escuta-se uma voz monocórdica entoar o que aprece ser uma ladainha ou um poema. Ulysses, parado na porta, fixa os olhos nas palavras escritas no espelho.
ODE METAMARÍTIMA
NAVEGAR ONDE?
EU NÃO SEI NAVEGAR, MERDA!
A assinatura é apenas um rabisco ilegível. Ulysses sorri e, pela primeira vez, parece descontrair-se. Ao mesmo tempo, a voz torna-se mais audível, embora ainda não se compreendam as palavras. Ulysses entra no quarto, sem fechar a porta. Sentada na cama, embrulhada num lençol, completamente imóvel e absorta, como se estivesse drogada ou em êxtase, uma mulher declama um poema. Ulysses aproxima-se e as palavras tornam-se compreensiveis.
DECLAMADORA
- O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
A Declamadora faz uma pausa, como se tentasse lembrar-se do resto do poema. Fica calada algum tempo e, de repente, ri. Corta para Ulysses, olhando a Declamadora, não só espantado, mas também fascinado. Corta para a Declamadora, que pára de rir e continua o poema.
DECLAMADORA
- Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O Rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele, está só ao pé dele.(1)
Como que exausta pelo esforço, a Declamadora cala-se e deixa-se cair na cama. O lençol abre e vê-se que está nua. Ulysses aproxima-se, mas a Declamadora não o olha, nem se mexe. Ulysses ajeita-lhe o lençol sobre o corpo e olha o quarto. Numa das paredes, portas de vidro, fechadas, deixam ver uma varanda, lá fora. Ulysses começa andando. Ao passar pelo espelho, Ulysses pára e lê, mais uma vez, as palavras escritas e, vagarosamente, dirige-se para as portas de vidro.
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