38 - CASA DA TIA PRISCILIANA. QUINTAL. EXTERIOR. DIA.
Ulysses, Marcos e Silviano, tomam café no quintal, após o almoço. A cena tem um clima fortemente bucólico. A câmera, após dar uma panorâmica do ambiente, aproxima-se e a conversa fica audível.
ULYSSES (Acendendo um cigarro)
- Sabe? Tem hora que eu... Sei lá. Tudo que eu quis da vida, eu consegui. As minhas teses sobre Barroco correm mundo, mestrado na USP, doutorado na Sorbonne... Enfim, tudo que eu quis, eu consegui. Só que não era o que eu queria. Era o que eu pensava que queria, mas não era o que eu queria. O que eu queria, mesmo...
Ulysses cala-se e, por instantes, fixa o olhar num ponto qualquer, fora de cena. De repente, puxa uma tragada profunda e sopra o fumo com força.
ULYSSES
- Sabe? Até agora eu só caguei teorias. O fato de eu dizer que, até no seu mais profundo sofrimento, o nosso Aleijadinho deixou estampada a marca do seu prazer, por ser um criador, nada acrescenta à sua obra. Nada Mas é só isso que eu sei fazer. Cagar teorias.
Ulysses cala-se e, novamente, fixa o olhar num ponto qualquer, fora de cena. Fica assim alguns instantes e abana a cabeça com força.
ULYSSES
- O que me angustia, entende?, é essa cagação. De mim nada restará. Eu não sou um criador. Até os meus filhos, parece que nem fui eu que os criei. Dois não falam comigo e um mal me conhece.
Silviano mexe-se e quer interromper. Marcos faz um gesto rápido e Silviano imobiliza-se.
ULYSSES
- Tem muita gente por aí que me inveja. E eu fico pensando: esses bostas são mais felizes do que eu. Sabe por quê? Porque não invejam o que eu invejo. O que eu invejo...
Ulysses cala-se e olha à volta. A câmera segue o olhar de Ulysses, mostrando a mangueira, a gangorra, os mamoeiros, o paiol, a goiabeira, o poleiro das galinhas, etc.
VOZ DE ULYSSES
- O que eu invejo é isto.
Corta para Ulysses.
ULYSSES
- Estas raízes.
Ulysses puxa uma tragada profunda e, num gesto brusco, joga o cigarro no chão.
ULYSSES
- Estas raízes, Silviano, que eu nunca soube plantar.
39 - AÇOMINAS. PÁTIO. EXTERIOR. DIA.
Eduardo, com capacete, mas usando a roupa com que chegou, e Fábio, vestido com uniforme de trabalho, saem da usina de fundição e andam em direção ao escritório.
EDUARDO
- Você entendeu o problema? Questão de lógica, meu caro. Mera questão de lógica. Se um mecanismo foi montado para dar um determinado resultado e não dá, o problema não é do mecanismo. O problema é de quem montou o mecanismo, entendeu? As coisas são o que são e, fora disto, não há mais o que fazer.
Eduardo pára e Fábio pára também.
EDUARDO
- Só que as pessoas têm medo e passam a vida acendendo velas pra Deus e pro Diabo. Como se Deus ou o Diabo pudessem fazer alguma coisa.
Eduardo cala-se e olha o pátio deserto durante alguns instantes.
EDUARDO
- Se houvesse mais racionalismo e menos improvisação, tudo seria bem mais simples. Pão era pão e queijo era queijo, e o resto era só resto, entendeu? (Sorri e bate uma palmada leve no ombro de Fábio) Mas chega de teorias.
Eduardo começa andando e Fábio acompanha-o.
EDUARDO
- Teorias só prestam, sabe pra quem? Pros analistas. Eles é que ganham dinheiro com besteiras. Algum programa pra logo mais?
FÁBIO
- Talvez sair com Marilene, a minha noiva.
EDUARDO (Rindo)
- Talvez?
FÁBIO (Rindo também)
- É. Se ela me escutasse, me xingava. Dr. Eduardo, por quê que o senhor não vem com a gente, hem?
EDUARDO
- E será que eu não vou...
FÁBIO (Enfático)
- Mas claro que não! Será um prazer, pôxa!
EDUARDO
- Tá bom. Então, eu aceito. E onde vocês tão pensando...
FÁBIO
- Talvez no...
EDUARDO (Rindo)
- Talvez?
FÁBIO (Sorrindo, encabulado)
- É o meu jeito. A gente sempre vai no Bar do Campo. Se o senhor quiser, nós podemos passar no hotel e...
EDUARDO
- Pra quê passar no hotel?
FÁBIO
- É que o senhor ainda não conhece...
EDUARDO (Cortando, superior)
- Eu encontrarei esse Bar do Campo, não se preocupe. Já encontrei coisas muito mais difíceis.
Continuam andando e entram no escritório.
40 - CASA DE BOSCO. QUARTO DELE. INTERIOR. DIA.
Paredes nuas, pintadas de branco, um guarda-roupa velho, uma cama de ferro e uma mesa-de-cabeceira. A porta abre e entra Geralda. Bosco entra atrás dela e olha o quarto, espantado. O ambiente parece mais hospitalar do que familiar.
GERALDA
- Você gostou? Seu pai não queria nem limpar. Mas eu pedi a Fábio e ele arrumou um moço que pintou.
Bosco, calado, continua olhando as paredes brancas e nuas.
GERALDA (Apreensiva)
- Não gostou, não?
Bosco continua calado.
VOZ DE BOSCO
- Só morrendo se pode responder.
GERALDA (Tentando amenizar)
- Foi o médico que falou. Lembra, quando ele perguntou como era o seu quarto?
BOSCO
- Cadê...
GERALDA
- Cadê o quê, meu filho?
BOSCO
- Os meus livros.
GERALDA
- Ah, meu filho...
BOSCO (Ao mesmo tempo)
- Quem que...
GERALDA (Continuando)
- ...quando o moço veio pintar, precisou tirar, e eu dei prá biblioteca lá da escola.
Bosco tapa o rosto com as mãos.
VOZ DE BOSCO
- Não é dando que se recebe!
GERALDA
- Meu fi...
BOSCO (Cortando, brusco)
- Me deixa, mãe. Me deixa!
GERALDA
- Bos...
BOSCO (Gritando)
- Mãe!
Geralda sai. Bosco senta-se na beira da cama e olha a parede onde devia estar a estante com os livros.
VOZ DE BOSCO
- Só Deus deve matar. Mas se eu tiver um filho, ele também vai poder matar. Me matar.
A parede começa a movimentar-se e, na textura, aparecem os contornos de uma figura humana. Bosco levanta-se de um salto e bate na parede. A figura esquiva-se e, de repente, agarra Bosco com violência. |