33 - CASA DE BOSCO. SALA. INTERIOR. DIA.
Jussara e Marilene continuam conversando.
MARILENE
- Ah, Jussara! Às vezes, até parece...
JUSSARA (Agressiva)
- Parece, o quê?
Marilene não responde.
JUSSARA (Mesmo tom)
- Parece, o quê? Diz. Diz o quê que parece!
Marilene continua sem responder.
JUSSARA (Cínica)
- Sabe o quê que parece?
Marilene continua calada.
JUSSARA (Com força)
- Parece que é você que tá a fim! Ou pensa que eu não sei?!
Neste momento a porta abre e entram Antônio e Ulysses. Corta para Antônio e Ulysses, entrando.
ANTÔNIO
- Mas, então, se o amigo não veio passar férias, só pode ter vindo, mesmo, é matar saudades. Ou não?
ULYSSES (Embaraçado)
- É. Quer dizer, não é bem isso, mas...
Vê-se Marilene sorrir do embaraço de Ulysses. Ulysses nota e cala-se. Antônio puxa uma cadeira.
ANTÔNIO
- Vamos sentar. Vamos sentar.
Ulysses senta-se, constrangido.
ANTÔNIO
- Jussara, minha filha, arruma um cafézinho.
ULYSSES
- Não, não. Muito obrigado.
ANTÔNIO (Fazendo o gesto característico)
- Nem uma... Tenho uma aí...
ULYSSES
- Não. Não. Muito obrigado.
ANTÔNIO
- Bom. Como diz o outro, gosto é gosto, e já não tá mais aqui quem falou.
Antônio puxa uma cadeira e senta-se.
ANTÔNIO
- Mas quer dizer, então, que o amigo, desta vez, só veio, mesmo, matar saudades...
ULYSSES
- É. Quer dizer...
ANTÔNIO (Cortando)
- Eu só perguntei porque, muito raro, o amigo aparece por aqui.
ULYSSES
- É. Já faz tempo, mesmo, que...
ANTÔNIO (Continuando)
- Eu imagino o que seja a vida por lá. Aquele corre-corre, aqueles tiros, aquela...
Neste momento, a porta abre, com estrondo, e entra Janaína, esbaforida.
JANAÍNA (Ofegando)
- Seu Antônio! Seu Antônio! Mijaram no santinho e deram cabo dele!
ANTÔNIO (Com espanto)
- Mi...
JANAÍNA (Ao mesmo tempo e mesmo tom)
- No santo lá do trevo, Seu Antônio!
Antônio abre a boca, mas não consegue falar, de tão espantado.
JUSSARA
- Credo, Janaína!
MARILENE
- Meu Deus!
JANAÍNA
- O Senhor me perdoe se peco, mas aquele desgraçado merece, mesmo, é penar nas profundas do inferno! Saiu do carro, mijou no santo e acabou com ele a tiros!
Todos se olham, chocados. Só Ulysses não se choca. Antes pelo contrário, esconde um sorriso, como se o susto dos outros amenizasse o seu constrangimento.
ANTÔNIO (Procurando refazer-se)
- E quando que...
JANAÍNA
- Agora, agora, Seu Antônio! Ai, que susto que eu levei, meu Deus do céu!
JUSSARA
- Janaína, você tem certeza?
JANAÍNA
- Claro que eu tenho! Eu vi, Jussara! Eu vi e a meninada também viu! Primeiro, mijou no santo, e, depois, foi aquela assombração!
Antônio, trêmulo, levanta-se, num gesto brusco.
ANTÔNIO
- Só matando! Só matando mesmo!
JUSSARA
- Credo, meu pai!
ANTÔNIO (A Ulysses)
- Eu sou contra qualquer tipo de violência, o senhor me conhece. Mas, numa hora destas...
ULYSSES
- Mas aquela estátua...
ANTÔNIO (Cortando, enfático)
- Meu amigo, pra quem tem fé...
Neste momento, a porta abre e entra Geralda.
GERALDA (Sem reparar em Ulysses)
- Antônio, Bosco chegou.
Geralda volta-se e puxa Bosco pela mão.
GERALDA
- Entra, meu filho, e peça a benção a seu pai.
Corta para Bosco, parado na porta, olhando o pai fixamente. Passa-se algum tempo e Bosco dá um passo. Nota-se a ansiedade estampada no seu rosto.
BOSCO
- Pai...
ANTÔNIO (Brusco, a Ulysses)
- Com licença.
Antônio passa por Bosco, com passos rápidos e sai, sem o olhar. Geralda nota Ulysses, olhando para Bosco, e fica sem saber o que dizer, totalmente constrangida. Ulysses, também constrangido, dirige-se para a porta.
34 - CASA DA TIA PRISCILIANA. COZINHA. INTERIOR. DIA
Prisciliana e Laurentina preparam o almoço num fogão a lenha. Ulysses, sentado num banco, fuma e olha as duas. Prisciliana mexe dentro de uma panela com uma colher de pau. Nota-se, pelo seu comportamento, que Laurentina sempre gostou de Ulysses. Ainda que furtivamente, não pára de olhar para ele.
PRISCILIANA (Provando o conteúdo da panela)
- Mas que idéia foi essa de vir de ônibus, meu filho? Um homem como você, agora, andar de ônibus? Isso é lá coisa que se faça, Ulysses?
Prisciliana prova outra vez o conteúdo da panela, joga duas pitadas de sal dentro e olha Ulysses.
PRISCILIANA
- Brigou com a Ziza, foi?
ULYSSES
- Ah, tia, que Ziza, que nada! Ziza já tá é...
PRISCILIANA (Com espanto)
- Ziza, o quê?
ULYSSES
- A gente separou, tia. E Ziza casou até com um grande amigo meu. Mas, o ônibus, fui eu que quis. Me deu vontade. Fazia anos que não andava mais de ônibus, entende?
LAURENTINA
- Esses ônibus são um perigo, Ulysses!
ULYSSES
- Perigo, nada, Laurentina. Avião também cai. E, além do mais, desta vez, eu...
Ulysses cala-se, de repente, e fixa os olhos no fogão. Fica assim alguns instantes, respira fundo e olha Prisciliana, já sorrindo.
ULYSSES
- Tia, a senhora lembra como é que eu saí daqui, há trinta anos? Foi de ônibus. E vou lhe dizer mais. Nunca mais esqueci aquele ônibus. Até hoje...
PRISCILIANA
- Mas, naquele tempo, você ainda era rapaz, Ulysses.
ULYSSES
- Tia, tia! A gente só envelhece quando esquece!
PRISCILIANA
- Mesmo assim. E, depois, também devia ter avisado que vinha. (A Laurentina.) Ficava aqui, como ficou das outras vezes. (A Ulysses.) A casa não mudou, não, viu?
LAURENTINA
- Ah, mãe, a senhora conhece Ulysses. Sempre foi de repentes.
ULYSSES
- Os repentes é que fazem a gente se sentir vivo, Laurentina. Se você soubesse como é que é a vida de professor... Todo mundo pensa que é um paraíso, mas só a gente é que sabe, viu?
Ulysses cala-se. Levanta-se e anda até à janela. Joga o cigarro fora e olha a rua durante alguns instantes.
PRISCILIANA
- Ulysses...
Ulysses continua olhando a rua, sem escutar. Prisciliana olha Laurentina e sorri, num gesto cúmplice.
ULYSSES
- Tia. Tia!
PRISCILIANA
- O que foi, meu filho?
ULYSSES
- Vem cá! Vem cá! Rápido!
Prisciliana e Laurentina correm para a janela. Com gestos nervosos, Ulysses aponta alguém na rua. A câmera segue o olhar de Ulysses. É uma mulher. Close rápido do rosto.
ULYSSES
- Quem é? Parece que eu conheço. E parece que ela também me conheceu. Pelo menos, me olhou de um jeito... Quem é, hem?
PRISCILIANA
- Você já esqueceu, Ulysses?
LAURENTINA
- É Darcília.
ULYSSES (Tentando lembrar)
- Darcília?
PRISCILIANA
- A sua primeira namorada, meu filho.
LAURENTINA (Com ênfase)
- Já tem até filhos homens, Ulysses!
Ulysses não diz nada. Prisciliana e Laurentina olham-no. O rosto está vincado e uma melancolia enorme toma conta dele. |