111 - CASA COLONIAL. VARANDA. EXTERIOR. DIA.
Ulysses acorda deitado no chão, vestido. Estonteado, abre e fecha os olhos, passa as mãos no rosto e olha à volta, como se procurasse recordar onde está. Fica assim algum tempo e levanta-se, resmungando um palavrão. Amparando-se no parapeito, olha o jardim, deserto, batido pelo sol. Volta-se e olha o interior do quarto, através das portas de vidro. A câmera segue o olhar de Ulysses. O quarto está vazio. Ulysses encosta-se no parapeito e olha, alternadamente, o interior do quarto e o jardim. De repente, abana a cabeça com força e dá uma palmada no parapeito.
ULYSSES
- Eu sou um idiota!
112 - RUA. EXTERIOR. DIA.
Ulysses sai do portão da casa colonial, que parece sem ninguém. Pára na calçada e olha a rua, deserta, à sua frente. A câmera segue o olhar de Ulysses até o fim da rua. Um carro aparece na esquina, vindo na direção de Ulysses. Ulysses continua imóvel. O carro aproxima-se, abrandando a marcha e pára. A câmera enquadra o carro pelo lado do carona.
VOZ DE MULHER
- Perdido, é?
Ulysses não se mexe, nem responde.
113 - RUA. EXTERIOR. DIA.
A câmera enquadra o carro pelo lado da motorista. Uma mulher desconhecida está debruçada na janela. Close do rosto. É a mesma artista que faz Helena. Mas usando outro figurino e apresentando outro visual.
MULHER DESCONHECIDA
- Perdido ou...
A Mulher Desconhecida olha a casa colonial durante alguns instantes, depois olha Ulysses e sorri.
MULHER DESCONHECIDA
- Carona?
Ulysses encolhe os ombros, sem responder.
MULHER DESCONHECIDA
- Pra onde?
ULYSSES (Indiferente)
- Qualquer lugar.
MULHER DESCONHECIDA (Rindo)
- Jóia!
A Mulher Desconhecida abre a porta do lado do carona. Ulysses desce da calçada e entra no carro.
114 - RUA. EXTERIOR. DIA.
O carro da Mulher Desconhecida arranca, cantando pneu.
115 - CARRO. INTERIOR. DIA.
Ulysses, calado e rígido no assento, olha a rua através do pára-brisa.
MULHER DESCONHECIDA (Irônica)
- Assustado?
Ulysses não responde.
MULHER DESCONHECIDA
- Parece.
Ulysses continua calado. A Mulher Desconhecida ri.
MULHER DESCONHECIDA
- Medo de correr ou...
Ulysses olha a Mulher Desconhecida, ainda sem responder.
MULHER DESCONHECIDA (Rindo)
- Tô vendo que é ou mesmo.
Ulysses continua olhando a Mulher Desconhecida, sempre calado.
MULHER DESCONHECIDA
- Mas não se preocupe. Todo mundo é ou. Pelo menos, uma vez na vida.
ULYSSES (Como se pensasse em voz alta)
- A merda é que eu fui sempre.
MULHER DESCONHECIDA (Rindo)
- Tá melhorando.
ULYSSES (Alheio)
- O quê?
MULHER DESCONHECIDA
- Você.
ULYSSES (Ainda alheio)
- Melhorando?
MULHER DESCONHECIDA
- Não tá, não? Pra um ou, que aceita uma carona e me diz, qualquer lugar, só pode tar melhorando.
Ulysses ri.
MULHER DESCONHECIDA
- Tá vendo como tá melhorando?
ULYSSES
- Se fosse assim tão fácil...
MULHER DESCONHECIDA
- É sempre fácil. A gente é que pensa que é difícil.
Ulysses não responde.
MULHER DESCONHECIDA
- E sabe por quê? Porque, o difícil, é a gente aceitar que é fácil. Um sujeito como você, assim circunspecto, sempre preocupado com opiniões, encharcado de valores e de certezas, de repente, olha prá frente e quê que vê? Nada. (Incisiva.) Mostre seu pé!
ULYSSES (Com espanto)
- Como você sabe...
MULHER DESCONHECIDA
- Mostre seu pé.
ULYSSES
- Mas como é que você sabe que eu sou assim?
MULHER DESCONHECIDA (Incisiva)
- Mostre!
Ulysses, meio sem jeito, levanta o pé direito. A Mulher Desconhecida ri.
MULHER DESCONHECIDA
- Tá vendo como é redondo?
Ulysses, rápido, esconde o pé.
MULHER DESCONHECIDA
- De tanto você andar à volta, o seu pé virou um círculo. Quer ver o meu?
A Mulher Desconhecida mostra o pé direito a Ulysses.
MULHER DESCONHECIDA
- Tá vendo? Reto, reto. Por isso, você acha que é difícil. De tanto andar à volta, você já nem sabe botar um pé na frente do outro.
ULYSSES (Com um certo azedume)
- E você nunca andou à volta, não?
MULHER DESCONHECIDA
- Claro! Quem não anda? Mas não deixo arredondar. Quando começa entortando, vupt! Pulo a cerca e, ó... Por quê que você também não pula, hem?
ULYSSES
- Pular o quê?
MULHER DESCONHECIDA (Rindo)
- A cerca do que você é.
ULYSSES (Amargo)
- Eu já não sou mais nada.
A Mulher Desconhecida olha Ulysses, como que avaliando tudo que foi dito.
MULHER DESCONHECIDA
- Se não é mais nada, então tá esperando o quê? Morrer?
116 - RUA. EXTERIOR. DIA.
Bosco corre pela rua, arfando, aos tropeções. Close da mão fechada. Nota-se a luz verde brilhar por entre os dedos crispados.
VOZ DE BOSCO
- Eu quero! Eu quero! Eu sou substantivo!
117 - RUA. EXTERIOR. DIA.
O carro da Mulher Desconhecida aproxima-se do Trevo de Congonhas, em direção à Rodovia 040. Ao passar pela estátua do Profeta Habacuc, quebrada pelos tiros de Preto, vê-se a cabeça de Ulysses aparecer na janela. Close do rosto. Ulysses ri, olhando a estátua.
118 - RODOVIA 040. EXTERIOR. DIA.
O carro da Mulher Desconhecida entra na rodovia e segue.
119 - CARRO. INTERIOR. DIA.
Ulysses fuma, recostado no assento. A Mulher Desconhecida olha-o e sorri.
MULHER DESCONHECIDA
- Pra onde você disse que ia mesmo?
ULYSSES (Sorrindo)
- Qualquer lugar. Eu já não lhe disse?
MULHER DESCONHECIDA
- Eu não tinha escutado bem.
ULYSSES
- E, agora? Escutou?
MULHER DESCONHECIDA
- Agora, escutei.
A Mulher Desconhecida olha Ulysses, dá-lhe uma palmada no joelho e ri.
MULHER DESCONHECIDA
- E você também escutou.
Ulysses joga o cigarro pela janela, ajeita-se no assento, e fecha os olhos, sorrindo.
ULYSSES
- E como escutei!
120 - RODOVIA 040. EXTERIOR. DIA.
Plano geral do carro da Mulher Desconhecida, sumindo na estrada. Ao fundo uma tabuleta. A mesma da seqüência 104. Quando o carro se aproxima, lê-se: RIO DE JANEIRO.
121 - CASA DE BOSCO. SALA. INTERIOR. MANHÃ.
A família está tomando o café da manhã. Antônio, Geralda, Jussara e Fábio. Antônio é o único que não participa da conversa. A câmera aproxima-se e a conversa fica audível.
FÁBIO
- Mas, viu, mamãe? Se a senhora não me diz que Bosco falou na cachoeira...
JUSSARA
- Bosco foi na cachoeira ontem?
GERALDA
- Foi. Eu bem que lhe disse pra não ir, mas ele...
FÁBIO
- Bosco tá ruim mesmo, Jussara. Você sabe o quê que ele falou, quando eu disse pra ele vir, que mamãe tava esperando?
Jussara olha Fábio, agressiva. Fábio faz de conta que não nota o olhar de Jussara.
FÁBIO (Continuando)
- Que não tá nem aí, vê se pode!
GERALDA
- Coitado do meu filho.
Antônio pára de comer e olha Geralda.
ANTÔNIO
- Esse vagabundo não tem mais jeito, não. Agora, só botando na cadeia. (Com força.) Ou matando!
Geralda abre a boca, mas não fala. Assustada, aponta o canto da sala, atrás de Antônio e dá um grito.
GERALDA
- Ai, meu Deus!
Todos se voltam e olham o canto. Um sapo enorme olha fixamente Antônio. Mas só Geralda consegue vê-lo.
FÁBIO
- Quê que foi, mamãe?
JUSSARA (Ao mesmo tempo)
- Mãe!
Com gestos de horror, Geralda aponta o canto e grita.
GERALDA
- Ele tá lá! Ele tá lá!
FÁBIO
- Não tem nada ali, não, mamãe!
GERALDA
- Tem, sim! Eu tô vendo!
JUSSARA
- Mãe...
ANTÔNIO (Ao mesmo tempo)
- Também ficou louca, mulher?
Neste momento, a porta abre, com estrondo, e entra Bosco. Corta para Bosco, entrando. Todos se calam, olhando para ele. Bosco olha um por um, durante algum tempo, e dirige-se para o canto onde está o sapo. Pára junto dele e abre a mão, e a pedra verde brilha intensamente. Geralda tapa o rosto com as mãos, como se a luz a cegasse. Bosco coloca a pedra verde em cima da cabeça do sapo e abre as pernas e os braços, os pés fincados, firmemente, no chão.
VOZ DE BOSCO (Gritando, num eco)
- Pra quem tá no centro da Terra a distância é sempre a mesma!
Todos vêem o sapo e gritam horrorizados. A pedra brilha cada vez mais e o sapo começa inchando. E, quanto mais a pedra brilha, mais o sapo incha. E incha tanto que, de repente, explode. Do meio da explosão começam aparecendo, desconexas, pequenas e rápidas cenas das narrativas, até que o filme pega fogo e queima, e a tela fica branca.
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