CUNHA DE LEIRADELLA
O CIRCO DAS
QUALIDADES HUMANAS



Longa metragem

INDEX

Nota preliminar
Narrativas
Personagens (ordem alfabética)
Figuração
Perfil dos personagens

ROTEIRO:

01-15
16-18
19-25
26-32
33-34
35-37
38-40

41-43
44-45
46-50
51-58
59-62
63-67
68-70

71-72
73-79
80-83
84-91
92-101
102-110
111-121

 

111 - CASA COLONIAL. VARANDA. EXTERIOR. DIA.

 

Ulysses acorda deitado no chão, vestido. Estonteado, abre e fecha os olhos, passa as mãos no rosto e olha à volta, como se procurasse recordar onde está. Fica assim algum tempo e levanta-se, resmungando um palavrão. Amparando-se no parapeito, olha o jardim, deserto, batido pelo sol. Volta-se e olha o interior do quarto, através das portas de vidro. A câmera segue o olhar de Ulysses. O quarto está vazio. Ulysses encosta-se no parapeito e olha, alternadamente, o interior do quarto e o jardim. De repente, abana a cabeça com força e dá uma palmada no parapeito.

 

ULYSSES

- Eu sou um idiota!

 

112 - RUA. EXTERIOR. DIA.

 

Ulysses sai do portão da casa colonial, que parece sem ninguém. Pára na calçada e olha a rua, deserta, à sua frente. A câmera segue o olhar de Ulysses até o fim da rua. Um carro aparece na esquina, vindo na direção de Ulysses. Ulysses continua imóvel. O carro aproxima-se, abrandando a marcha e pára. A câmera enquadra o carro pelo lado do carona.

 

VOZ DE MULHER

- Perdido, é?

 

Ulysses não se mexe, nem responde.

 

113 - RUA. EXTERIOR. DIA.

 

A câmera enquadra o carro pelo lado da motorista. Uma mulher desconhecida está debruçada na janela. Close do rosto. É a mesma artista que faz Helena. Mas usando outro figurino e apresentando outro visual.

 

MULHER DESCONHECIDA

- Perdido ou...

 

A Mulher Desconhecida olha a casa colonial durante alguns instantes, depois olha Ulysses e sorri.

 

MULHER DESCONHECIDA

- Carona?

 

Ulysses encolhe os ombros, sem responder.

 

MULHER DESCONHECIDA

- Pra onde?

ULYSSES (Indiferente)

- Qualquer lugar.

MULHER DESCONHECIDA (Rindo)

- Jóia!

 

A Mulher Desconhecida abre a porta do lado do carona. Ulysses desce da calçada e entra no carro.

 

114 - RUA. EXTERIOR. DIA.

 

O carro da Mulher Desconhecida arranca, cantando pneu.

 

115 - CARRO. INTERIOR. DIA.

 

Ulysses, calado e rígido no assento, olha a rua através do pára-brisa.

 

MULHER DESCONHECIDA (Irônica)

- Assustado?

 

Ulysses não responde.

 

MULHER DESCONHECIDA

- Parece.

 

Ulysses continua calado. A Mulher Desconhecida ri.

 

MULHER DESCONHECIDA

- Medo de correr ou...

 

Ulysses olha a Mulher Desconhecida, ainda sem responder.

 

MULHER DESCONHECIDA (Rindo)

- Tô vendo que é ou mesmo.

 

Ulysses continua olhando a Mulher Desconhecida, sempre calado.

 

MULHER DESCONHECIDA

- Mas não se preocupe. Todo mundo é ou. Pelo menos, uma vez na vida.

ULYSSES (Como se pensasse em voz alta)

- A merda é que eu fui sempre.

MULHER DESCONHECIDA (Rindo)

- Tá melhorando.

ULYSSES (Alheio)

- O quê?

MULHER DESCONHECIDA

- Você.

ULYSSES (Ainda alheio)

- Melhorando?

MULHER DESCONHECIDA

- Não tá, não? Pra um ou, que aceita uma carona e me diz, qualquer lugar, só pode tar melhorando.

 

Ulysses ri.

 

MULHER DESCONHECIDA

- Tá vendo como tá melhorando?

ULYSSES

- Se fosse assim tão fácil...

MULHER DESCONHECIDA

- É sempre fácil. A gente é que pensa que é difícil.

 

Ulysses não responde.

 

MULHER DESCONHECIDA

- E sabe por quê? Porque, o difícil, é a gente aceitar que é fácil. Um sujeito como você, assim circunspecto, sempre preocupado com opiniões, encharcado de valores e de certezas, de repente, olha prá frente e quê que vê? Nada. (Incisiva.) Mostre seu pé!

ULYSSES (Com espanto)

- Como você sabe...

MULHER DESCONHECIDA

- Mostre seu pé.

ULYSSES

- Mas como é que você sabe que eu sou assim?

MULHER DESCONHECIDA (Incisiva)

- Mostre!

 

Ulysses, meio sem jeito, levanta o pé direito. A Mulher Desconhecida ri.

 

MULHER DESCONHECIDA

- Tá vendo como é redondo?

 

Ulysses, rápido, esconde o pé.

 

MULHER DESCONHECIDA

- De tanto você andar à volta, o seu pé virou um círculo. Quer ver o meu?

 

A Mulher Desconhecida mostra o pé direito a Ulysses.

 

MULHER DESCONHECIDA

- Tá vendo? Reto, reto. Por isso, você acha que é difícil. De tanto andar à volta, você já nem sabe botar um pé na frente do outro.

ULYSSES (Com um certo azedume)

- E você nunca andou à volta, não?

MULHER DESCONHECIDA

- Claro! Quem não anda? Mas não deixo arredondar. Quando começa entortando, vupt! Pulo a cerca e, ó... Por quê que você também não pula, hem?

ULYSSES

- Pular o quê?

MULHER DESCONHECIDA (Rindo)

- A cerca do que você é.

ULYSSES (Amargo)

- Eu já não sou mais nada.

 

A Mulher Desconhecida olha Ulysses, como que avaliando tudo que foi dito.

 

MULHER DESCONHECIDA

- Se não é mais nada, então tá esperando o quê? Morrer?

 

116 - RUA. EXTERIOR. DIA.

 

Bosco corre pela rua, arfando, aos tropeções. Close da mão fechada. Nota-se a luz verde brilhar por entre os dedos crispados.

 

VOZ DE BOSCO

- Eu quero! Eu quero! Eu sou substantivo!

 

117 - RUA. EXTERIOR. DIA.

 

O carro da Mulher Desconhecida aproxima-se do Trevo de Congonhas, em direção à Rodovia 040. Ao passar pela estátua do Profeta Habacuc, quebrada pelos tiros de Preto, vê-se a cabeça de Ulysses aparecer na janela. Close do rosto. Ulysses ri, olhando a estátua.

 

118 - RODOVIA 040. EXTERIOR. DIA.

 

O carro da Mulher Desconhecida entra na rodovia e segue.

 

119 - CARRO. INTERIOR. DIA.

 

Ulysses fuma, recostado no assento. A Mulher Desconhecida olha-o e sorri.

 

MULHER DESCONHECIDA

- Pra onde você disse que ia mesmo?

ULYSSES (Sorrindo)

- Qualquer lugar. Eu já não lhe disse?

MULHER DESCONHECIDA

- Eu não tinha escutado bem.

ULYSSES

- E, agora? Escutou?

MULHER DESCONHECIDA

- Agora, escutei.

 

A Mulher Desconhecida olha Ulysses, dá-lhe uma palmada no joelho e ri.

 

MULHER DESCONHECIDA

- E você também escutou.

 

Ulysses joga o cigarro pela janela, ajeita-se no assento, e fecha os olhos, sorrindo.

 

ULYSSES

- E como escutei!

 

120 - RODOVIA 040. EXTERIOR. DIA.

 

Plano geral do carro da Mulher Desconhecida, sumindo na estrada. Ao fundo uma tabuleta. A mesma da seqüência 104. Quando o carro se aproxima, lê-se: RIO DE JANEIRO.

 

121 - CASA DE BOSCO. SALA. INTERIOR. MANHÃ.

 

A família está tomando o café da manhã. Antônio, Geralda, Jussara e Fábio. Antônio é o único que não participa da conversa. A câmera aproxima-se e a conversa fica audível.

 

FÁBIO

- Mas, viu, mamãe? Se a senhora não me diz que Bosco falou na cachoeira...

JUSSARA

- Bosco foi na cachoeira ontem?

GERALDA

- Foi. Eu bem que lhe disse pra não ir, mas ele...

FÁBIO

- Bosco tá ruim mesmo, Jussara. Você sabe o quê que ele falou, quando eu disse pra ele vir, que mamãe tava esperando?

 

Jussara olha Fábio, agressiva. Fábio faz de conta que não nota o olhar de Jussara.

 

FÁBIO (Continuando)

- Que não tá nem aí, vê se pode!

GERALDA

- Coitado do meu filho.

 

Antônio pára de comer e olha Geralda.

 

ANTÔNIO

- Esse vagabundo não tem mais jeito, não. Agora, só botando na cadeia. (Com força.) Ou matando!

 

Geralda abre a boca, mas não fala. Assustada, aponta o canto da sala, atrás de Antônio e dá um grito.

 

GERALDA

- Ai, meu Deus!

 

Todos se voltam e olham o canto. Um sapo enorme olha fixamente Antônio. Mas só Geralda consegue vê-lo.

 

FÁBIO

- Quê que foi, mamãe?

JUSSARA (Ao mesmo tempo)

- Mãe!

 

Com gestos de horror, Geralda aponta o canto e grita.

 

GERALDA

- Ele tá lá! Ele tá lá!

FÁBIO

- Não tem nada ali, não, mamãe!

GERALDA

- Tem, sim! Eu tô vendo!

JUSSARA

- Mãe...

ANTÔNIO (Ao mesmo tempo)

- Também ficou louca, mulher?

 

Neste momento, a porta abre, com estrondo, e entra Bosco. Corta para Bosco, entrando. Todos se calam, olhando para ele. Bosco olha um por um, durante algum tempo, e dirige-se para o canto onde está o sapo. Pára junto dele e abre a mão, e a pedra verde brilha intensamente. Geralda tapa o rosto com as mãos, como se a luz a cegasse. Bosco coloca a pedra verde em cima da cabeça do sapo e abre as pernas e os braços, os pés fincados, firmemente, no chão.

 

VOZ DE BOSCO (Gritando, num eco)

- Pra quem tá no centro da Terra a distância é sempre a mesma!

 

Todos vêem o sapo e gritam horrorizados. A pedra brilha cada vez mais e o sapo começa inchando. E, quanto mais a pedra brilha, mais o sapo incha. E incha tanto que, de repente, explode. Do meio da explosão começam aparecendo, desconexas, pequenas e rápidas cenas das narrativas, até que o filme pega fogo e queima, e a tela fica branca.