35 - CASA DE BOSCO. SALA. INTERIOR. DIA.
Bosco está junto da mesa, ainda olhando a porta por onde saíram Antônio e Ulysses. Jussara, imóvel, olha Bosco, fixamente. Marilene, nervosa, também o olha, embora tente disfarçar.
GERALDA
- Meu filho...
Bosco não responde.
VOZ DE BOSCO
- Anúncio de jornal. Aulas de silêncio. Ligue para nós e não pense. Cale-se!
GERALDA
- Bosco...
Bosco sai, de repente, num gesto brusco.
36 - CASA DA TIA PRISCILIANA. SALA. INTERIOR. DIA
Sentados à mesa, Ulysses, Marcos e Silviano almoçam. Prisciliana e Laurentina entram e saem, servindo as comidas e as bebidas. Os três amigos conversam e riem.
ULYSSES
- Essa não, Marcos! Você, ex-prefeito de Congonhas?!
MARCOS
- Quê que eu podia fazer? Nem tudo pode ser perfeito, uai.
ULYSSES
- E os profetas deixaram um comunista roxo...
SILVIANO (Ao mesmo tempo)
- Ex-comunista roxo.
ULYSSES (Continuando)
- ...governar a corte celestial?
SILVIANO (A Ulysses)
- Os Boris e os Clintons não são compadres? Nós somos irmãos. Ou não?
MARCOS (Rindo e apontando Silviano)
- E ele aproveitou o parentesco pra virar capitalista.
SILVIANO (Rindo e apontando Marcos)
- E ele pra se eleger.
ULYSSES (Rindo)
- Só eu não sou irmão de ninguém. Não sou politico, nem capitalista.
Os três ainda riem, quando entra Laurentina com uma garrafa de vinho.
ULYSSES
- Pra mim, não, Laurentina. Prefiro continuar com a loirinha.
Laurentina serve Marcos e Silviano.
MARCOS
- Se bem me lembro, nos nossos tempos de Belo Horizonte, você nunca desprezou.
SILVIANO
- E como!
ULYSSES
- Não. Realmente, não. Mas, depois de vinte anos de Rio, já viu.
SILVIANO (Irônico)
- Apurou o paladar, mestre?
ULYSSES
- Nada. Desaprendi
MARCOS
- E lá fora, hem? Duvido! Duvido, viu?, Dr. José Ulysses de Almeida, digníssimo comedor da virginada mundial!
ULYSSES
- Mas isso é lá fora, meu querido. Lá fora, sabe como é, la noblesse oblige.
SILVIANO
- Lambão!
Os três riem.
MARCOS
- Mas me diga, sô. Que raio de trovoada foi essa, que trouxe você até Congonhas, hem? Se bem me lembro, faz mais de cinco anos que...
SILVIANO
- Saudade dos amigos ou das antigas namoradas, hem?
MARCOS (Com espanto)
- Namo...
SILVIANO (Cortando)
- Bestando, sô?! Descasado, quê que você quer que ele faça, hem? (A Ulysses.) Darcília ainda tá, ó...
Ulysses, de repente, parece alhear-se da conversa.
MARCOS (Cutucando o braço de Ulysses)
- Quê que há, sô? Pensando na morte da bezerra?
ULYSSES
- Nada.
MARCOS
- Ah, Ulysses, deixa disso!
ULYSSES
- Sério. Só tava me lembrando da gente em Belo Horizonte, naquele tempo.
MARCOS
- Das missas dançantes do Minas Tênis e das putinhas enrustidas do Sion?
SILVIANO
- E dos porres do Pelicano e do Monjolo? (Com voz empostada.) Bezerrada, o negócio é o seguinte. O preço da égua é cento e vinte e aqui não tem paguinte.
Marcos e Silviano riem. Ulysses, sério, abana a cabeça.
ULYSSES
- Se eu pudesse voltar atrás...
MARCOS
- E pra quê? Voltar atrás...
ULYSSES
- Tô falando sério, Marcos. Pelo menos, não taria, agora, me questionando.
SILVIANO
- Questionando? Mas questionando o quê? Não ter levado porrada no DOPS? Eu também não levei, e não tô nem aí. Ulysses, essa coisada já passou. Já morreu. E, o pior, é que não resolveu merda nenhuma. Quem se danou, danou, e quem mamou, mamou.
ULYSSES
- Eu sei disso, Silviano.
SILVIANO
- Então?!
ULYSSES
- Mas, mesmo assim... Olha, uma coisa eu digo a você, Silviano. Se a gente não volta ao passado, nem que seja só pra lamentar o que não fez, a gente se fica sem raízes, entendeu?
MARCOS
- Foi isso que trouxe você a Congonhas? Ulysses...
SILVIANO (Ao mesmo tempo, rindo)
- E logo num ônibus da Cometa? Danou-se!
Ulysses não responde.
MARCOS
- Ulysses...
ULYSSES (Como se pensasse em voz alta)
- Foi num ônibus da Cometa que eu saí de Belo Horizonte, há mais de vinte anos.
37 - BAR DO CAMPO. INTERIOR. DIA.
Carioca e Preto entram. É um bar típico de cidade do interior. Garrafas de bebidas baratas nas prateleiras e vidros com balas e doces em cima do balcão, junto da caixa. No fundo, uma mesa de sinuca. O bar está vazio. Só dois bêbados bebem, num canto do balcão. Jofre está junto da caixa. Preto encosta-se no balcão, perto de Jofre.
PRETO
- Ô, porra...
JOFRE
- Eu não sou po...
PRETO (Cortando)
- Tu num é o quê?
JOFRE (Enfático)
- Meu nome é Jofre.
PRETO (A Carioca, rindo)
- Tu tá vendo? Essa porra tem nome.
CARIOCA (A Jofre)
- Duas branquinhas. Mas da boa.
PRETO
- Cadê o portuga?
JOFRE
- Portu...
PRETO (Cortando)
- É. O dono desta porra.
JOFRE
- Não é portuga. Chama Seu Nilo.
PRETO
- Seu Nilo? (A Carioca) O porra num é portuga, não?
JOFRE (Digno)
- Chama Seu Nilo.
CARIOCA
- A gente quer falar cum ele.
PRETO
- Que horas que...
JOFRE
- Não tem hora, não. Às vezes...
Preto agarra Jofre pela gola da camisa.
PRETO
- Num tem hora?
CARIOCA (A Preto)
- Ô...
Preto larga Jofre, que olha Carioca, tremendo. Carioca sorri e encolhe os ombros, como quem diz, não liga, e aponta a mesa de sinuca.
CARIOCA
- Dá prá gente... O meu amigo Preto é meio invocado, mas é gente boa.
PRETO
- Mas num dá bandeira, não. Senão, ó...
Preto abre a camisa e mostra o revólver na cintura. Jofre serve as cachaças, pega a caixa das bolas, debaixo do balcão, e entrega-a a Carioca.
CARIOCA (Bebendo)
- Quando esse tal de Seu Nilo chegar, diz que a gente quer falar cum ele.
PRETO (Bebendo)
- Mas se cuida, malandro. Se cuida. A gente num tem nada contra tu. (Frisando a palavra.) Ainda.
Carioca e Preto dirigem-se para a mesa de sinuca. Preto rindo e gingando o corpo, e Carioca, atrás, olhando Jofre. |