Nesse combate para ser, viver em paz, a procura de raízes vitais da cultura popular e da alma profunda e viva do povo português, esquecida, oprimida, silenciada, tem grande importância no que devemos a José Afonso. É a experiência viva de uma verdade profunda e vasta. Gandhi chamou à não-violência a força ou adesão à verdade, a procura de verdade, experimentada no combate diário de libertação de tudo o que dela nos afasta. José Afonso procura, na sua poesia cantada, averdade e a justiça com meios não -violentos, uma nova dimensão que pode neutralizar a violência, a injustiça, o abuso.
Para esse novo caminho, é preciso mudar de direcção e saber como dirigir energias e esforços. Em “A Formiga no carreiro” (Venham mais cinco), impregnada da linguagem e de humor popular, a “formiga”, que desenvolve trabalho com muito esforço, convida todo o formigueiro a mudar de rumo. “mudem de rumo, mudem de rumo”.., pois “já lá vem outro carreiro” , a esperança de mudar de rumo.
Na belíssima canção “Coro da Primavera” (Cantigas do Maio), é o amor a nova semente que acompanhará a intrepidez na luta. A imagem da semente e do acto de “semear” tem implícita a ideia de profunda riqueza simbólica, humana e espiritual.:
Venham lavradeiras
Mondadeiras
Deste campo em flor
Venham enlaçadas
De mãos dadas
Semear o amor
Essa nova semente de amor e fraternidade fortalece a intrepidez, a perda do medo, quando se tem tanto medo do medo. José Afonso faz um convite renovado para se perder o medo e se adquirir a força da intrepidez, segundo Gandhi, uma das maiores e mais nobres qualidades do espírito humano que só se adquire pela prática.
Neste novo caminho que é também procura de fraternidade, união entre os homens, procura de verdade, José Afonso convida a juventude e o seu povo à amizade universal, sem fronteiras, em “Traz outro amigo também” (Traz outro amigo também) e à fraternidade com todos os seres humanos e da natureza:
Amigo maior que o pensamento
Por essa estrada amigo vem
Não percas tempo que o vento
É teu amigo também
( “Traz outro amigo também”)
Grândola vila morena
Terra de fraternidade
( “Grândola vila morena”,
Cantigas do Maio)
irmã cotovia
(“Que amor não me engana”.
Venham mais cinco)
Entre os animais que brevemente mencionámos do bestiário da poesia de José Afonso, figuram a toupeira e a hidra, a propósito da verdade profunda e penetrante que procura. A toupeira que perfura a terra; a hidra que é símbolo dos vícios e é convidada a dizer a verdade:
Eu vou ser como a toupeira
Que esburaca
Ó hidra, diz-me a verdade
Nua e crua
(“Eu vou ser como a toupeira”)
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