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Helena Langrouva
JOSÉ AFONSO

JOSÉ AFONSO E A POESIA POPULAR PORTUGUESA CANTADA BREVE SÍNTESE TEMÁTICA
De 1964 a 1977

Introdução
O canto popular aprendido com o povo
Cantos de trabalho
Os cantos de festa
A poesia cantada de José Afonso
A mulher do povo
As heroínas populares
A VIDA QUOTIDIANA
A emigração
As conversas no campo
A vida quotidiana na cidade
Elegia e tomada de consciência de Portugal nos anos 60
A morte, a violência e a injustiça
A agonia, as trevas, a indiferença
A nostalgia, a ignorância de si próprio e a anquilose
A procura de libertação
A procura de intrepidez, de verdade, de não-violência
Os símbolos de purificação: a madrugada, a água, a brisa, o vento e o fogo: “Canto Moço”
O lugar santo (“locus sanctus”) da luz e da paz: “Tecto do mendigo”
E todo o resto que é imenso
BIBLIOGRAFIA - DISCOGRAFIA

Introdução

Este texto é a tradução adaptada e resumida do texto de uma aula que eu dei, em Março de 1978, em língua francesa, na Universidade de Paris III (La Sorbonne Nouvelle), numa sessão integrada nos seminários do Diplôme d’Études Approfondies en Études Portugaises et Brésiliennes, regidos pelo Professor Raymond Cantel, para um público francófono que, com o Professor Cantel, muito bem o acolheu. Trata-se de um documento dessa época que agora trazemos a público, pedindo desculpa ao leitor por nos faltar uma folha do nosso manuscrito (num passo indicado entre parêntesis, no corpo deste texto). Foi um dos meus modos de dar a reconhecer, há cerca de trinta anos, que a obra de José Afonso deveria ser objecto de estudo e aprofundamento dos portugueses e, em particular, nas universidades.

Tendo o nosso leitorado terminado em 1979, não tendo sido possível integrar a sua poesia no ensino superior, em Portugal - nos programas de literatura dos séculos XV e XVI que me foram confiadas -, só entre 1982 e 1984 é que tive uma oportunidade de a introduzir, com sucesso, na experiência que procurei ter no ensino do ciclo preparatório, na escola C+S de Colares, Sintra. Equiparada a bolseira pelo Ministério da Educação e Cultura, tinha de apresentar projectos de investigação enquadráveis nas áreas relacionadas com os programas de literatura de todos os graus de ensino. Depois de ter terminado a actividade docente, foram anos de combate para publicar quatro dos meus livros, trabalhei durante um ano no livro de Homenagem a Luís de Sousa Rebelo, o Professor que melhor reconheceu o meu modo de trabalhar em Literatura Portuguesa dos séculos XV e XVI; foi tempo de praticar um pouco mais de artes. A meditação sobre a poesia de José Afonso, a beleza e profundidade das suas canções têm feito parte da minha vida. Procurei encontrar-me com José Afonso em Abril de 1978 e no verão de 78, em diálogos que posteriormente se prolongaram até ao final da sua obra editada em disco e em livro e até alguns meses antes da sua morte, em1987. Pediram-me há pouco tempo para ampliar o meu trabalho para publicação.

Tentamos neste texto de breve síntese temática, apresentar, de modo um pouco esquemático – agradecendo a compreensão do leitor, por se tratar de um texto para uma aula -, os predominantes núcleos temáticos da poesia aprendida com o povo português - através de recolhas e arranjos - e da poesia criada por José Afonso, mais relacionada com a poesia popular portuguesa, editada de 1964 a 1977. Em 1978 assinava os meus trabalhos com o nome Helena Santos.

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José Afonso nasceu em Aveiro, a 2 de Agosto de 1929 [ e morreu em 23 de Fevereiro de 1987, em Setúbal]. Viveu períodos da sua infância e da sua idade adulta em Angola e Moçambique, por razões familiares, e como professor do ensino secundário. Licenciou-se em Filosofia na Universidade de Coimbra, leccionou de 1952 a 1967, tendo percorrido cidades e vilas de Portugal. Desde 1967 até ao fim da sua vida dedicou-se inteiramente à poesia cantada, como cantautor. É um dos maiores génios da música popular portuguesa, com um lugar de relevo no panorama internacional.

Em Coimbra começou por cantar nas “serenatas” temas de exaltação sentimental, afastadas da realidade quotidiana em Portugal, o que considera “longe da vida”:

Cantava-se na rua

E em toda a parte

Longe da vida

Perto da ansiedade

( “Fui ao enterro de um leão”,

in José Afonso, Textos eCanções,

coordenação de Viale Moutinho, Porto,

Livraria Paisagem, 1975, p.187)

Edmundo Bettencourt tinha introduzido, no seu repertório que cantava em Coimbra, melodias populares da Beira Baixa e dos Açores. José Afonso, consciente de uma certa decadência da canção portuguesa, na cidade e nos meios populares, seguiu a iniciativa de Edmundo Bettencourt. Na canção “Balada de Outono” ( Baladas e Canções) despede-se do fado de Coimbra que esperava não voltar a cantar, por estar longe da vida – “águas das fontes, calai,/ó ribeiras chorai/ que eu não volto a cantar”.

Nos anos 70 são raros os estudos sobre a canção popular portuguesa como manifestação do génio do povo português.-Fernando Lopes Graça publicara em 1953 A canção popular portuguesa em livro, Michel Giacometti publicou discos de recolhas que se esgotaram - , tendo-se explorado a caricatura do pitoresco popular, o lucro comercial ou o excesso de interferências ideológicas na apreciação de canções ditas populares. O conceito de “popular” é muito abrangente e não é nosso propósito espraiarmos considerações teóricas.

A procura fulcral de José Afonso consiste em educar o gosto do público e em convidá-lo a retomar as suas raízes e a sua identidade, esquecida na noite dos tempos. Nos seus poemas cantados – baladas e cantigas – procura ser fiel não só às tradições da música popular espontânea, mas também à tradição da poesia lírica portuguesa de tradição popular. Além dos seus poemas cantados, retomou directamente cantos populares de trabalho e de festa, de Portugal e dos Açores, fez arranjos musicais a partir de canções populares. Aproximou-se da poesia neo-realista, pela expressão de algumas formas de aviltamento do quotidiano.

José Afonso compôs música para textos de poetas portugueses, da Idade Média aos nossos dias: “Bailia” de Aires Nunes (Contos Velhos Rumos Novos); “Endechas a Bárbara escrava” (Cantares do Andarilho) e “Verdes são os campos” (Traz outro amigo também) de Camões; “No comboio descendente” (Eu vou ser como a toupeira) de Fernando Pessoa; “Epígrafe para a arte de furtar “ de Jorge de Sena (Traz outro amigo também); “Cantares do Andarilho” (Cantares do Andarilho) de António Quadros; “ A cidade” de Ary dos Santos, “Era de noite e levaram” de L. Andrade e “Qualquer dia” de Miguel Bernardes (Contos Velhos Rumos Novos). Encontramos na poesia de José Afonso ecos do surrealismo francês e da poesia de Walt Whitman, que não incluiremos neste breve síntese temática por não estarem directamente relacionadas com a tradição popular que predominantemente nos ocupa nesta abordagem.

Encontramos na obra de José Afonso uma unidade perfeita entre a música e os poemas. Durante anos ele compunha a música antes de escrever os poemas até mais tarde fazer o inverso. A sua música tem a simplicidade de algumas melodias ibéricas e de cantos mediterrânicos, com interferências rítmicas sobretudo africanas.

Quer pela sua criação vivificante de palavra e música, quer pela reprodução dos cantares do povo, quer pelos arranjos musicais, o que confere unidade à sua obra plurifacetada é a procura de verdade, a procura de identidade essencial do povo português e do seu génio criador de valores universais. A sua poesia é profundamente portuguesa e universal. Ele é criador de uma nova forma de comunicação da palavra e do canto que a vivifica, retomando a tradição dos aedos e dos trovadores, as origens ancestrais da poesia que era sempre cantada, imprimindo-lhe uma notável importância cultural, estética e social. No Prefácio à edição de Cantares ficou escrito: “ o seu dom reside no sentido pessoalíssimo como sabe auscultar a alma do povo e explorar expressivamente os mais ricos mananciais da sua cultura. Ao ouvi-lo, somos possuídos por algo novo e que ao mesmo tempo sentimos como familiar”.

Quando estamos longe de Portugal e procuramos uma voz que cante a nossa identidade é a voz e a canção de José Afonso que mais nos ajuda a procurá-la, a reencontrá-la, e muito nos ajuda para uma nova pedagogia da língua e da cultura portuguesas, como nos é dado experimentar nos anos do nosso leitorado em França, na Universidade de Rouen.