Há quem pretenda que vestígios da antiga ROT, em tempos relativamente recentes, se poderiam descobrir neste ou naquele lugar, neste ou naquele grupo, como lemos por exemplo em René Guénon sobre uma corporação feminina de épinglières (alfineteiras), no século XVIII, em França, que se teria vinculado em compagnonnage (Guénon II-1992, 24-nota) ou em J. Leite de Vasconcelos ao referir, em livro publicado em 1913, que «no Alto-Minho as tecedeiras invocam como sua advogada a Senhora da Enderença, e em Trás-os-Montes a Senhora das Dores»: estas Senhoras seriam o substituto cristão da deusa Minerva, padroeira do fiar e do tecer (Vasconcelos III-1913, 572-nota 3).
A referência a Minerva neste contexto lusitano é-nos testemunhada por S. Martinho de Dume, ou de Braga (518-579 d.C.), na sua obra De Correctione Rusticorum, um sermão que Martinho escreveu para combater as superstições rústicas da Galécia (Galiza e actual Minho) e que se nos revela precioso pelas informações que aduz sobre costumes e usos ancestrais da região. Aí diz Martinho, no § 16 do seu texto, que «voltaram ao culto diabólico» os que acreditam em adivinhações e agouros, festejam os ídolos, proferem palavras mágicas, etc. — e as tecedeiras que imploram a Minerva: «Mulieres in tela sua Minervam nominare et Veneris diem in nuptias observare et quo die in via exeatur adtendere, quid est aliud nisi cultura diaboli?» (Que as mulheres invoquem Minerva para urdir as suas telas, observem nas núpcias o dia de Vénus, e atendam ao dia em que se faz a viagem, que outra coisa é senão o culto do diabo?)
E por que é que as tecedeiras invocavam Minerva?
Trata-se duma tradição muito antiga já citada nos textos hebraicos do Antigo Testamento bíblico, os quais dão testemunho de tradições ainda mais antigas, talvez de origem egípcia e ugarítica, que teriam passado para a tradição hebraica e posteriormente para Grécia e Roma.
O Templo de Salomão foi decretado como único local de veneração a Jahvé, em todo o reino de Judá, pelo rei Josias (século VII a.C.). Depois de ter descoberto no Templo o Livro da Lei (que aparentemente desconhecia), Josias reformou o culto a fim de evitar as calamidades previstas pela profetisa Huldah (2 Reis 22, 1-20). Em consequência dessa descoberta do Livro da Lei, Josias mandou expulsar do Templo as Tecedeiras Sagradas, devotadas à deusa-Mãe Asherah. A mais antiga representação da deusa Asherah, esculpida numa caixa de marfim, foi encontrada nas escavações da antiga cidade de Ugarit (actual Ras Shamra), na Síria, e data do século XIV ou XIII a.C. Deusa semita de grande antiguidade, o seu nome completo significa «Aquela-Que-Se-Passeia-No-Mar». De acordo com textos escritos em caracteres cuneiformes ugaríticos, em tabuínhas de barro, o esposo de Asherah era o deus El (deus do céu, e depois Baal, «Senhor»), e foram progenitores de 70 deuses. A deusa da fertilidade e da regeneração Asherah é citada no Antigo Testamento bíblico (1 Reis 15, 13; 2 Crónicas 15, 16), e tem sido equiparada à deusa-padroeira das Tecedeiras Sagradas egípcias, hebraicas, cananitas, sírias, gregas e latinas, devotas de Neith-Asherah-Manevrah-Athena-Minerva…
Homero, na Odisseia, ao referir-se a Athena, deusa guerreira e sapiencial, diz em repetidos passos que era «hábil em primorosos lavores», referindo-se à arte de tecer em que a deusa era exímia e que tutelava. Athena — a quem os romanos chamavam Minerva — identificava-se, segundo Platão (Timeu, 20d), com a deusa Neith, uma das mais antigas da Líbia e do Egipto, também guerreira e tecedeira, misteriosa associação que une na mesma tessitura as estratégias rituais da sabedoria, do amor, do combate e da defesa do frágil corpo contra o assalto das energias negativas das «trevas exteriores», conforme já tivemos ocasião de realçar no capítulo anterior.
No Livro dos Mortos dos egípcios a deusa Neith — cujo nome significa «a que existe», ou a eterna — é invocada como a «Senhora de Saís» (Livro dos Mortos XLII, 7; CLXIII, 13), cidade que se tornou célebre pelos tecidos de linho que aí se fabricavam e onde a deusa tinha um oráculo e um templo admirável pela sua grandiosidade e riqueza, que fora mandado edificar pelo rei Ahmose I do Egipto, fundador da 18.ª dinastia. Um dos seus santuários era uma escola iniciática de sacerdotisas-tecedeiras, ou bordadoras, chamada Hait Monkhitu («Casa dos Panos»), e aí se urdiam e bordavam as vestes para adorno dos deuses e dos mortos.
Reza uma antiga tradição que os saítas, orgulhosos da importância e beleza dos seus tecidos e urdumes, expunham em especiais festas a estátua da deusa na figura duma mulher com uma lançadeira de tear na mão direita, e davam a esta imagem o apelativo de Manevrah, que significaria «ofício de tecelagem» — donde teria derivado o nome de Minerva. |