Uma antiga tradição hindu descreve-nos a existência duma Grande Muralha circular que envolve o mundo, protegendo-o contra as influências maléficas ou nefastas de origem «negra». Essa Grande Muralha é uma imensa montanha em forma de anel chamada Lokâloka — a montanha é o símbolo de união entre o céu e a terra —, e separa o cosmo (loka) das «trevas exteriores» (aloka), e no centro desse vastíssimo círculo protector ergue-se o monte Meru, símbolo axial do centro do mundo. Reza ainda a lenda que nos finais da Idade do Ferro (Kali-Yuga) — a nossa época — a Grande Muralha começará a abrir «rachas» através das quais se infiltrarão progressivamente as forças destrutivas das «trevas exteriores», que o mesmo é dizer, as influências satânicas e o reino do Anticristo (Guénon 1989, 163-166). O cosmo, portanto, é o lugar da luz — a palavra sanscrítica loka, que significa propriamente «lugar», tem a mesma raiz que o termo latino lux, lucis, «luz» —, e as trevas exteriores que o acometem (aloka) não são mais do que os invisíveis reinos infernais e purgatoriais a que os alquimistas da Idade Média e do Renascimento chamavam «mundo astral inferior». A conhecida expressão «trevas exteriores onde haverá choro e ranger de dentes» ocorre três vezes na Bíblia, e apenas no Evangelho de Mateus: no relato da cura do servo do centurião (Mateus 8, 5-13) e em duas parábolas sobre o Reino dos Céus (Mateus 22, 1-14; 25, 14-30).
De acordo com o preceito hermético quod est superius ut quod est inferius — como é em cima, assim é em baixo —, o mito da Grande Muralha circular que protege o Macrocosmo das influências malignas tem a sua contraparte microcósmica na «muralha» que o ser humano traça e erige na terra para se proteger, sendo que esta muralha é dupla, e executada em dois tipos de materiais, uns inertes, outros orgânicos:
— Em primeiro lugar: a muralha «de fora», feita basicamente a partir dos reinos minerais (pedra, tijolo, etc.) e é o edifício (templo, palácio, laboratório, casa, etc.);
— Em segundo lugar: a muralha «de dentro», feita a partir dos reinos vivos ou orgânicos (fios de origem vegetal: linho ou algodão, e fios de origem animal: lã ou seda), e é a veste que se usa junto ao corpo ou a tapeçaria que, no interior da casa, reforça a magia defensiva desta.
Temos assim que a primeira é da competência iniciática da Ordem Maçónica, ou Real Ordem dos Construtores (ROC), e a segunda compete à Ordem de Arachne, ou Real Ordem das Tecedeiras (ROT).
Ambas as Ordens vão beber os seus princípios na mesma Geometria Sagrada que confere o conhecimento dos traçados eficazes que tanto defendem o ser humano das intempéries físicas como das invisíveis energias negativas, conhecimento transmitido de boca a ouvido, de mestre a discípulo — ou de mestra a discípula.
A casa, de pedra bruta talhada em «pedra polida», ou melhor, em «pedra cúbica», constitui a primeira linha de defesa contra as «trevas exteriores», ao passo que a veste, tecida de delicados fios orgânicos, constitui a segunda barreira, mais fina mas não menos eficaz, aderente ao templo de Deus que é o corpo, no dizer de Paulo: «Não sabeis que sois templo de Deus, e o espírito de Deus habita em vós?» (1 Coríntios 3, 16).
O que é válido para a geometria arquitectónica da casa, é válido para o tecido. A urdidura dos seus fios, quer seja cruzando-se (cruz), quer entretecendo-se em espirais (labirinto), quer noutras formas, representa uma barreira e uma defesa, não só contra os inimigos físicos (calor, frio, humidade, animais, etc.), como sobretudo contra as influências psíquicas hostis: se os ritos secretos forem correctamente realizados, aquelas urdiduras serão dotadas com um real valor de protecção, e isto duplamente, não só impedindo que penetrem as influências maléficas do exterior, mas também que saiam e se dispersem as benéficas provindas do interior (Guénon 1962, 375).
É esta, pois — segundo as mais antigas tradições esotéricas do Ocidente —, a origem das Ordens iniciáticas que repercutem nos níveis somático e psíquico do ser humano, e que exigem iniciações diferenciadas segundo os sexos e as castas, em contraste com a Superior Iniciação Cristã, de carácter noético e pneumático, segundo a qual «já não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há varão nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus» (Gálatas 3, 28).
O ser humano, como lemos nas epístolas de Paulo (1 Tessalonicenses 5, 23), é um compósito de corpo (sôma), alma (psychê) e espírito (pneuma). Ora, as Iniciações da Antiga Aliança apenas repercutiam no corpo e na alma; em contrapartida, a Iniciação dos novos Mistérios Cristãos, mais elevada que as anteriores (Iniciação espiritual), deixou de ser sectorizada e abriu-se para ambos os sexos e para todas as castas e raças, e isso foi possível graças à Dispensação Crística acessível a todos — os tais «todos», como diz Paulo, que são «um em Cristo Jesus» —: no momento em que Jesus expirou na cruz, «o véu do Templo rasgou-se ao meio, de alto a baixo» (Mateus 27, 51; Marcos 15, 38; Lucas 23, 45), abrindo-se simbolicamente a passagem entre o Lugar Santo onde era queimado o incenso do serviço, e o sacratíssimo Santo dos Santos (Sanctum Sanctorum) onde se guardava a Arca da Aliança, pois era esse véu, descrito no livro do Êxodo, que separava e isolava aqueles dois compartimentos do santuário. Com essa abertura para a divina espiritualidade presencial (Shekhinah) residente na Arca da Aliança, a Iniciação cristã elevou-se espiritualmente em relação às antigas Iniciações:
— Elevou-se do corpo e alma (sôma e psychê) para a mente superior e espírito (noûs e pneuma).
O intelecto superior (noûs) e o espírito (pneuma) são idênticos tanto para o homem como para a mulher, mas os respectivos corpos (sôma) são polarmente diferentes, tais como as respectivas almas (psychê); assim, a ROC, ou Ordem dos Arquitectos-Maçons trabalhadores da pedra bruta (mineral), só podia ser integrada por homens, de corpo físico positivo e corpo anímico (psíquico) negativo, aptos a trabalhar iniciaticamente os pesados e inertes minerais, ao passo que a ROT, ou Ordem das Tecedeiras, só podia ser integrada por mulheres, de corpo físico negativo e corpo anímico (psíquico) positivo, aptos à subtileza do trabalho iniciático com o fio vegetal ou animal.
Esta é a principal razão, senão a única, por que a Iniciação Maçónica não convém às mulheres, visto repercutir de forma polarmente oposta sobre os seus veículos somático e anímico; devido a uma deformada compreensão do que é a Ordem Maçónica — decaída em simples «Maçonaria» que em certas Obediências, hoje, pouco mais é do que um clube em vez de uma Ordem iniciática —, as mulheres indignam-se com a sua exclusão desse «clube», e têm exigido — e conseguido — obter ingresso quer em Lojas maçónicas com adopção feminina, quer em Lojas mistas, quer em Lojas especificamente femininas, esquecendo que a sua constituição somático-anímica, ou somático-psíquica, torna inúteis senão mesmo perniciosas tais iniciações, uma vez que a sua linha iniciática é outra. (Uma interessante excepção a este condicionamento poderá estar na Carbonária Florestal, como tentaremos indagar mais adiante).
Compreendemos os problemas que isto levanta se atendermos ao facto de a Ordem Maçónica, sucedânea especulativa da ROC, se ter mantido até hoje sob as diversas formas que têm assumido as Obediências maçónicas, mais ou menos regulares; mas, mesmo em casos de regularidade duvidosa, pode-se dizer que a transmissão iniciática dos segredos protectores da ROC não sofreu interrupções, ao passo que da ROT não subsistem actualmente vestígios comprováveis dos quais se possua um conhecimento inquestionável e fidedigno.
Trata-se, sem dúvida, de um grave problema que a Iniciação feminina protectiva contra as «trevas exteriores», da competência da ROT, enfrenta nos dias de hoje — a ROT foi interrompida num dado momento histórico, foi misteriosamente eliminada do tablado iniciático e o seu fio tradicional perdeu-se, perdendo as mulheres do mesmo passo a sua específica Iniciação de ofício protectivo. E, já o dissemos, um fio tradicional uma vez quebrado não se pode reatar.
Tentemos examinar e compreender como é que isso aconteceu. |