VII Colóquio Internacional
"Discursos e Práticas Alquímicas"
LAMEGO - SALÃO NOBRE DA CÂMARA MUNICIPAL
22-24 de Junho de 2007

INICIAÇÃO FEMININA:
ASTROLÓGICA, MÁGICA, ALQUÍMICO-HERMÉTICA
OU CABALÍSTICA?
por ANTÓNIO DE MACEDO

INDICE
Introdução
1. Os Mistérios antigos
2. A origem das Ordens
3. A Ordem de Melquisedec e as formas iniciáticas originárias
4. O estabelecimento das Ordens e os mitos fundadores
5. As duas linhagens: a do Fogo e a da Água
6. As Ordens sagradas primordiais: cainita e sethiana
7. A ROC e a ROT
8. A deusa-padroeira das Tecedeiras
9. A Ordem de Arachne
10. A decaída de Penélope
11. Um fio tradicional alternativo?
12. Das tradições mesopotâmica e judaica à modernidade ocidental
13. E se a ROT afinal não desapareceu?
14. Tradicionismo de ofício — um rito viável?
15. Conclusão provisória
Bibliografia sumária
11. Um fio tradicional alternativo?

Dissemos mais atrás que a ROT foi interrompida num dado momento histórico, o seu fio tradicional regular perdeu-se e as mulheres perderam em consequência a sua específica e feminina Iniciação de ofício protectivo.
Ora bem, talvez na verdade não tenha sido totalmente quebrado, esse fio tradicional, tendo-se misteriosa e ocultamente transmitido através das curandeiras, ou médicas, mulheres que lidam eficazmente com os tecidos orgânicos, outra forma de tecedeiras, e dessa Ordem oculta há vestígios ao longo dos tempos, dos quais um dos mais ilustrativos — e impressionantes… — é o da perseguição que foi movida às curandeiras pelos homens ciosos da «sua» (deles) arte médica, e correlatas prerrogativas patriarcais, perseguição que muito contribuiu para a famosa caça às bruxas nos séculos XIV a XVII.

Ainda não há muito tempo, historicamente falando, a profissão de médico só podia ser desempenhada por homens, e por homens de barba! De facto, no século XIX e no início do século XX um jovem médico tinha de esperar que lhe crescesse uma barba de severo porte antes que pudesse ser considerado respeitável e lhe fosse concedido acesso às alcovas de senhoras doentes sem escândalo dos respectivos pais, irmãos ou maridos. Bom, este truque das barbas não era de todo inocente e não tinha apenas a ver com o pudor das damas que aos médicos recorriam, era um truque manhoso do «género masculino» para impedir que as mulheres ingressassem na profissão médica, pois dificilmente poderiam ter barba a menos que fossem alguma rara curiosidade de circo.

A verdade é que as mulheres, portadoras de vida no seu seio mátrio, sempre manifestaram desde remotas idades uma tendência natural para ser médicas, ou no mínimo curandeiras, pela sua arte de lidar eficazmente com tecidos vivos:

«As mulheres sempre praticaram a arte de curar. Elas foram as médicas e anatomistas não licenciadas da história ocidental. Faziam os abortos, eram enfermeiras e aconselhadoras. Eram farmacêuticas, cultivando ervas medicinais e trocando entre si os segredos do seu uso. Eram parteiras, viajando de casa em casa e de aldeia em aldeia. Durante séculos as mulheres foram médicas sem grau académico, excluídas dos livros e das instituições de ensino, e passavam as suas experiências de vizinha para vizinha e de mãe para filha. Eram chamadas “mulheres de virtude” pelo povo, bruxas ou charlatãs pelas autoridades. A medicina faz parte da herança histórica das mulheres» (Ehrenreich & English 1973, 2).

Longe nos levaria o fascinante (e aterrador…) percurso que fez com que os homens se assenhoreassem dum excelso labor tradicionalmente desempenhado por «mulheres de virtude», travando uma luta sem quartel contra elas, com fogueiras e tudo, até ao imperialismo das barbas do século XIX. Limitemo-nos a alinhar alguns marcos históricos de referência.

Na fase histórica mais antiga da Mesopotâmia, mais concretamente na primitiva Suméria, os médicos que praticavam métodos de «cura natural» invocavam a deusa Gula que por vezes assumia outras designações: Nintinugga, Ninisinna, Baba… Aliás, as actividades básicas mais importantes para a subsistência da vida civilizada estavam a cargo de deusas: o uso e tecelagem de vestuário, a alimentação com trigo e o fabrico e fermentação da cerveja, e o seu consumo. Assim, a lã representada pela deusa Lahar, é tecida e transformada em veste pela deusa Uttu; a deusa Nisba tinha a seu cargo o crescimento e a ceifa das searas; a fermentação da cerveja era a divina obra da deusa Ninkasi. Quanto à arte médica, a deusa que dela se encarregava era como dissemos Gula, a mais invocada porque conhecia as plantas, sendo por isso a grande médica do povo, e tanto ela como as suas congéneres eram por vezes referidas nos textos cuneiformes como «ressuscitadoras de mortos» (Frymer-Kensky 1992, 32-39).

Atente-se na seguinte particularidade, quase se poderia dizer alquímica, da importância da transmutação associada à primordial função hierofântica da divina Iniciação feminina: «Cozinhar os grãos de trigo, fermentar cerveja e tecer roupas e vestimentas, são actividades que partilham um atributo essencial: são transformações. Linho e lã transformam-se em vestuário; grãos de cereais, indigestos, transformam-se em pão e cerveja. Assim, substâncias naturais que não são imediatamente benéficas para a humanidade transformam-se em produtos culturais preciosos para o bem-estar humano. Esta criação de alimento e vestuário “civilizados” a partir de elementos naturais é a transformação básica da “natureza” em “cultura”, e, como tal, sempre foi uma ocupação arquetípica feminina» (Frymer-Kensky 1992, 35).

Com o decorrer do tempo as competências tradicionalmente atribuídas a deusas foram sendo transferidas para deuses machos, e usurpadas por estes: na transição do segundo para o primeiro milénio a.C., na Mesopotâmia, a tradição mágica de cura concentrou-se finalmente no deus Marduk, depois de ter passado entretanto para o filho de Gula, Damu, que de início era uma filha. O mesmo sucedeu com outras funções que ficaram sob a tutelagem dos deuses machos An, Enlil, Enki, Ea…

A historiadora Tikva Frymer-Kensky (1943-2006), professora de Bíblia hebraica e história do judaísmo na Universidade de Chicago, e especialista em assiriologia e sumerologia, pormenoriza com uma fascinante soma de dados o desenrolar histórico que paraleliza a sociedade civil mesopotâmica e o universo dos deuses: o «eclipse das deusas», como lhe chama Frymer-Kensky (Frymer-Kensky 1992, 70-80), reflecte uma transição semelhante nas sociedades antigas, na relação de primazias entre funções tradicionalmente femininas que a pouco e pouco se tornaram tradicionalmente masculinas, na onda de mudanças sociológicas que abriram caminho para o que tem vindo a ser chamado «patriarcalismo». Ainda que não sejam bem conhecidas todas as razões para este progressivo declínio das funções sociais das mulheres — e seu reflexo nos céus, ou nas «deusas» —, tal declínio da visibilidade feminina não é plausível que possa ser atribuído apenas a causas étnicas, como já se tem tentado, mas talvez tivesse sido, eventualmente, função da mudança do regime das cidades-Estado para o regime das muito mais vastas nações-Estado, com todas as mutações e reconversões desencadeadas sobre os respectivos sistemas sociais e económicos. Uma tal transição é sobretudo sensível a partir do período babilónico antigo (aprox. 1600 a.C.), em contraste com a preponderância feminina, que já vinha desde há mais de 3000 anos a.C.

INICIATIVA:
Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL)
Instituto São Tomás de Aquino (ISTA)
www.triplov.org

Patrocinadores:
Câmara Municipal de Lamego
Junta de Freguesia de Britiande
Dominicanos de Lisboa

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