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As imagens criaram-nos à sua réplica. Nem os deuses nos criaram à sua imagem nem nós à deles. Para isso deveria existir uma imagem referenciante. De um certo ponto de vista um deus é uma não-imagem, e nós seriamos réplicas de algo irreplicável. Mas são as imagens, quer na sua imprecisão metafórica quer no seu fluxo metonímico, que nos vão criando, não como imagens degradadas, mas como reproduções revitalizantes.
72
Os deuses são imagens demasiado imprecisas nas quais acumulamos as energias dos nossos impasses.
73
A arte opera como um fluxo que inverte as expectativas quanto ao divino. Enquanto a profanação repete uma reverência negativa quanto ao sagrado, a arte emancipa dos estados reverênciais. A arte não é revolta. É a contradecifração. Tenta atrair as convenções com que representamos o envolvimento a várias ciladas. A arte não é o que força a revelar, mas o que se revela sem esforço. É o anti-apocalipse.
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Isto não é um exercicio. As defenições acontecem-nos como ficções que iluminam instantaneamente a percepção. A percepção é apenas uma parcela da experiência. São as coisas mais vulgares que nos vão acabar por surpreender. As defenições são como muletas nesta caminhada.
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A noção de absurdo torna implicita a liberdade. Temos direito de escolher a não-escolha. Gostamos de escolher o que não escolheriamos. Procuramos testar-nos numa espécie de auto-infidelidade. É a instabilidade das ideias que nos torna proprietários da nossa disponibilidade.
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Queremos desembaraçar-nos do Estado naturalmente, sem golpes de estado ou àcidas revoluções. A crise das ideologias é consequência da falibilidade de soluções quer para o estado quer para a economia. Liberalidade versus totalitarismos ou liberalismos. A interacção da globalização já aboliu o que era essencialmente restritivo nos estados. O capitalismo é o espectro dos estados. O desaparecimento natural através da biodegradação da violencia estatal acarreta o desaparecimento da violência da exploração concentracionária da lógica do capital.
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As tiranias cimentam-se nos hábitos. A linguagem é um hábito que nos permite reorganizar fluxos codificados que nos excitam nas experiências com as coisas. O patriotismo é um hábito que exalta uma certa familiaridade. A localidade é uma gestão de hábitos com o que nos é próximo. Neste planeta a distância está a desaparecer. Dificilmente nos aprontamos a sacrificar as nossas vidas por ilusões ideológicas ou tribais.
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A vida é um processo, mas não fazemos nenhuma ideia se tem fim ou não. Nós somos diagonalmente atravessados por vários estilos processuais. As mutações acontecedm quando os estilos se cruzam.
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O real é o relativo. O relativo é o que se relaciona. Os ritmos possiveis significativos são limitados. Não se adinha nenhuma ruptura radical no macrocosmos. Os processos a grande escala conseguem diversificar-se e diferir. São reformistas e não revolucionários. O homem é um animal que se imagina revolucionário porque não está contente com o seu corpo.
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A propriedade é uma extensão antes de ser um roubo. Crescer para fora dos limites do corpo é tornar-se proprietário. Não é repugnante ser autor. Tudo o que é forte procura continuar-se além do seu espaço. Não é uma necessidade de comunicação mas de crescimento: produção e reprodução mais do que intencionalidade ou informação.
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