121
A vida acaba por apagar toda a vontade de coerência demasiado rigída. Queremos ver-nos livres das proposições que nos obrigam à fidelidade absoluta.
122
Devemos desconfiar das nossas desconfianças. A confiança engendra alegria. É certo que a desconfiança afina a percepção das coisas, mas só penetramos no seu âmago, ou nos deixamos penetrar, através da confiança.
123
Toda a informação que antecede cada momento é falsa, porque só a informação tal como é sentida no momento é verdadeira. O trabalho da memória não é o de lapidar para tornar o que já foi experimentado luminoso. A memória usa o passado apenas para que este seja útil.
124
Não podemos começar nada de novo. Não é possível nenhuma radicalidade. O que precede cada instante não cessa. O poder do passado é imenso. Não há nada que cesse.
125
Mundo indisponível. O mundo esconde demasiado bem o seu sistema. Provávelmente o sistema do mundo não existe senão como brincadeira. O mundo joga às escondidas connosco. A indisponibilidade do mundo faz com que tenhamos ainda mais vontade de lhe arrancar a disponibilidade à força.
126
As palavras não são coisas mas exercem alguma eficácia nas nossas relações com as coisas. Daí que pareçam mágicas.
127
O mundo obriga-nos a rejeitar a sua rejeição.
128
Não podemos deixar de aceitar o que se apresenta como mais ilusório, mais quebradiço, mais falível. Rejeitamos a rejeição do mundo através de uma amizade cega. Sabemos que o desencatamento é a norma e que o encantamente é um dom capaz de enganar as forças do desencantamento.
129
O mundo é algo que se vai fazendo por desfazamentos. É isso que nos provoca uma certa afazia.
130
A personalidade é a possibilidade de o mundo se mascarar e se enunciar numa pele. A personalidade é o encantamento da descida à carne que pensa que por acaso existe.
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