Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

PÁGINA INDEX NÚMERO 05|ABRIL DE 2010

NÚMERO 05

Abril 2010

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Poesia Brasil

Banda Hispânica
Brasil

Incomunidade
Portugal

 

La Otra
México

TriploG
Portugal

Matérika
Costa Rica

 
 

 

 

Autores

Normas de publicação

Salão do Folhetim
Obras em Processo
 
 

 

MARIA ESTELA GUEDES

Tango Sebastião

 

 

 

 

Britiande . 2010
© Maria Estela Guedes

1. Personagens, etc..

2. Sinopse

Cena 1
Cena 2
Cena 3
Cena 4
Cena 5
Cena 6
Cena 7 e última

CENA 4

Yukio Mishima e Máscara estão no proscénio. Ele vai buscar o genuflexório. Correm metade do pano, deixando à vista o retrato de Mishima a imitar S. Sebastião. Yukio Mishima entra na cena, pega no arco e dispara uma e outra flecha contra o seu retrato.

(Tiro ao alvo)

 

Máscara – Boa pontaria, bem podias ir para a guerra…

Yukio Mishima -  Guerra, não… (Fica embaraçado). Não, não fiz, não fiz a guerra, mas alistei-me no Exército de Auto-Defesa do Japão...

Máscara – Oh, lá-lá!… (Não acredita muito no que diz Yukio Mishima).

Yukio Mishima – (Envergonha-se) Não, não fiz a guerra… Fiquei isento, por ter sofrido tuberculose… Foi a maior das minhas humilhações… A segunda, foi a derrota do Japão e a ocupação do meu país por tropas estrangeiras… Falhei completamente ao querer restaurar os poderes do imperador…

Máscara – A tua conversa é-me familiar, tenho o teu retrato na ponta da língua, se assim se pode dizer... Só me falta recordar...

Yukio Mishima – Infelizmente não fiz a guerra, mas fundei a Tatenokai…

Máscara – A Tatenokai...

Yukio Mishima – Tatenokai, Sociedade do Escudo, uma milícia privada que dediquei à protecção do imperador...

Máscara – O que dizes soa a plágio de S. Sebastião, que era capitão da guarda pessoal do imperador, mas ressuscitar a guarda pretoriana em defesa de valores de extrema-direita, olha, isso cheira a esturro...

Yukio Mishima – A Tatenokai era constituída por jovens, samurais... Jurámos defender com a espada o património nacional... (Levanta-se, adopta postura militar e pronuncia a fórmula do juramento).

 «Juro, no espírito dos verdadeiros homens de Yamato, que me levantarei de espada na mão contra qualquer ameaça à nossa cultura e ao nosso património!».

Não sabes qual o perdido património cultural do Japão...

 

(Faz uma exibição de artes marciais)

Máscara – Então sabes mesmo, tu pareces bom nisso... (Para a plateia) Se calhar, ele só tem estado a dizer a verdade...

Yukio Mishima - Na Tatenokai havia jovens belos, embora menos que S. Sebastião… Eu sou um devoto de S. Sebastião... Em certa altura, tirei fotografias quase nu, a imitar o santo, com o corpo a querer ser penetrado por espadas... Já nessa altura preparava a morte... Tão belo, eu amo a beleza… (Perde-se em devaneios) Amo a beleza perdidamente, perdidamente… É o único sentido da vida, a beleza… Por isso a minha não faz sentido nenhum... (Mostra-se da cabeça aos pés) Não valeu de nada a ginástica, o karatê, o boxe... Nunca alcançarei a beleza de Adónis... Queria morrer, amo a morte... A morte heróica é bela, belíssima a morte de S. Sebastião…

Máscara – Isso que dizes é terrível, só podes estar a representar... Finges que és um guerreiro… Mostras os músculos dos braços, deste aí um espectáculo de artes marciais, mas isso é tudo máscara… Para falar como falas, sem nenhum sentido das medidas, e totalmente fora do esquema das ideias dos outros, só podes ser um poeta… Mas, como finges, és poeta e actor…

Yukio Mishima -  Nos últimos anos da minha vida, fui actor de cinema, e além disso realizei um filme que defende as minhas ideias políticas... «Patriotismo», conheces?

Máscara – Já li o que contas em qualquer lado, sim, já ouvi falar… Mas quem és tu, afinal? Como te chamas?

Yukio Mishima -  Ah, ah, ah… Quem sou eu?! E o que queres é um nome?

Máscara – Sim, sim, como te chamas? Diz...

Yukio Mishima - O nome é a maior das máscaras… Mas se insistes, declino até o verdadeiro…

Máscara – Vá, vá lá, vá lá...

Yukio Mishima -  Presta atenção: eu sou Kimitake Hiraoka, uma versão moderna de S. Sebastião…

Máscara – Esse nome não me diz nada… Mas já a versão moderna de S. Sebastião… Desculpa, não foi a ti que tentaram por três vezes decapitar e sempre sem sucesso?

Yukio Mishima -  Como S. Sebastião, aqui estou eu, depois da morte, a falar contigo. E com o público… (Cumprimenta a plateia e fala com ela) Meus senhores, aceitai os cumprimentos de Kimitake Hiraoka… Como sabeis, S. Sebastião foi condenado à morte mais de uma vez e sobreviveu... É o mais belo de todos os homens… (Olha para si mesmo, o discurso torna-se intimista) E eu, que sou para aqui... Quando me contemplo ao espelho, vejo um sapo… Um sapo, sim, um sapo verde, venenoso... Ah, mas pudesse eu morrer como S. Sebastião, e ficava igual a ele… O heroísmo na morte mitifica, enaltece... E a verdade é que consegui...

Máscara – Achas-te feio, tu? Eu cá, sinceramente… (Fala com a plateia) Não é nada de deitar fora, por mim... (Para Yukio Mishima) Isso é uma grande mania, uma psicose ou coisa que o valha, porque a beleza que interessa não é a do corpo, tão passageira, sim a das obras do espírito... E tu és belo, as tuas palavras despertam, há fogo nas tuas ideias, causa inquietação a sua singularidade...

 

 

(Projecção de fotografias de Yukio Mishima, e dos S. Sebastião de Guido Reni,
 até ao final da cena )

Yukio Mishima – Foi por isso, foi por isso, preparei tudo durante mais de um ano, precisava de público para a minha morte… O golpe para repor os poderes do imperador foi um pretexto, sabia que o fracasso me esperava... O local, porém, era excelente: o quartel-general de Tóquio... Foi a 25 de Novembro de 1970 que celebrei o seppuku...

Máscara – Seppuku?! Falas por enigmas, o que é próprio dos poetas e dos mágicos…

Yukio Mishima – Seppuku é o suicídio do samurai...

Máscara – Harakiri?!...Tu fizeste harakiri?!

Yukio Mishima -  Queria ser S. Sebastião... E S. Sebastião era o favorito do imperador…

Máscara – És louco, és louco ou estás apaixonado... Porque é que o imperador Diocleciano condenou Sebastião à morte, se gostava tanto dele?

Yukio Mishima  – Sebastião traiu o imperador com Jesus Cristo… (Vira-se para a plateia) O resto da história já vós o conheceis…

Máscara – Julgando que estava morto, ao verem-no trespassado pelas flechas, os sagitários romanos abandonaram-no… Foi uma mulher que o arrastou depois pelas margens do rio Tibre e o escondeu em sua casa… Por acaso, essa mulher também é santa, Santa Irene...

Yukio Mishima -  Mulher de outro santo, Santo Cástulo...

Máscara – (Desconfiada) Já são santos a mais...

Yukio Mishima -  E não foram os sagitários romanos… Foram os arqueiros da Mauritânia.

Máscara – Ou isso, ou isso... Há mil versões da história de cada santo... Não satisfeito com a penetração das setas, Sebastião voltou a reafirmar ao imperador o seu amor a Jesus e a censurar as injustiças e crueldades praticadas contra os seguidores da sua palavra. E voltou a ser condenado à morte, desta vez à chicotada...

Yukio Mishima – Outros dizem que foi o imperador Maximiano... Maximiano é que o condenou à morte pelas flechas... E a segunda execução, na frente do próprio imperador, terá sido à pancada... Foi a 20 de Janeiro, dia consagrado à divindade do imperador...

Máscara – Ou isso, ou isso... Há mil versões da história de cada santo... A verdade é que Diocleciano não suportou os ciúmes… Ele amava Sebastião, Sebastião era o seu favorito… Até o ia visitar à prisão... Mas Sebastião amava Jesus, que tinha morrido quase trezentos anos antes...

Yukio Mishima -  Isso, isso... A beleza da morte seduz, deixamo-nos apaixonar... Apaixonamo-nos à distância, por artistas, por santos, por heróis... E eu também já estive apaixonado por uma estampa...

Máscara – Isso é fobia, pavor do feio, só querer estampas... Nem todos somos Adónis, nem todas somos Afrodites, caramba!...

Yukio Mishima (Corrige) - Apaixonei-me por uma imagem em papel impresso...

Máscara (Vira as costas a Yukio Mishima, convencida de que ele está a gozar com ela e fala com o público) Depois de o terem chicoteado, julgando-o morto, os soldados atiraram o corpo de Sebastião para a Cloaca Máxima...

Yukio Mishima – O esgoto de Roma...

Máscara – O lugar mais sujo de Roma... Não sei se desta vez morreu, mas acho que ainda não…

Yukio Mishima - As grandes histórias de amor são eternas… Já reparaste nas condenações? Foram três e não duas: morte à flechada, morte à chicotada, e banho de merda...

Máscara – Oh!... (Esconde o horror atrás da máscara).

Yukio Mishima – Escatologia perfeita... E S. Sebastião sobreviveu às flechas, ao chicote e à imundície...

Máscara – Foi no esgoto que Santa Lucília o encontrou... (Desconfiada) S. Sebastião recebeu especial protecção das mulheres, está visto... Santa Lucília tratou dele e depois depositou-o dignamente junto das relíquias dos apóstolos...

Yukio Mishima -  Como é isso possível? Sarou-lhe as feridas para o sepultar?

Máscara – Que queres que te faça? As histórias de santos são todas assim... E quando se metem relíquias pelo meio, meu amigo... Ressalta mais o falso que o verdadeiro... Eu vi, com estes meus olhos, claramente vista, uma relíquia de S. Sebastião no Museu Topkapi, em Istambul...

Yukio Mishima – Que relíquia?

Máscara – (Sibilina) O segundo braço direito dele...

Yukio Mishima – O segundo braço direito de S. Sebastião?!... Que disparate é esse?

Máscara – Disparate nenhum... O primeiro há-de estar em Lisboa, foi levado na grande procissão de graças por a infanta D. Joana ter dado à luz D. Sebastião, a 20 de Janeiro de 1554... Então, não é verdade?!... Dias depois do nascimento do tão desejado herdeiro do trono de Portugal, a grandiosa procissão foi da Trindade à Sé, e andou pelo Rossio, com o braço de S. Sebastião... Até foi Carlos V quem ofereceu a relíquia... O imperador Carlos V era avô de D. Sebastião, pai de D. Joana... Bem, deixemo-nos de relíquias, são coisas muito fósseis... Continua lá a tua história, mas a sério, nada de literaturas...

Yukio Mishima – Tenho sido sincero a contar, mas os factos da minha cultura são tão estranhos para ti, que te pareço um fingidor... Já tinha dito: saí com os membros da Tatenokai para o quartel-general, em Tóquio. Prendemos o oficial de dia e fizemo-lo nosso refém. Então saí para o terraço do gabinete do general Kanetoshi Mashita e daí fiz um discurso aos soldados que estavam em baixo, para os instigar a um golpe de estado que devolvesse ao Imperador os seus poderes legítimos... Demorei mais de um ano a produzir a cerimónia, convidei amigos, fotógrafos, jornalistas...

Máscara – (Espanta-se) Tanto aparato por causa de um discurso?

Yukio Mishima – (Corrige) Demorei um ano a produzir o espectáculo da minha morte... A cerimónia é complexa, exige poemas testamentários, indumentária ritual, assistência, armas, e no meu caso houve encenação, actores, press release e convites distribuídos à imprensa... Usei dois fatos: farda militar para o discurso, quimono branco para o suicídio... O quimono é duplo, despe-se o de cima até à cintura, passam-se as duas mangas à volta do corpo como se fossem ligaduras... Queres que exemplifique?

Máscara – Credo! Não, que pavor!... (Para a plateia, em segredo) Sado-masoquismo... E tão exibicionista!...

(Fala com Yukio Mishima) E os soldados, como reagiram ao discurso? Mobilizaram-se para o golpe de estado?

Yukio Mishima – Não, ficaram irritados, começaram a gritar, a insultar-me, a atirar-me os bonés! Tive de acabar com o discurso rapidamente, porque ninguém me ouvia, e sair da varanda antes que me lapidassem...

Máscara – Isso tudo parece uma grande cena teatral, desculpa a frontalidade...

Yukio Mishima – Precisava de público para que a morte ritual alcançasse os objectivos que me tinha proposto: mostrar que o Japão antigo morria comigo... Então voltei para dentro e cometi sepukku no gabinete do general Kanetoshi Mashita. Mas o ritual não acaba no ventre cortado, nada garante que se tenha coragem ou que se morra disso, e é necessário que a morte se verifique, absoluta, ou a desonra é intolerável...

Máscara – Valha-me S. Sebastião!...

Yukio Mishima – O meu amigo Masakatsu Morita, membro da Tatenokai, devia acabar a cerimónia com a minha decapitação, mas amava-me... Tínhamos sido íntimos... Estava atrás de mim como é da praxe, com a espada erguida, pronta para me decapitar... Uma enorme desonra, faltou-lhe a coragem, as mãos tremeram-lhe... Não foi capaz... Por três vezes tentou cortar-me a cabeça e por três vezes falhou...

Máscara – Valha-me S. Sebastião, que história medonha! Medonha! Mas conheço-te afinal tão bem, reconheço-te agora, Kimitake Hiraoka! Quem falou da tua morte, relacionando-a com a tua visão do vazio, foi Marguerite Yourcenar... Curioso, há semelhanças entre vós: a temática da morte, do suicídio, e os belos jovens, favoritos dos Adrianos deste mundo...

Yukio Mishima – A homossexualidade não pertence só às personagens, Marguerite Yourcenar conta-se entre as lésbicas mais famosas, com Safo, Catarina da Rússia, Georges Sand e mais umas quantas...

Máscara – Greta Garbo, Frida Kahlo, Jodie Foster... Como te sentiste, esperando a morte que não acontecia, depois de te teres suicidado? Deste um salto para o vazio?

Yukio Mishima – O outro mundo para que saltei não é o vazio, sim o pleno, o pletórico, o luxuriante! Saltei para o palco do teatro eterno! Agora represento permanentemente diante do público... Ninguém me conhecia antes do seppuku, a não ser Marguerite Yourcenar... Agora, depois de morto, sou objecto de culto em todo o mundo... (Pergunta à plateia, com um gesto, se não é verdade).

Máscara – Como acabou afinal a grande ópera da tua morte?

Yukio Mishima – Foi outro membro da Tatenokai quem encerrou os trabalhos, mas entretanto Masakatsu Morita também fez harakiri...

Máscara – Não teve coragem para te cortar a cabeça, mas teve para se suicidar?!... (Para a plateia, em segredo) Tragédia assim, nem a grega!...

Yukio Mishima - Foi Hiroyasu Koga quem nos decapitou aos dois...

(Yukio Mishima vai para a cena, senta-se na posição do lótus diante de S. Sebastião e concentra-se)

Máscara – (Para a plateia, apresenta) Eis Yukio Mishima, o grande escritor japonês do século XX, mundialmente conhecido. A sua obra mais extraordinária foi o suicídio, declarou Marguerite Yourcenar. Valeu-lhe o reconhecimento do público, e uma devoção sebastianista que vai crescendo dia após dia...

Yukio Mishima (Sai do recolhimento para recomendar, de longe) - Ide ao YouTube ouvir o discurso que fiz aos soldados, da varanda do quartel, e ver fotografias do seppuku...

 

(Yukio Mishima retoma a posição do lótus diante de S. Sebastião)

MARIA ESTELA GUEDES (Britiande, Portugal, 1947)
Escritora, editora, agente cultural. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro (Lisboa, Moraes Editores); Ernesto de Sousa - Itinerário dos itinerários (Lisboa, ed. Museu Nacional de Arte Antiga); Tríptico a Solo (São Paulo, Editora Escrituras); Chão de Papel (Lisboa, Apenas Livros); Geisers (Bembibre, ed. Incomunidade). Obras levadas à cena: O Lagarto do Âmbar (ACARTE); A Boba (teatro Experimental de Cascais).
Currículo em:  http://www.triplov.com/estela_guedes/curriculo/index.html
 Proprietária do TriploV.
CONTATO: estela@triplov.com

CONTATOS

 
site search by freefind advanced

Maria Estela Guedes
Rua Direita, 131
5100-344 Britiande | Portugal
estela@triplov.com

Floriano Martins
Caixa Postal 52874 - Ag. Aldeota
Fortaleza CE 60150-970 | BRASIL
floriano.agulha@gmail.com

 
 
 
 
 

Portugal Brasil
Fortaleza | Britiande
Britiande 27.08.09

©
Revista TriploV
Português | Español | Français