Yukio Mishima
– Foi por isso, foi por isso, preparei tudo
durante mais de um ano, precisava de público
para a minha morte… O golpe para repor os
poderes do imperador foi um pretexto, sabia
que o fracasso me esperava... O local,
porém, era excelente: o quartel-general de
Tóquio... Foi a 25 de Novembro de 1970 que
celebrei o seppuku...
Máscara
– Seppuku?! Falas por enigmas, o que é
próprio dos poetas e dos mágicos…
Yukio Mishima
– Seppuku é o suicídio do samurai...
Máscara
– Harakiri?!...Tu fizeste harakiri?!
Yukio Mishima - Queria
ser S. Sebastião... E S. Sebastião era o
favorito do imperador…
Máscara
– És louco, és louco ou estás apaixonado...
Porque é que o imperador Diocleciano
condenou Sebastião à morte, se gostava tanto
dele?
Yukio Mishima
– Sebastião traiu o
imperador com Jesus Cristo… (Vira-se para
a plateia) O resto da história já vós o
conheceis…
Máscara
– Julgando que estava morto, ao verem-no
trespassado pelas flechas, os sagitários
romanos abandonaram-no… Foi uma mulher que o
arrastou depois pelas margens do rio Tibre e
o escondeu em sua casa… Por acaso, essa
mulher também é santa, Santa Irene...
Yukio Mishima
- Mulher de outro santo,
Santo Cástulo...
Máscara
– (Desconfiada) Já são santos a mais...
Yukio Mishima
- E não foram os sagitários
romanos… Foram os arqueiros da Mauritânia.
Máscara
– Ou isso, ou isso... Há mil versões da
história de cada santo... Não satisfeito com
a penetração das setas, Sebastião voltou a
reafirmar ao imperador o seu amor a Jesus
e a censurar as injustiças e crueldades
praticadas contra os seguidores da sua
palavra. E voltou a ser condenado à
morte, desta vez à chicotada...
Yukio Mishima
– Outros dizem que foi o
imperador Maximiano... Maximiano é que o
condenou à morte pelas flechas... E a
segunda execução, na frente do próprio
imperador, terá sido à pancada... Foi a 20
de Janeiro, dia consagrado à divindade do
imperador...
Máscara
– Ou isso, ou isso... Há mil versões da
história de cada santo... A verdade é que
Diocleciano não suportou os ciúmes… Ele
amava Sebastião, Sebastião era o seu
favorito… Até o ia visitar à prisão... Mas
Sebastião amava Jesus, que tinha morrido
quase trezentos anos antes...
Yukio Mishima
- Isso, isso... A beleza da
morte seduz, deixamo-nos apaixonar...
Apaixonamo-nos à distância, por artistas,
por santos, por heróis... E eu também já
estive apaixonado por uma estampa...
Máscara
– Isso é fobia, pavor do
feio, só querer estampas... Nem todos somos
Adónis, nem todas somos Afrodites,
caramba!...
Yukio Mishima
(Corrige) -
Apaixonei-me por uma imagem em papel
impresso...
Máscara
– (Vira as costas a Yukio
Mishima, convencida de que ele está a gozar
com ela e fala com o público) Depois de
o terem chicoteado, julgando-o morto, os
soldados atiraram o corpo de Sebastião para
a Cloaca Máxima...
Yukio Mishima –
O esgoto de Roma...
Máscara
– O lugar mais sujo de
Roma... Não sei se desta vez morreu, mas
acho que ainda não…
Yukio Mishima
- As grandes histórias de
amor são eternas… Já reparaste nas
condenações? Foram três e não duas: morte à
flechada, morte à chicotada, e banho de
merda...
Máscara
– Oh!...
(Esconde o horror atrás da
máscara).
Yukio Mishima –
Escatologia perfeita... E S.
Sebastião sobreviveu às flechas, ao chicote
e à imundície...
Máscara
– Foi no esgoto que Santa
Lucília o encontrou... (Desconfiada)
S. Sebastião recebeu especial protecção das
mulheres, está visto... Santa Lucília tratou
dele e depois depositou-o dignamente junto
das relíquias dos apóstolos...
Yukio Mishima
- Como é isso possível?
Sarou-lhe as feridas para o sepultar?
Máscara
– Que queres que te faça? As
histórias de santos são todas assim... E
quando se metem relíquias pelo meio, meu
amigo... Ressalta mais o falso que o
verdadeiro... Eu vi, com estes meus olhos,
claramente vista, uma relíquia de S.
Sebastião no Museu Topkapi, em Istambul...
Yukio Mishima
– Que relíquia?
Máscara –
(Sibilina) O
segundo braço direito dele...
Yukio Mishima
– O segundo braço direito de
S. Sebastião?!... Que disparate é esse?
Máscara
– Disparate nenhum... O primeiro há-de estar
em Lisboa, foi levado na grande procissão de
graças por a infanta D. Joana ter dado à luz
D. Sebastião, a 20 de Janeiro de 1554...
Então, não é verdade?!... Dias depois do
nascimento do tão desejado herdeiro do trono
de Portugal, a grandiosa procissão foi da
Trindade à Sé, e andou pelo Rossio, com o
braço de S. Sebastião... Até foi Carlos V
quem ofereceu a relíquia... O imperador
Carlos V era avô de D. Sebastião, pai de D.
Joana... Bem, deixemo-nos de relíquias, são
coisas muito fósseis... Continua lá a tua
história, mas a sério, nada de
literaturas...
Yukio Mishima
– Tenho sido sincero a
contar, mas os factos da minha cultura são
tão estranhos para ti, que te pareço um
fingidor... Já tinha dito: saí com os
membros da Tatenokai para o quartel-general,
em Tóquio. Prendemos o oficial de dia e
fizemo-lo nosso refém. Então saí para o
terraço do gabinete do general
Kanetoshi
Mashita e daí fiz um discurso aos soldados
que estavam em baixo, para os instigar a um
golpe de estado que devolvesse ao Imperador
os seus poderes legítimos... Demorei mais de
um ano a produzir a cerimónia, convidei
amigos, fotógrafos, jornalistas...
Máscara –
(Espanta-se)
Tanto aparato por causa de um discurso?
Yukio Mishima
– (Corrige) Demorei um
ano a produzir o espectáculo da minha
morte... A cerimónia é complexa, exige
poemas testamentários, indumentária ritual,
assistência, armas, e no meu caso houve
encenação, actores, press release e
convites distribuídos à imprensa... Usei
dois fatos: farda militar para o discurso,
quimono branco para o suicídio... O quimono
é duplo, despe-se o de cima até à cintura,
passam-se as duas mangas à volta do corpo
como se fossem ligaduras... Queres que
exemplifique?
Máscara –
Credo! Não, que pavor!...
(Para a plateia, em segredo)
Sado-masoquismo... E tão exibicionista!...
(Fala com Yukio Mishima)
E os soldados, como reagiram ao discurso?
Mobilizaram-se para o golpe de estado?
Yukio Mishima
– Não, ficaram irritados, começaram a
gritar, a insultar-me, a atirar-me os bonés!
Tive de acabar com o discurso rapidamente,
porque ninguém me ouvia, e sair da varanda
antes que me lapidassem...
Máscara –
Isso tudo parece uma grande
cena teatral, desculpa a frontalidade...
Yukio Mishima
– Precisava de público para que a morte
ritual alcançasse os objectivos que me tinha
proposto: mostrar que o Japão antigo morria
comigo... Então voltei para dentro e cometi
sepukku no gabinete do general
Kanetoshi
Mashita. Mas o ritual não acaba no ventre
cortado, nada garante que se tenha
coragem ou que se morra disso, e é necessário que a
morte se verifique, absoluta, ou a desonra é
intolerável...
Máscara –
Valha-me S. Sebastião!...
Yukio Mishima
– O meu amigo Masakatsu Morita, membro da
Tatenokai, devia acabar a cerimónia com a
minha decapitação, mas amava-me... Tínhamos
sido íntimos... Estava atrás de mim como é
da praxe, com a espada erguida, pronta para
me decapitar... Uma enorme desonra,
faltou-lhe a coragem, as mãos
tremeram-lhe... Não foi capaz... Por três
vezes tentou cortar-me a cabeça e por três
vezes falhou...
Máscara –
Valha-me S. Sebastião, que
história medonha! Medonha! Mas conheço-te
afinal tão bem, reconheço-te agora, Kimitake
Hiraoka! Quem falou da tua morte,
relacionando-a com a tua visão do vazio, foi Marguerite Yourcenar... Curioso, há
semelhanças entre vós: a temática da morte,
do suicídio, e os belos jovens, favoritos
dos Adrianos deste mundo...
Yukio Mishima
– A homossexualidade não pertence só às
personagens, Marguerite Yourcenar conta-se
entre as lésbicas mais famosas, com Safo,
Catarina da Rússia, Georges Sand e mais umas
quantas...
Máscara –
Greta Garbo, Frida Kahlo,
Jodie Foster... Como te sentiste,
esperando a morte que não acontecia, depois
de te teres suicidado? Deste um salto para o
vazio?
Yukio Mishima
– O outro mundo para que saltei não é o
vazio, sim o pleno, o pletórico, o
luxuriante! Saltei para o palco do teatro
eterno! Agora represento permanentemente
diante do público... Ninguém me conhecia
antes do seppuku, a não ser Marguerite
Yourcenar... Agora, depois de morto, sou
objecto de culto em todo o mundo...
(Pergunta à plateia, com
um gesto, se não é verdade).
Máscara
– Como acabou afinal a grande ópera da tua
morte?
Yukio Mishima
– Foi outro membro da
Tatenokai quem encerrou os trabalhos, mas
entretanto Masakatsu Morita também fez
harakiri...
Máscara
– Não teve coragem para te cortar a cabeça,
mas teve para se suicidar?!... (Para a
plateia, em segredo) Tragédia assim, nem
a grega!...
Yukio Mishima
- Foi
Hiroyasu Koga quem nos
decapitou aos dois...
(Yukio
Mishima vai para a cena, senta-se na posição
do lótus diante de S. Sebastião e
concentra-se)
Máscara –
(Para a plateia,
apresenta) Eis Yukio Mishima, o
grande escritor japonês do século XX,
mundialmente conhecido. A sua obra mais
extraordinária foi o suicídio, declarou
Marguerite Yourcenar. Valeu-lhe o
reconhecimento do público, e uma devoção
sebastianista que vai crescendo dia após
dia...
Yukio Mishima
(Sai do recolhimento para recomendar, de
longe) - Ide ao YouTube ouvir o discurso que
fiz aos soldados, da varanda do quartel, e
ver fotografias do seppuku...
(Yukio
Mishima retoma a posição do lótus diante de
S. Sebastião) |