A
Máscara e Yukio Mishima sobem ao palco pelo
lado da plateia. Ele vai à cena buscar o
genuflexório; a Máscara senta-se nele.
Correm parcialmente o pano, deixando à vista
o retrato de D. Sebastião. Yukio Mishima
senta-se no chão na posição do lótus e
aguarda.
Máscara
– Irritou-me um bocado a conversa que
ouvimos agora na Escola de Teatro. Também lá
estavas, não ouviste?
Yukio
Mishima – Desculpa, não dei por nada,
não prestei atenção... Estava concentrado no
filme que lá passaram, de Paul Schrader, «Mishima
- Uma vida em quatro capítulos»...
Máscara
– Não gostei muito, a vida de Yukio Mishima
é um filme de terror... Bom, mas imagina que
no intervalo andava lá um toleirão a falar
com a mulher, decerto sobre um parente, que
todos sabiam ser homossexual, mas não tinha
coragem para se assumir... (Tira e põe a
máscara diante da cara como uma ventoinha).
Yukio
Mishima – Oh!... Que lindo verbo, vamos
lá a conjugar: assume tu, assumam eles e
elas, assumi vós… (Troça do verbo «assumir»
em todas as suas formas).
Máscara
– E tu? Não assumes?
Yukio
Mishima – Eu? Mas tu conheces-me assim
tão bem?
Máscara
– Tenho-te visto por lá, conheço-te de
vista... Assumes ou não?
Yukio
Mishima – Claro, a sumo, a jiu-jitsu...
Eu pratiquei ginástica, karatê e kandô...
Olha que até no boxe andei!... (Em segredo)
No boxe fui uma desgraça, não ganhei um
desafio...
Máscara
– Gozas comigo, se calhar com a verdade...
Yukio
Mishima – Minha amiga, para sobreviver
na minha família patriarcal, com um pai
militar e machista, vivi sempre atrás da
máscara… No Japão antigo, ninguém incomodava
os homossexuais. Nem as religiões se
pronunciavam sobre o assunto, era coisa
natural e corrente. Agora, infelizmente, por
influência dos povos ocidentais, é que
começou a ser mal vista.
Máscara
– Então os budistas não perturbam os
homossexuais?!
Yukio
Mishima – Não, os homossexuais não eram
perseguidos. A menos que não tivessem
descendência! Olha, é assim: nas sociedades
possidentes, a raiz da discriminação
relaciona-se com a propriedade que se
transmite de pais para filhos... Quando não
somos elos nessa cadeia de transmissão de
genes e bens materiais, corremos muitos
perigos... A maioria só aceita a norma, e a
norma em que assenta a sobrevivência geral
das espécies é a reprodução. Reprodução
biológica, reprodução de modelos de vida,
reprodução de modelos de pensar, reprodução
de modelos estéticos... Os homossexuais,
repara: não fazem parte desse sistema, pelo
contrário... Ainda por cima, a sua
sensibilidade é geralmente muito refinada,
talvez por serem muito hostilizados. Ora
as pessoas hipersensíveis costumam ser
artistas. E o que são os artistas, hem? Os
artistas são criadores...
Máscara
– Reprodutores e criadores...
Yukio
Mishima
– Então, já vês: os homossexuais não
reproduzem a cadeia, por isso a tendência
geral, com casamento ou sem casamento, com
direito ou sem direito à adopção, a
tendência geral é para os excluir ou mesmo
para os exterminar...
Máscara
– Exterminar é um exagero!... Não, isso
depende das culturas!.. Aqui, em Portugal,
ainda existe muita hostilidade, e sobretudo
por parte dos homens. Os homens portugueses
são machistas, os modelos não-machistas
desautorizam-nos. Diante do homossexual, o
pavão fica sem motivos para abrir a cauda...
Yukio
Mishima – O meu pai era assim, um
pavão... Diz-me então se o homossexual deve
assumir perante todos que não é um
reprodutor, arriscando-se a ficar sem
cabeça, ou se não será mais prudente
socorrer-se da máscara...
Máscara
– Logo vi… Assumir a homossexualidade?! Para
quê? Para nos lançarem à fogueira, para nos
mandarem para as câmaras de gás, para nos
enclausurarem nos hospitais psiquiátricos,
para nos atirarem pedras, para nos fecharem
as portas das suas casas, para nos
deserdarem, para nos arremessarem graçolas
parvas? Essa cena do casamento, que já
existe em vários países, não nos vai poupar.
A única coisa que a Lei pode fazer é
estabelecer que é crime discriminar e
molestar os homossexuais, mas não vai mudar
a cultura… Eu só quero ver, agora os
humoristas ficaram foi com mais um tema para
as suas chacotas na comédia sempre-em-pé…
Apostamos?
Yukio
Mishima – (Não entra nesse jogo) Eu?
Apostar?...
Máscara
– Gente ignorante e estúpida! Julgarão que
se trata de alguma mania, que a
homossexualidade é uma jaqueta que se pode
vestir ou despir quando convém? Os
homossexuais têm sido tão maltratados como
as mulheres, os escravos, os judeus!... Como
os negros, e outros, eu sei lá…
Yukio
Mishima – Liberdade, Igualdade e
Fraternidade! Nesta tríade de valores, o
direito à homossexualidade é a última grande
causa humana a defender… (Pausa, lembra-se)
A outra é a do imperador…
Máscara
– (Mostra o retrato de D. Sebastião)
Concordo contigo, no tempo de D. Sebastião,
Portugal era um grande império: ia de
Oriente a Ocidente e de Norte a Sul…
Yukio
Mishima – Falava do imperador do Japão…
Máscara
– Essa agora, o imperador do Japão?!... Mas
que imperador do Japão?!
Yukio
Mishima – Hirohito…
Máscara
(Ameaça bater-lhe com a máscara) – Meu caro,
não seja tão Australopithecus, esse
nacionalismo não lhe assenta nada bem… Olhe
que para acabar com os ataques do Japão, foi
estreado na Terra o armamento nuclear… (Para
a plateia, em segredo) O Japão de Hirohito
fazia parte do Eixo, com a Alemanha nazi e a
Itália fascista!... Até Timor atacaram...
Ah, não foi por causa dos alemães que
Portugal entrou na guerra, foi por causa dos
japoneses!... Os japoneses invadiram a ilha,
massacraram a população, violaram as
mulheres... (Bate-lhe com a máscara, ele
foge).
Yukio
Mishima – Sou um mártir…
Máscara
(Zangada) – Você é um actor, isso é que é!
(Muda de conversa e fala com o público)
Desde que vingou no Ocidente a cultura
católica, nunca mais a homossexualidade pôde
ser normalmente vivida! Pecado mortal, dizem
os padres. Não é que tal coisa me incomode,
porque o discurso da Igreja é estranho ao
nosso corpo e à nossa linguagem…
Yukio
Mishima – Bem, este assunto ultrapassa a
questão católica... No meu país, embora a
religião não condene os homossexuais, há
quem sofra muito... Se o meu pai
soubesse!... Reprimia-me, reprimia-me
tanto!... Não imaginas, era uma tortura
constante: tudo o que eu fazia era mal
feito, nada do que me saísse das mãos o
contentava, quando me dirigia a palavra era
só para me deitar abaixo! Vivi num stress
contínuo... Foi por causa do meu pai que
comecei a usar máscara. E casei, e tive dois
filhos, e pratiquei as artes marciais... Sou
um bom samurai… Tradições fortes, valiosas,
infelizmente perdidas... Os samurais viviam
para a honra e para as coisas espirituais, e
desprezavam o dinheiro...
Máscara
(Para a
plateia) – A tradição deve ser
perpetuada se for boa em si, agora se é
tradição o sofrimento infligido a si mesmo
ou a outrem, vade retro... Abaixo a
tradição! Viva a modernidade!
Yukio
Mishima - Já a
minha avó pertencia a uma família de
samurais. Enlouqueceu, não me deixava
conviver com outras crianças… A única
memória boa que conservo dela é a de me ter
iniciado no kabuki...
Máscara
– Kabuki?!...
Yukio
Mishima – Teatro
nô, o teatro tradicional japonês... Eu
mostro...
(Número de teatro kabuki) |