D. Sebastião –
Meu S. Sebastião, ó divino,
Faz-me santo como tu!
Penetrem-me as tuas
flechas,
Sinta as dores de que
estremeces,
Quero ser santo como tu!
Não suporto mais esta
agonia!
A avó pede que eu case,
E o Cardeal diz que já
achou noiva!
Margarida de Valois, a
escolhida,
É mais ou menos da minha
idade,
Tem doze anos e meio.
Mas eu a Margot não quero!
Mulheres não quero
Nem essa nem outra
Por nada desta vida!
(Irado, dá um pontapé
no genuflexório)
Eu não quero casar,
Eu não quero saber de
mulheres,
Eu quero ficar singelo
como tu,
Meu Sebastião!
(Gira pela cena,
enraivecido, batendo com portas e
pontapeando objectos)
Querem que case para ter
herdeiro
E Portugal passar de mim
para o filho,
Sem ir parar o trono ao
estrangeiro!
O medo que vem de Castela,
Ai!, o medo que vem de
Castela!
Aqui, quem quer ou não
quer sou eu,
El-rei D. Sebastião,
Capitão de Deus e das
estrelas!
De herdeiro não preciso
ainda
Sou muito novo, tenho
tanto tempo…
(Vai à secretária
buscar um documento)
O Câmara quer que eu
assine
O maldito documento!
Meu pai morreu com
dezasseis anos
Por ter casado tão cedo
E minha mãe fornicado
Todo o dia, sem descanso!
(Muda de tom,
enternece-se)
Dizem que não, que se
amavam
Perdidamente
E que morreu de diabetes!
Sentia muita sede, mas não
devia beber água!
Uma noite, ardente em
febres
Recolheu na cortina água
da chuva
E tanta bebeu que partiu
para outro universo…
Ainda eu era Encoberto
No ventre da minha mãe,
Ainda eu era Encoberto…
(Desafiador,
caprichoso, deita fora a carta e põe-se a
brandir uma espada contra inimigos
invisíveis)
Casar?! Eu? Tenho o tempo
todo à minha volta!
Eu não morrerei nunca
Sou Capitão de Deus e
El-rei de Portugal!
Morrer é para os outros,
Não para mim,
Que sou de estirpe
imortal!
(Num grande gesto
dramático, pronuncia a frase dita em
Alcácer-Quibir)
Morrer, sim, mas devagar!
Eu hei-de viver para
sempre
Ao tempo, cem anos
mandarei dormir!
(Bate com o pé)
Todos me tormentam com
ordens
Todos me pressionam com
ensino!
Eu já sei o que é preciso!
Bom caçador sou, e
cavaleiro melhor ainda!
No Inverno passado,
Com doze anos apenas,
Matei o meu primeiro
javali!
Dei uma lição ao
Monteiro-mor
E tornei-me homem assim!
Todos me querem ensinar,
As línguas e a gramática
O florete e a matemática
O canto, a dança e a
etiqueta
E ninguém me dá descanso!
Ele é o Câmara, ele é o
Pedro Nunes
Que me atira à cara o seu
tratado da esfera!...
(Amansa)
Enfim, até gosto, Pedro
Nunes não é dos piores...
Sempre vale tanto como a
gramática
Aprender um cibinho de
aritmética…
E aprendo, tenho aprendido
A crónica dos reis, e até
a pavana real
Sei dançar, apesar da
perna um pouco manca...
Agora, casar, isso é que
não!
Todos querem que eu me
case?
Não caso, não caso, não
caso!
Juro que nunca hei-de
casar!
(Arrebata-se, como um
santo, ajoelhado diante de S. Sebastião)
Eu sou Capitão de Deus
Para os mouros converter a
Cristo!
Com Galaaz me quero
parecer
E também como ele, virgem,
virgem,
Virgem desejo ser,
Para o Santo Graal
possuir!
(Levanta-se, brinca com
a espada, atacando moinhos de vento, e
cantarola uma canção do filme «O homem de La
Mancha»)
Dream, the impossible
dream…
Vencer, vencer a grande
batalha,
Ser alto, o mais belo e o
mais sublime,
E África, a África toda
tomar!...
Aqui, quem manda, sou eu!
E eu não me caso tão moço
E mesmo a velho chegando
Mulher não quero, nem
amante!
Minha avó que se dane,
E o cardeal que se frite
Nas ardentes sertãs do
Inferno!
Eu sou quem mais pode
aqui!
Eu sou el-rei D.
Sebastião,
Rei de Portugal e dos
Algarves,
D'aquém e d'além mar em
África,
Senhor do Brasil, da Guiné
e da conquista,
Navegação e comércio da
Etiópia,
Arábia, Pérsia e Índia…
(Soluça, faz beicinho,
anda de gatas, ampara-se à secretária como se fosse um bebé
agarrado às grades do berço)
Eu sou o Bastião, o
Bastiãozinho!
Aqui sozinho em Lisboa…
Meu pai morreu antes de eu
ser nado,
Minha mãe foi para Espanha
E deixou-me abandonado…
Mamã!... Mamã!... Mamã…
(Chama; cansado, de pé,
abre os braços diante de S. Sebastião e
pergunta ao santo o que Cristo, na cruz,
perguntou ao Pai)
Mãe, porque me
abandonaste?
(Pausa. Recompõe-se,
enche o peito de ar, desafia o mundo)
Eu sou el-rei D.
Sebastião!
Rei de Portugal e dos
Algarves,
D'aquém e d'além mar em
África,
Senhor do Brasil, da Guiné
e da conquista,
Navegação e comércio da
Etiópia,
Arábia, Pérsia e Índia…
Casar, não caso!
E aqui, quem manda sou eu!
(Devaneia, encostado a
S. Sebastião; acaricia o santo; este fica
extasiado, mas imóvel como uma estátua)
Querer, quero outra coisa…
Mais alta…
Eu quero ser formoso para
além da formosura!
Eu quero a beleza do herói
mais puro!
Eu quero ser como tu, que
és o mais belo dos homens,
Eu quero ser como tu, que
és o mais querido dos santos!
Sebastianus, o amado,
Sebastianus, o adorado!
Eu quero como tu ser
Sebastianus, o divino!
Dói-me ser manco, e torto
E ter dedos a mais que os
outros,
Apesar de me chamarem
messias, e O Desejado...
Ouve as preces de quem te
adora
E desce desse lugar de
tortura!
Deixa-me desatar-te os
pulsos magoados
Deixa-me tirar-te as setas
penetrantes
Deixa-me sarar-te as
feridas com beijos,
Deixa-me abraçar-te até
saciar a tua sede,
Deixa-me possuir-te a
santidade,
Deixa-me ser soldado e ser
herói
Já que, para tortura, Deus
me fez fraco o bastante!
Meu S. Sebastião, ó
divino,
Faz-me lindo como tu!
(Chora
convulsivamente) |