Judite Maria Zamith Cruz

PSICOLOGIA DO SONHO E DO MITO - II
Interpretações de sonhos e grandes narrativas espirituais

INDEX

Introdução

1. Interpretação dos sonhos por Sigmund Freud

2. Interpretação dos sonhos por Carl Jung

2.1. Sonho de primeiro nível – não simbólico

2.2. Sonho de segundo nível – confuso

2.3. Sonho de terceiro nível – simbólico

3. Que sentido podem fazer certos sonhos?

3.1. Antiga visão da exterioridade dos sonhos

4. Grandes narrativas espirituais expressas em sonhos: sentidos de vida

4.1. Exemplares de literatura alegórica do Ocidente

4.2. Mito do povo baruya da Nova Guiné: as aventuras duma mulher primordial «casada» com uma árvore

5. A grande narrativa cristã no mito do pecado original

Discussão final

Referências - Fontes de ilustração

4.2. Mito do povo baruya da Nova Guiné: As aventuras duma mulher primordial «casada» com uma árvore

Poderia ser relatado o modo de vida do povo baruya da Papua na Nova Guiné – Oceânia no que diz respeito às suas práticas. Seleccionou-se antes um dos seus mitos mais secretos para recontar. Narra a estória do acto sexual imaginário da primeira mulher (1) na criação do mundo:

Kouroumbingac vivia sozinha, sem um homem que a perseguisse na jornada nefasta da vida. Tinha por companhia um cão selvagem, Djoué.

Ao primeiro dia, ela comeu uma quantidade exorbitante de frutos duma árvore gigante e ficou grávida. Ela era gulosa e insaciável no seu desejo.

O dia passou ameno e, pela calada da noite, Djoué não suportou o desaforo de ser substituído. Entrando pelo sexo no ventre da mulher, comeu a cabeça do feto.

Triste por perder a sua filha, Kouroumbingac continuou o seu trajecto de vida sem reflectir, tão absorta estava na amarga sorte. Mas, passado tempo, voltou a prevaricar comendo outros frutos da estranha árvore.

De novo ficou grávida e o seu cão apercebendo-se da segunda ocorrência indesejada voltou a penetrar na sua barriga para se alimentar das pernas e dos braços do feto.

Dessa vez, Kouroumbingac deu à luz um menino morto.

A mesma experiência não acontece três vezes. Kouroumbingac tanto matutou que percebeu o acto malvado ao ver sangue no corpo do companheiro.

No encalço do cão, saltou ramadas e desfez-se em lágrimas para o perseguir, com ganas de o matar. Ela correu pelos montes e vales daquela terra divina. Estafada, nem descansava nem comia frutos.

Djoué encontrou refúgio num buraco bem no fundo do monte. Lá ficou encolhido, quietinho.

Ela deixava de o ver ao longe… Que fazer? Com o passar do tempo, a mulher tornava-se mais atenta e passava a recolher os indícios do rasto do malvado, invariavelmente. Uma pegada aqui, outra ali… Ao fim duma encruzilhada lamacenta, juntou as provas e não teve dúvida: Djoué atirara-se ao lugar onde terminavam as suas marcas.

Chegada ao abismo, Kouroumbingac colocou árvores em cima da cova para lhe bloquear a saída. Abandonava o cão selvagem à morte.

No entanto, o animal era mágico e saiu do fosso na forma de águia, «o Pássaro do Sol».

Esgueirando-se na caverna ficariam os seus ossos e carne que se transformaram nos seres vivos.

A mulher tresloucada lá ia aparentemente tranquila por se ter livrado do bicho.

Na sua atribulada viagem de vida ela voltava a ter fome e a comer sem cuidado da grotesca árvore da vida.

Teve finalmente um filho saudável e não viu mais rasto de Djoué para a atazanar.

Todavia, quando o filho cresceu teve relações sexuais com ela, acto de que nasceriam um rapaz e uma rapariga. O incesto voltou a acontecer, tendo os filhos do primeiro filho-homem crescido e dado origem aos habitantes da Nova Guiné, em particular aos baruya (2).

Na actualidade, o cão persiste junto do povo baruya em espírito e o Sol será o super-pai da tribo que nasceu da árvore masculina, um ser anterior ao homem. No tempo irreal, os baruya tiveram, portanto, uma mãe e dois pais. O Sol-pai completou os embriões humanos e a árvore proibida foi a realidade configurada da força de criação do mundo. O cão, coitado, foi o anti-super-pai. O que Sol-pai fez, o cão desfez em dois tempos.

Então como é que o super-pai Sol conseguiu favorecer as relações sexuais entre os baruya?

As duas lógicas do imaginário dos baruya são a seguir elucidadas: Os primeiros baruya tinham o sexo e o ânus inoperantes e unidos. Ou foi o Sol a lançar uma pedra de sílex ao fogo que, ao estalar, esburacou o pénis do homem, a vagina da mulher e o ânus de ambos. Desde então, a tribo passou a poder copular e a defecar (3).

Em outra versão corrente, entre os habitantes da floresta (4), é a mulher a tomar a iniciativa: foi a mulher a observar, em primeira-mão, que os dois sexos estavam fechados.

Preparou-se, dessa feita, para introduziu num tronco de bananeira um osso afiado da asa de morcego.

O homem, como sempre descuidado, cravou esse osso no pénis e furou-o ao subir à árvore.

Eis senão quando, cego de raiva e de dor, o homem pegou num tronco de bambu deveras cortante e, com um só golpe, rachou o sexo da mulher, abrindo-o.

Com esta perspicaz solução para o problema sexual, o Sol desaparecia da cena misteriosa e tornava-se evidente e necessário (?) sofrer na carne para que os órgãos sexuais existam.

(1) AA.VV. (2004, pp. 204-205, 218-219 e 221).

(2) AA.VV., ibid, pp. 204-205 e 221.

(3) AA.VV., ibid, pp. 218-219.

(4) AA.VV., ibid, p. 219.

Judite Maria Zamith Cruz é doutorada em Psicologia pela Universidade do Minho, onde lecciona cursos de licenciatura e mestrado dedicados ao estudo do desenvolvimento humano e do auto-conhecimento do profissional de educação, desde 1996, é membro de instituições nacionais e internacionais dedicadas ao estudo e investigação da sobredotação, talento e criatividade e, em 1997, integrou equipa internacional e interdisciplinar, coordenada pela Professora Doutora Ana Luísa Janeira, nos domínios de ciência, tecnologia e sociedade - «Natureza, cultura e memória: Projectos transatlânticos». Colabora, desde 2000, no Instituto de Estudos da Criança, em projectos centrados na educação matemática; depois, na área da língua portuguesa e artes plásticas, como membro do Centro de Investigação «Literacia e Bem-Estar da Criança» (LIBEC) da Universidade do Minho .

Entre Janeiro e Julho de1982 foi professora de psicologia e de pedagogia em Escola de Formação de Professores do Ensino Básico de Torres Novas. De Junho a Setembro de 1982, assumiu o lugar de Assistente Estagiária na Universidade de Lisboa – Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, de que se afastou para desempenhar funções de psicóloga clínica em cooperativa dedicada a crianças e jovens deficientes motores e mentais, em Lisboa – CRINABEL (1982-1985). De 1985 a 1988 foi professora do Ensino Secundário, em Braga, leccionando a disciplina de psicologia na Escola D. Maria II. De novo ocupou funções de psicóloga clínica em associação dedicada à educação de crianças e jovens deficientes auditivos (APECDA-Braga), entre 1988 e 1992. Em 1987, realizou trabalho como psicóloga no Hospital Distrital de Barcelos, de que se afastou em 1990 para efectuar curso de mestrado. Em 1992 ocupou o ligar de Assistente de metodologia de investigação, na Universidade do Minho, em Braga, onde é professora auxiliar.