Judite Maria Zamith Cruz

PSICOLOGIA DO SONHO E DO MITO - II
Interpretações de sonhos e grandes narrativas espirituais

INDEX

Introdução

1. Interpretação dos sonhos por Sigmund Freud

2. Interpretação dos sonhos por Carl Jung

2.1. Sonho de primeiro nível – não simbólico

2.2. Sonho de segundo nível – confuso

2.3. Sonho de terceiro nível – simbólico

3. Que sentido podem fazer certos sonhos?

3.1. Antiga visão da exterioridade dos sonhos

4. Grandes narrativas espirituais expressas em sonhos: sentidos de vida

4.1. Exemplares de literatura alegórica do Ocidente

4.2. Mito do povo baruya da Nova Guiné: as aventuras duma mulher primordial «casada» com uma árvore

5. A grande narrativa cristã no mito do pecado original

Discussão final

Referências - Fontes de ilustração

3.1. Antiga visão da exterioridade dos sonhos

As acções e mudanças atrás salientadas podem ser observadas como «bizarras» (ou não) aos olhos da sonhadora ou do sonhador.

Uma forma de eliminar a pertinência do sonho é considerá-lo um produto de algo exterior: o que se viu lá fora, o que se comeu e afectou a digestão... Outra possibilidade será ver no sonho bichos e monstros, causadores de pesadelos.

No século XVI, a gravura do exímio arquitecto e pintor Rafael (1483-1520) tomava o sonho como consequência de forças externas. Somente mais tarde o sonho retomou o seu lugar: o «eu» do sonhador, não necessariamente dissociado do contexto vivido. Durante anos não se havia aproximado o sonho da mente, mas do exterior físico. A psicologia do sonhador estava ausente.

Figura nº 2 – Rafael (1483-1520): «Um Homem Atormentado pelos seus Sonhos».

No século XVIII, os ideais falhariam como sonhos. A guerra era devastadora e a razão iluminada impôs-se ao velho poeta ou ao crente desmoralizado.

O poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) (1) escrevera, no livro Tasso, o seguinte: «Os feios e ambíguos pássaros, / triste cortejo da noite, / Enxameiam e esvoaçam à roda / da minha cabeça.». O trágico poeta Torquato de Tasso (1544-1595) já tivera que ser internado em prisões, asilos e hospitais devido a instabilidade psíquica.

Por sua vez, o pintor Francisco de Goya y Lucientes (1746-1828) ficou surdo e, desde então, o mundo mudou à sua volta. No início da sua carreira, ainda antes de qualquer sinal de surdez, começou por pintar em Madrid, ao estilo Neoclássico e Rococó, frescos para capelas e retratos da família real. Já nos últimos anos, Os Caprichos (1799) e Os Desastres da Guerra (1810-1820) são obras de arte de um hipoacúsico zangado com o Estado e a Igreja. Goya exilou-se em França.

Os tempos estariam ruins. Contudo, A Nona Sinfonia de Ludwig Beethoven (1770-1827) e A Viagem ao País dos Houyhnhnms (lê-se «whin-im»), no segundo volume de As Viagens de Gulliver, do brilhante texto de Jonathan Swift (1667-1745), retratam o final do mundo para autores ensurdecidos. Beethoven e Swift já não poderiam ser os mesmos depois de acometidos por deficiência auditiva.

Como se disse, quimeras e sombras malignas impuseram-se a Goya. Podem aqueles bichos híbridos ser morcegos ou mochos, com cabeças de gato… Nessa série intitulada Os Caprichos (mas a que o autor tinha anteriormente pensado chamar Sonhos), ele criou desenhos fabulosos inspirados em poesias de Quevedo (1580-1645), em que a cabeça atormentada se lhe enterra nos braços, como se observa na figura nº 3.

Figura nº 3 - Francisco de Goya: Capricho nº 43 - «O Sono da Razão Gera Monstros» (1797).

Desde os primórdios do século XVIII, os amigos preconizavam o Iluminismo e o apelo à razão mais sóbria (2). Ao «sono da razão» (nas palavras de Goya) sucedia-se a urgência em acordar.

De forma complementar é lido o Capricho nº 43 pelo explorador do cérebro Jean-Pierre Changeux (3), tendo referido que Goya apreende a naturezaneuronal da «razão» para representações mentais que conseguem escapulir-lhe do cérebro.

Em O Sono da Razão Gera Monstros, a racionalidade exprime uma condição psíquica de desespero e, inclusive, orgânica da mente.

É curioso que essa apreensão de um paralelismo psico-fisiológico, por trás do observável, foi igualmente vislumbrada na harmonia pré-arranjada debatida pelo judeu Baruch Espinosa (1632-1677), anteriormente ao conhecimento de objectos mentais (psíquicos) em sintonia com estruturas físicas cerebrais.

Aceitar o que não depende de nós, mas levanta várias questões, iria deixar de fazer sentido. Para quê continuar a aceitar os sonhos maus como fruto de acções de aves que nos atordoam com o seu insuportável piar?

A pensar na teoria dos sonhos de Freud, as competências críticas permaneciam fora dos portões de entrada dos sonhos.

(1) Johann Wofgang von Goethe (1790; cit. por E. L. Buchholz, 1999, trad. port. 2001, p. 50).

(2) Elke Linda Buchholz (1999, trad. port. 2001, pp. 50-51).

(3) Jean-Pierre Changeux (1994, trad. port. 1997, p. 66).

Judite Maria Zamith Cruz é doutorada em Psicologia pela Universidade do Minho, onde lecciona cursos de licenciatura e mestrado dedicados ao estudo do desenvolvimento humano e do auto-conhecimento do profissional de educação, desde 1996, é membro de instituições nacionais e internacionais dedicadas ao estudo e investigação da sobredotação, talento e criatividade e, em 1997, integrou equipa internacional e interdisciplinar, coordenada pela Professora Doutora Ana Luísa Janeira, nos domínios de ciência, tecnologia e sociedade - «Natureza, cultura e memória: Projectos transatlânticos». Colabora, desde 2000, no Instituto de Estudos da Criança, em projectos centrados na educação matemática; depois, na área da língua portuguesa e artes plásticas, como membro do Centro de Investigação «Literacia e Bem-Estar da Criança» (LIBEC) da Universidade do Minho .

Entre Janeiro e Julho de1982 foi professora de psicologia e de pedagogia em Escola de Formação de Professores do Ensino Básico de Torres Novas. De Junho a Setembro de 1982, assumiu o lugar de Assistente Estagiária na Universidade de Lisboa – Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, de que se afastou para desempenhar funções de psicóloga clínica em cooperativa dedicada a crianças e jovens deficientes motores e mentais, em Lisboa – CRINABEL (1982-1985). De 1985 a 1988 foi professora do Ensino Secundário, em Braga, leccionando a disciplina de psicologia na Escola D. Maria II. De novo ocupou funções de psicóloga clínica em associação dedicada à educação de crianças e jovens deficientes auditivos (APECDA-Braga), entre 1988 e 1992. Em 1987, realizou trabalho como psicóloga no Hospital Distrital de Barcelos, de que se afastou em 1990 para efectuar curso de mestrado. Em 1992 ocupou o ligar de Assistente de metodologia de investigação, na Universidade do Minho, em Braga, onde é professora auxiliar.