Judite Maria Zamith Cruz

PSICOLOGIA DO SONHO E DO MITO - II
Interpretações de sonhos e grandes narrativas espirituais

INDEX

Introdução

1. Interpretação dos sonhos por Sigmund Freud

2. Interpretação dos sonhos por Carl Jung

2.1. Sonho de primeiro nível – não simbólico

2.2. Sonho de segundo nível – confuso

2.3. Sonho de terceiro nível – simbólico

3. Que sentido podem fazer certos sonhos?

3.1. Antiga visão da exterioridade dos sonhos

4. Grandes narrativas espirituais expressas em sonhos: sentidos de vida

4.1. Exemplares de literatura alegórica do Ocidente

4.2. Mito do povo baruya da Nova Guiné: as aventuras duma mulher primordial «casada» com uma árvore

5. A grande narrativa cristã no mito do pecado original

Discussão final

Referências - Fontes de ilustração

Interpretação dos sonhos por Sigmund Freud

Freud escreveu o seu livro favorito, A Interpretação dos Sonhos, em 1900, pensando que o sonho é a via real para o inconsciente. S em preocupações de quantificação, tornar-se-ia uma obra em que Freud esqueceria a sua época. Penetrou nos seus desejos, fantasias inusitadas e imaginações florescentes, nomeadamente com o apoio da sua auto-análise (introspecção). Freud tinha sempre um caderno ao pé da cabeceira onde apontava os sonhos ao acordar. A Interpretação dos Sonhos tem uma «escrita poderosa, é uma dádiva literária à humanidade» (1). Contudo, não possui imagens visuais e espaciais ou expressões comuns de reconhecimento de sensações quinestésicas, ou seja, relativas à visualização criativa ou ao sentir o próprio corpo.

No livro, Freud tomou o sonho como um solo firme (2) e comunicou-o em carta ao seu amigo Willelm Fliess (1858-1928), um especialista berlinense em otorrinolaringologia.

De entre os sonhos típicos, Freud registou o sonhar nadar, andar nu entre gente vestida, perder um ente querido, caírem dentes...

O sonho de queda e o sonho de perda de dentes foram retratados no passado. O Cântico dos Cânticos (uma parte do Antigo Testamento) foi escrito no século X antes da nossa era. Atribuiu-se à lendária sabedoria do rei dos Israelitas, Salomão (m. 932 a. C.). Nessa obra, existe um epitalâmio, ou seja, um poema composto para ser lido em casamentos e festejar o enlace dos noivos. Neste epitalâmio simbólico pode ler-se (3): «Os teus dentes são como uma manada de ovelhas tosquiadas que voltam a subir ao bebedouro. Todas levam gémeos. Nenhuma é estéril.». Há muito tempo que a queda de dentes fora associada à fecundidade e ao parto (4).

Um sonho analisado por Freud (5) dá a seguir um exemplo dos mecanismos por ele integrados na sua teoria do sonho.

Uma bela tarde de Maio, uma sua paciente sonhou ter recebido um pente, um símbolo freudiano, ou seja, uma imagem disfarçada de ideias latentes, inconscientes. Não conseguiu ver quem lho teria dado.

O conteúdo manifesto do sonho, explícito e expresso por si em palavras, ficou limitado a alguns dados, mas deu-lhe acesso ao seu desejo inconsciente reprimido através do conteúdo latente.

A senhora recuou ao seu passado ou condição religiosa, nomeadamente, ser judia e ter-lhe sido proposto casamento por um homem não judeu, o que na sua posição escrupulosa levaria ao desentendimento entre cônjuges. O pretendente a namorado não lhe serviria... Como judeu, Freud conhecia bem as interdições derivadas da ascendência étnica judaica.

Em seguida, Freud quis saber os antecedentes directos do sonho - os restos diurnos. O que aconteceu na véspera do sonho?

A senhora vivera um conflito com a sua mãe e, ao pentear-se para ir para a cama, ocorreu-lhe a possibilidade de vir a sair de casa. Abandonar o lar?

Posteriormente, Freud usou o seu método de associação livre – a senhora deveria dizer o que lhe vinha à cabeça, sem hesitação – «a verdade». Não se dizia que a verdade é uma construção de significado atribuído, ou seja, a verdade freudiana é uma entre outras interpretações possíveis.

Ao termo «pente», ela associou o que ouviu na infância quando se penteou com um pente de outra pessoa: «Não faças isso! Vais misturar a raça!».

O que estaria em causa no conteúdo explícito do seu sonho seria o desejo inconsciente da senhora em misturar a raça judia, o que entendeu como querer ter filhos do homem que repelira e negara amar.

Existiria uma censura ao seu desejo, sendo o conteúdo latente do sonho acessível a partir do seu conteúdo manifesto - um pente...

Para Freud, sonhar era como uma autêntica «neurose», mas em miniatura e «normal». Afigurava-se ao psicanalista que seria o quotidiano a dar-lhe indicações sobre a psicopatologia. Como exemplo, se um pente dá informação de um desejo, esse indicador consuma uma deslocação e, inconscientemente, também deslocamos a energia emocional (libido) de ideias passíveis de nos criarem problemas ou conflitos internos para sintomas aparentemente absurdos: piscar os olhos, paralisar, não poder passar em um lugar...

Foi o que bastou a Freud para começar a retalhar a mente e a dividi-la em partes, a esquartejá-la, dando relevo ao inconsciente, conformado a ambições, desejos, apetites e pulsões/impulsos com frequência identificados como sexuais e/ou agressivos.

Com precisão, o que é que Freud concebeu através do sonho que não fosse anteriormente vislumbrado? Qual foi a sua descoberta maior?

De acordo com Norman MacKenzie (6), Freud pensou que os sonhos e os mitos seriam, por um lado, «expressões simbólicas de forças pessoais apresentadas como imagens verbais ou visuais de sentimentos» bem potentes e de carácter impulsivo e, por outro lado, ele imaginou que essas manifestações simbólicas decorriam de «experiências que remontam à infância e que, por diversas razões, não poderiam ser admitidas ao nível da consciência».

Sem dúvida que Freud pode ter reduzido temas complexos a esquemas simplificados e sexuais. Jung pensou antes em grandes temas ou narrativas no sentido de introduzirem significados para a vida, com origem não sexual. Esse foi outro modelo corrente a descobrir/decifrar por conhecedores do método ou por aqueles tidos por iniciados (7).

(1) Howard Gardner (1993, pp. 74-75).

(2) Norman MacKenzie (1965, trad. fr. 1966, p. 146).

(3) Cântico dos Cânticos (1997, 2ª ed. 1999, p. 47). A tradução realizada nessa 2ª edição da obra é outra: «teus dentes rebanho de ovelhas tosquiadas / que sobem do banho / todas geraram suas crias / nenhuma há estéril entre elas.»

(4) Norman MacKenzie (1965, trad. fr. 1966, p. 98).

(5) Richard Appignanesi (1979, trad. port. 1982, 2ª ed., pp. 63-67).

(6) Norman MacKenzie (1965, trad. fr. 1966, p. 99).

(7) Entre muitos outros, Annie Teillard (1970, trad. port. 1972) apresentou sonhos analisados na perspectiva de Carl Jung.

Judite Maria Zamith Cruz é doutorada em Psicologia pela Universidade do Minho, onde lecciona cursos de licenciatura e mestrado dedicados ao estudo do desenvolvimento humano e do auto-conhecimento do profissional de educação, desde 1996, é membro de instituições nacionais e internacionais dedicadas ao estudo e investigação da sobredotação, talento e criatividade e, em 1997, integrou equipa internacional e interdisciplinar, coordenada pela Professora Doutora Ana Luísa Janeira, nos domínios de ciência, tecnologia e sociedade - «Natureza, cultura e memória: Projectos transatlânticos». Colabora, desde 2000, no Instituto de Estudos da Criança, em projectos centrados na educação matemática; depois, na área da língua portuguesa e artes plásticas, como membro do Centro de Investigação «Literacia e Bem-Estar da Criança» (LIBEC) da Universidade do Minho .

Entre Janeiro e Julho de1982 foi professora de psicologia e de pedagogia em Escola de Formação de Professores do Ensino Básico de Torres Novas. De Junho a Setembro de 1982, assumiu o lugar de Assistente Estagiária na Universidade de Lisboa – Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, de que se afastou para desempenhar funções de psicóloga clínica em cooperativa dedicada a crianças e jovens deficientes motores e mentais, em Lisboa – CRINABEL (1982-1985). De 1985 a 1988 foi professora do Ensino Secundário, em Braga, leccionando a disciplina de psicologia na Escola D. Maria II. De novo ocupou funções de psicóloga clínica em associação dedicada à educação de crianças e jovens deficientes auditivos (APECDA-Braga), entre 1988 e 1992. Em 1987, realizou trabalho como psicóloga no Hospital Distrital de Barcelos, de que se afastou em 1990 para efectuar curso de mestrado. Em 1992 ocupou o ligar de Assistente de metodologia de investigação, na Universidade do Minho, em Braga, onde é professora auxiliar.