Freud escreveu o seu livro favorito, A Interpretação dos Sonhos, em 1900, pensando que o sonho é a via real para o inconsciente. S em preocupações de quantificação, tornar-se-ia uma obra em que Freud esqueceria a sua época. Penetrou nos seus desejos, fantasias inusitadas e imaginações florescentes, nomeadamente com o apoio da sua auto-análise (introspecção). Freud tinha sempre um caderno ao pé da cabeceira onde apontava os sonhos ao acordar. A Interpretação dos Sonhos tem uma «escrita poderosa, é uma dádiva literária à humanidade» (1). Contudo, não possui imagens visuais e espaciais ou expressões comuns de reconhecimento de sensações quinestésicas, ou seja, relativas à visualização criativa ou ao sentir o próprio corpo.
No livro, Freud tomou o sonho como um solo firme (2) e comunicou-o em carta ao seu amigo Willelm Fliess (1858-1928), um especialista berlinense em otorrinolaringologia.
De entre os sonhos típicos, Freud registou o sonhar nadar, andar nu entre gente vestida, perder um ente querido, caírem dentes...
O sonho de queda e o sonho de perda de dentes foram retratados no passado. O Cântico dos Cânticos (uma parte do Antigo Testamento) foi escrito no século X antes da nossa era. Atribuiu-se à lendária sabedoria do rei dos Israelitas, Salomão (m. 932 a. C.). Nessa obra, existe um epitalâmio, ou seja, um poema composto para ser lido em casamentos e festejar o enlace dos noivos. Neste epitalâmio simbólico pode ler-se (3): «Os teus dentes são como uma manada de ovelhas tosquiadas que voltam a subir ao bebedouro. Todas levam gémeos. Nenhuma é estéril.». Há muito tempo que a queda de dentes fora associada à fecundidade e ao parto (4).
Um sonho analisado por Freud (5) dá a seguir um exemplo dos mecanismos por ele integrados na sua teoria do sonho.
Uma bela tarde de Maio, uma sua paciente sonhou ter recebido um pente, um símbolo freudiano, ou seja, uma imagem disfarçada de ideias latentes, inconscientes. Não conseguiu ver quem lho teria dado.
O conteúdo manifesto do sonho, explícito e expresso por si em palavras, ficou limitado a alguns dados, mas deu-lhe acesso ao seu desejo inconsciente reprimido através do conteúdo latente.
A senhora recuou ao seu passado ou condição religiosa, nomeadamente, ser judia e ter-lhe sido proposto casamento por um homem não judeu, o que na sua posição escrupulosa levaria ao desentendimento entre cônjuges. O pretendente a namorado não lhe serviria... Como judeu, Freud conhecia bem as interdições derivadas da ascendência étnica judaica.
Em seguida, Freud quis saber os antecedentes directos do sonho - os restos diurnos. O que aconteceu na véspera do sonho?
A senhora vivera um conflito com a sua mãe e, ao pentear-se para ir para a cama, ocorreu-lhe a possibilidade de vir a sair de casa. Abandonar o lar?
Posteriormente, Freud usou o seu método de associação livre – a senhora deveria dizer o que lhe vinha à cabeça, sem hesitação – «a verdade». Não se dizia que a verdade é uma construção de significado atribuído, ou seja, a verdade freudiana é uma entre outras interpretações possíveis.
Ao termo «pente», ela associou o que ouviu na infância quando se penteou com um pente de outra pessoa: «Não faças isso! Vais misturar a raça!».
O que estaria em causa no conteúdo explícito do seu sonho seria o desejo inconsciente da senhora em misturar a raça judia, o que entendeu como querer ter filhos do homem que repelira e negara amar.
Existiria uma censura ao seu desejo, sendo o conteúdo latente do sonho acessível a partir do seu conteúdo manifesto - um pente...
Para Freud, sonhar era como uma autêntica «neurose», mas em miniatura e «normal». Afigurava-se ao psicanalista que seria o quotidiano a dar-lhe indicações sobre a psicopatologia. Como exemplo, se um pente dá informação de um desejo, esse indicador consuma uma deslocação e, inconscientemente, também deslocamos a energia emocional (libido) de ideias passíveis de nos criarem problemas ou conflitos internos para sintomas aparentemente absurdos: piscar os olhos, paralisar, não poder passar em um lugar...
Foi o que bastou a Freud para começar a retalhar a mente e a dividi-la em partes, a esquartejá-la, dando relevo ao inconsciente, conformado a ambições, desejos, apetites e pulsões/impulsos com frequência identificados como sexuais e/ou agressivos.
Com precisão, o que é que Freud concebeu através do sonho que não fosse anteriormente vislumbrado? Qual foi a sua descoberta maior?
De acordo com Norman MacKenzie (6), Freud pensou que os sonhos e os mitos seriam, por um lado, «expressões simbólicas de forças pessoais apresentadas como imagens verbais ou visuais de sentimentos» bem potentes e de carácter impulsivo e, por outro lado, ele imaginou que essas manifestações simbólicas decorriam de «experiências que remontam à infância e que, por diversas razões, não poderiam ser admitidas ao nível da consciência».
Sem dúvida que Freud pode ter reduzido temas complexos a esquemas simplificados e sexuais. Jung pensou antes em grandes temas ou narrativas no sentido de introduzirem significados para a vida, com origem não sexual. Esse foi outro modelo corrente a descobrir/decifrar por conhecedores do método ou por aqueles tidos por iniciados (7).
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