JULIA VALESCA PAIS:
"A noite é dos pássaros"

E OS PÁSSAROS POUSARAM SOBRE O MEU PAPEL - REFLEXÕES CRÍTICAS SOBRE O ROMANCE “A NOITE É DOS PÁSSAROS”

INDEX
Objetivo
Resumo
Sumário
INTRODUÇÃO
1 – Nicodemos Sena e sua fortuna crítica
2 – Hans Staden e Duas viagens ao Brasil
3 – Nicodemos Sena e A noite é dos pássaros
4 – Uma leitura comparada
         4.1 – O elemento religioso
         4.2 – O caráter de Alexandre Rodrigo Ferreira X Hans Staden
         4.3 – O relato dos costumes tribais
         4.4 – A diferença de gênero entre as obras
5 – A noite é dos pássaros e a Pós-Modernidade
         5.1 – O ecletismo estilístico em A noite é dos pássaros
         5.2 – A intertextualidade em A noite é dos pássaros
         5.3 – O  hibridismo em A noite é dos pássaros
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
ANEXO: ENTREVISTA COM NICODEMOS SENA

4. 4 – A diferença de gêneros entre as obras

         Sabendo-se que a ficção é um ato ou efeito de fingir, simular, inventar e, portanto, uma criação imaginária, poder-se-á, num primeiro instante, ver o romance A noite é dos pássaros como não pertencente ao gênero ficcional, pois em seu conteúdo há referências a fatos e personagens reais. Contudo, esses dados são usados como pano de fundo do romance de Nicodemos Sena. O autor apenas utilizou-se deles com a intenção de montar a sua narrativa. A capacidade que o autor possui em juntar a imaginação criadora e os fatos reais utilizados é tão grande que seria impossível não ver o livro aqui estudado como uma narrativa de ficção.
         A narrativa é feita em primeira pessoa através do personagem Alexandre Rodrigo Ferreira, o qual protagoniza a história juntamente com a índia Potira, tendo como principais personagens secundários os índios Alkindar-miri, responsavél pela guarda do prisioneiro; Guaratinga-açu, o pai de Potira, o vilão Nhaêpepô-oaçu, irmão de Potira que deseja devorar o português o mais rápido possível, Itajibá, irmão de criação de Potira e por quem ela guarda grande afeto, causando, inclusive, ciúmes a Alexandre; além do Sabiá, personagem vivido por Alexandre em seus sonhos; e o caburé-açu, uma grande águia, que revela ser seu pai.
         O enredo conta como era a vida amazônica em meados do século XVIII e, inserido nesse contexto, o personagem Alexandre conviverá com os índios e passará por conflitos e tensões. Já no início do romance o autor expõe – com um tom de ironia, característica que irá desenvolver ao longo de todo o seu texto – o drama que o personagem irá vivenciar.

Não fosse a sombria expectativa da minha morte próxima, eu, Alexandre Rodrigo Ferreira, naturalista português, no verdor de meus vinte e cinco anos, poder-me-ia julgar um homem feliz, porquanto, já em 1751, quando o caso se deu, não havia cristão no velho mundo que não tivesse ouvido falar do modo hospitaleiro como os tupinambás no Brasil tratavam os seus prisioneiros, dando-lhes do bom e do melhor, e de um tudo, para depois devorá-los a “cauim pepica”, isto é, assados e regados com bebida. Nem na casa paterna, onde dormi anos no mesmo quarto com onze irmãos, nem depois, naturalista formado na Academia de Lisboa, em minhas andanças pelo mundo, sentira-me melhor instalado. (1)

         O clímax maior do romance ocorre no último capítulo “Já escuto o rufar dos tambores” quando Alexandre nas asas do caburé-açu diz ter medo de abrir os olhos e ver a realidade que o espera. Nesse momento, o autor envolve o leitor no clima de grande tensão e expectativa pelo qual o personagem está passando, fazendo com que sinta a mesma ansiedade e o mesmo medo do personagem. Essa grande tensão com que o autor “prende” o leitor até os últimos momentos, pois o desenlace só ocorre na última página do romance, mostra a grande habilidade que Nicodemos Sena demonstra ter com o fio narrativo, mantendo a ansiedade do leitor até o final da trama.
         O fluxo narrativo é dominado pelo tempo psicológico. O narrador-personagem desenvolve toda a narrativa de acordo com as vivências subjetivas pelas quais passa, ou seja, o tempo narrativo é empregado ao longo das experiências vividas por Alexandre como, o relacionamento amoroso com Potira, o cativeiro e os sonhos, responsáveis por determinar as ações que o personagem irá protagonizar ao longo do romance. Como essas ações serão vivenciadas em um tempo psicológico, consequentemente, o espaço psicológico terá presença marcada. Contudo, o personagem também vive suas experiências em um espaço físico.
         É no espaço psicológico, presente principalmente nos sonhos, que Alexandre tenta fugir da realidade vivenciada naquele momento, reflete sobre a questão da vida e da morte, vive intensamente seu amor com Potira, transforma-se em um pássaro, tenta encontrar uma razão para a vida e reflete sobre seus medos e conflitos internos. Será o lugar usado pelo português para a reflexão.
         Já o espaço físico, a aldeia indígena, será o cenário no qual o personagem irá relacionar-se com os índios, sua cultura e crenças, mas também com as constantes ameaças de ser devorado por eles, o maior perigo pelo qual passou na vida. Será o lugar onde ele viverá a realidade exata daquele momento, o medo maior, o de ser morto e devorado. É nesse ambiente de fatores mentais e materiais que Nicodemos Sena desenvolve a narrativa do naturalista brasileiro, considerado português, que decide voltar ao Brasil e acaba capturado justamente por índios que consideram o povo português como inimigo.
         Duas viagens ao Brasil poderia ser considerada como uma obra de ficção devido a apresentar algumas características desse gênero. Possui um narrador-personagem, personagens secundários, conflitos e intrigas. Entretanto, tudo o que é contado, desde os personagens até a história em si, são fatos reais, e não uma imitação da realidade, fazendo com que o livro não possa pertencer ao gênero ficcional. Além disso, a narração é direta, o alemão descreve de maneira quase que fotográfica tudo o que ocorre com ele. O intuito demonstrado é o de contar claramente, sem rodeios, num diálogo direto com o leitor, toda a angústia enfrentada enquanto esteve como prisioneiro dos índios. Essas características comprovam que o livro pertence ao gênero ensaístico, pois como definido por Afrânio Coutinho (COUTINHO, 2006: 117) no gênero ensaístico há uma explanação direta dos pontos de vista do autor, dirigindo-se em seu próprio nome ao leitor ou ao ouvinte.
         Ainda segundo Afrânio Coutinho (COUTINHO, 2006: 118,119), o estilo do gênero ensaístico possui uma relação muito próxima com a palavra falada, traduz diretamente o pensamento, a experiência e a observação do autor. A forma não é fixa e adequa-se à necessidade da expressão. O objetivo do ensaio é mostrar a verdadeira reação de uma pessoa diante do impacto da realidade e por isso, é um texto mais flexível, com maior liberdade no estilo. É o que procurou fazer Hans Staden ao escrever o seu relato de viagem, descrever tudo o que ocorreu com ele, prova disso são os nomes dos capítulos dos dois livros. Quase todos iniciam com a palavra “como”, exemplos: “Como está situada São Vicente”; “Como fui aprisionado pelos selvagens e como isso aconteceu”; “Como me trataram de dia, quando me levaram às suas casas’; “Como fazem fogo”; “Como cozinham a comida”; “Como eles contratam os casamentos”, entre outros. O caráter descritivo é tão grande que ele chega até a escrever um capítulo só para contar uma dor de dente que sentiu enquanto esteve em cativeiro.

Aconteceu que, enquanto eu estava reduzido a esta miséria (e como se costuma dizer: uma desgraça nunca vem só), um dente começou a doer-me tanto que quase desanimei de todo. O meu senhor veio a mim e me perguntou porque comia tão pouco. Respondi que me doía um dente. (2)

         Em momento algum de seu texto, Hans Staden pensou em não dizer a verdade, de fazer um relato fantasioso, muito ao contrário, ele queria que todos acreditassem inteiramente em tudo o que ele iria relatar, prova disso está na dedicatória do livro. O alemão solicitou ao Dr. Dryandri, um conceituado anatomista germânico da época, que a escrevesse. Hans sabia que esta dedicatória iria ratificar tudo o que escreveu em seu relato de viagem. Dr. Dryandri aceitou o convite por conhecer há mais de cinqüenta anos o pai de Hans Staden, o qual era “tido por franco, devoto e bravo e que estudou as belas artes” (STADEN, 2000: 08), e acreditava que o filho herdara as mesmas virtudes do pai.

(...) Não posso duvidar que este Hans Staden conte e escreva com exatidão e verdade a sua narrativa de viagem, não por tê-las colhidas de terceiros, mas de experiência própria, sem falsidade, sem querer tirar glória e nem fama para si, mas sim, unicamente, a glória de Deus, com louvor e gratidão por benefícios recebidos e pela sua libertação.(3)

         A finalidade desse capítulo foi a de destacar as diferenças mais marcantes entre os dois livros. Resta-nos analisar A noite é dos pássaros no contexto do Pós-Modernismo.

 
(1) SENA, Nicodemos. A noite é dos pássaros. Belém: Cejup, 2003. p.13.

(2) STADEN, Hans. Duas Viagens ao Brasil. São Paulo: Beca produções culturais, 2000. Livro I, cap. 27 p.68.

(3) ______, Hans. Duas Viagens ao Brasil. São Paulo: Beca produções culturais, 2000. Livro I, dedicatória p.09.