JÚLIA VALESCA PAIS ENTREVISTA NICODEMOS SENA,
AUTOR DO LIVRO "A NOITE É DOS PÁSSAROS"

Julia Pais: O nome do personagem principal de A noite é dos pássaros, Alexandre Rodrigo Ferreira, é uma homenagem ao naturalista baiano nascido no século XVIII Alexandre Rodrigues Ferreira, mas que é considerado português por ter partido aos 14 anos para Portugal. Porque o senhor decidiu homenageá-lo?

Nicodemos Sena: Para o meu personagem naturalista, busquei um modelo que enfeixasse em si, ao mesmo tempo, o ideal científico, a consciência crítica e a tolerância diante dos costumes do homem primitivo. Encontrei esse modelo em Alexandre Rodrigues Ferreira, que, mesmo vivendo muitos anos em Portugal, nunca deixou de ser brasileiro, pois só alguém muito apaixonado pelas coisas do Brasil seria capaz de escrever uma obra como “Viagem Filosófica”, o registro mais completo da natureza e das populações brasileiras de meados do século XVIII. Alexandre foi também o naturalista pioneiro da Amazônia. Tudo isso, entretanto, não evitou que ele fosse injustiçado, pois sua obra permaneceu inédita durante quase duzentos anos; só em 1974 o governo brasileiro resolveu editar “Viagem Filosófica”, enquanto em Portugal o esquecimento foi absoluto. Ele levou essa tristeza para o túmulo, em 1815.

Julia Pais: A religião cristã do homem branco não é valorizada pelo personagem Alexandre. Contudo, a todo tempo ela é citada. É possível dizer que aí está a visão do autor, o qual acredita que sempre há uma força superior “olhando por nós” e só não usou a valorização por parte de Alexandre a fim de não sobrepujar a religião indígena no romance?

Nicodemos Sena: Relembremos que o meu personagem naturalista anuncia-se ateu no começo da história, e essa postura intelectual era bastante arriscada, numa época em que a “Santa Inquisição” ainda perseguia quem ousasse divergir do cristianismo oficializado. Neste ponto, o personagem desvia-se do seu modelo, pois, a despeito de homenagear Alexandre Rodrigues Ferreira, não deixei que a “história” individual ou coletiva se impusesse à narrativa. Na verdade, o ateísmo do protagonista é um expediente do qual me vali a fim de questionar o dogmatismo religioso da Igreja Católica Apostólica Romana, em sua distorcida ânsia evangelizadora em plagas americanas. De outro lado, a tolerância que o personagem naturalista mostra em relação aos costumes bárbaros não autoriza a pensar que o ateu, sob os eflúvios do amor da indiazinha Potira, convertera-se a qualquer forma de deísmo. No fundo, menos que afirmar uma concepção religiosa ou explicar a origem do mundo, quis chamar a atenção do leitor para o antigo e ainda não superado conflito étnico-cultural entre o elemento selvagem e o civilizado, que permanece como um vulcão prestes a explodir no povo miscigenado. Entendo que a arte deve, ao mesmo tempo, ser lúdica e “pedagógica”, deleitando e também elevando a alma. Ao confrontar as crenças selvagens à visão civilizada, numa época que ainda nega existência real aos povos indígenas, estou apenas cumprindo a função social do artista que deve se opor a qualquer tipo de injustiça. Mas não tenho a priori uma mensagem moralizadora nem pretendo conduzir o leitor a optar por um destes dois mundos, até porque, infelizmente, tanto a teogonia indígena quanto a fé católica não se mostraram capazes de domar a besta que vive dentro do homem.
 
Julia Pais: A noite é dos pássaros apresenta características do romance folhetim e do romance histórico. Como devemos caracterizá-lo então? Como folhetim, histórico ou uma mistura dos dois?

Nicodemos Sena: Antes da edição em livro, “A noite é dos pássaros” apareceu em forma de folhetim no jornal “O Estado do Tapajós” (2003). Uma questão de oportunidade, já que o arrojado editor amazônico aventurou-se a publicar um romance nas páginas do seu jornal, o que muitos consideraram “loucura”, pois há muito um jornal brasileiro não lançava um folhetim. Felizmente, os leitores do jornal acompanharam avidamente a história. “A noite é dos pássaros” possui ingredientes do gênero folhetim – como o “suspense contínuo, enredos que se imbricam gradualmente, numa intencional mistura de tempo e espaço”, conforme observou a crítica paulista Dirce Lorimier Fernandes, em resenha publicada em “O Globo” (Rio de Janeiro, 8 de maio de 2004). Tais ingredientes permitiram que o tema repugnante do canibalismo adquirisse sabor agradável. Na verdade, “A noite é dos pássaros” é uma narrativa onírica, daí seu ritmo vertiginoso, característica também do romance-folhetim.

Quanto à relação de “A noite é dos pássaros” com o “romance histórico”, observo que, em “Guerra e Paz”, Tolstoi mostrou que a ficção pode ser mais verdadeira do que o relato histórico, isto porque a literatura de ficção, ao contrário do texto de História, instaura a dúvida e motiva o leitor a escrever a sua própria versão (na verdade, não há “história” nem “estória”, mas unicamente “versões”). “A noite é dos pássaros” é, antes de tudo, uma obra da imaginação. Há, sim, um argumento histórico sacado das crônicas, mas esse é apenas a tela que serve ao escritor. Há sim, como pano de fundo, o choque étnico-cultural que se dá entre o elemento autóctone e o invasor. E mesmo nisto há muito de ficção; ou acaso alguém é capaz de dizer com absoluta certeza de que modo viviam os primitivos moradores do Brasil? Encontrei muito preconceito e muita fantasia nos testemunhos, o que me permite afirmar, sem medo de errar, que a história até aqui conhecida do Brasil não passa de uma invenção (ou uma versão, ou inversão, ou perversão) dos vencedores. Através da ficção, que se assume desde logo como fantasia, procuro chegar senão à vida real, pelo menos à hipotética vida dos vencidos. “A noite é dos pássaros”, ao desmistificar o chamado “real”, pondo-o no mesmo plano da fantasia, aproxima-se mais da “narrativa onírica” do que do romance “histórico” ou do mero folhetim, cuja estrutura muitas vezes se presta apenas ao entretenimento.

Julia Pais: No posfácio do livro o senhor diz que usa o tupi antigo na fala dos personagens devido ao apelo da narrativa passada no século XVIII e pela grande importância que essa língua representa para a nossa cultura. Contudo, pergunto se a finalidade também não foi a de lembrar aos leitores que a língua tupi deve ser considerada como uma herança que não pode ser esquecida e, portanto, devemos prezar pela sua valorização?

Nicodemos Sena: Sim, a língua tupi deve ser valorizada, não como coisa morta, de museu, pois ainda é falada por 270 mil pessoas, de 400 povos indígenas, através de 170 línguas derivadas do tupi antigo (o tupinambá). A família mais numerosa do tronco tupi é a tupi-guarani, cujas línguas (19 no total) são faladas por 33 mil índios, localizados em sua maioria nas áreas de floresta tropical e subtropical. Nessa família, o guarani (15 mil falantes) e o tenetehara (6.776 falantes) destacam-se entre os demais idiomas. Mas também as línguas do tronco macro-jê, que compreende 8 línguas faladas principalmente nos campos de cerrado, devem ser valorizadas.

O tupi foi amplamente usado nas expedições bandeirantes no sul do país e na ocupação da Amazônia. Os jesuítas estudaram a língua, traduziram orações cristãs para a catequese e o tupi se estabeleceu como língua geral (“nhengatu”, língua boa), ao lado do português, na vida cotidiana da colônia. Em 1757, o tupi foi proibido por uma Provisão Real. Nessa época, o português se fortaleceu com a chegada no Brasil de um grande número de imigrantes vindos da metrópole. Com a expulsão dos jesuítas do país, em 1759, o português fixou-se definitivamente como o idioma do Brasil, e o tupi entrincheirou-se nas aldeias indígenas, onde continua sendo falado em suas formas derivadas.

O português sofreu grande influência das línguas nativas, especialmente do tupi, a língua de contato entre europeus e índios. Do tupi subsistem palavras referentes à flora (como abacaxi, buriti, carnaúba, mandacaru, mandioca, capim, sapé, taquara, peroba, imbuia, jacarandá, ipê, cipó, pitanga, maracujá, jabuticaba e caju), à fauna (como capivara, quati, tatu, sagüi, caninana, jacaré, sucuri, piranha, araponga, urubu, curió, sabiá), nomes geográficos (como Aracaju, Guanabara, Tijuca, Niterói, Pindamonhangaba, Itapeva, Itaúna e Ipiranga) e nomes próprios (como Jurandir, Ubirajara e Maíra).

Além disso, o ritmo bárbaro e a profusão de cores do tupi impregnaram-se de tal modo na língua portuguesa do Brasil, que esta, comparada ao português falado em Portugal, parece alegre e rejuvenescida. Esse ritmo e essas cores também marcam a literatura tipicamente brasileira, desde “Prosopopéia”, de Bento Teixeira, passando por “O Uraguai” (Basílio da Gama), “Caramuru” (Santa Rita Durão), “I-Juca Pirama” e “Os Timbiras” (Gonçalves Dias), “Iracema” (José de Alencar), “Cobra Norato” (Raul Bopp), e, mais recentemente, “Repertório Selvagem” (Olga Savary).

Em “A noite é dos pássaros”, procurei verter em português o espírito selvagem dos nossos antepassados indígenas. Não escrevi o livro diretamente em tupi porque esta língua, a partir da proibição imposta pelo Marquês de Pombal (1757), tornou-se desconhecida para milhões de brasileiros, que chegam mesmo a crer que o tupi esteja morto, quando, na verdade, é o tupi da época do “descobrimento” que não é mais falado. Através de suas formas derivadas, o tupi continua tão vivo quanto o português, que também já não é o mesmo português que se falava na época da formação do Reino de Portugal. Hoje não é fácil entender o português de “Os Lusíadas” ou das “Ordenações Filipinas”, mas ninguém cometeria o equívoco de afirmar que o português morreu. Todavia, o “fim” do tupi foi decretado. A sociedade brasileira teima em minimizar ou negar a herança indígena, como se desse modo pudesse apagar um passado cheio de massacres e genocídios. Equívoco absurdo, cometido não só pela massa ignara, mas também por gente muito esclarecida. Machado de Assis, por exemplo, no artigo “Instinto de nacionalidade” (1873), escreveu: “É certo que a civilização brasileira não está ligada ao elemento indiano, nem dele recebeu influxo algum; e isto basta para não ir buscar entre as tribos vencidas os títulos da nossa personalidade literária”. Paradoxalmente, no mesmo artigo, Machado reconheceu o valor de “Iracema”, uma obra que bebe da cultura indígena.

Julia Pais: É nítido que para escrever esse romance foi necessária uma grande pesquisa, e isso está comprovado nas referências apresentadas no final do livro. Pode-se dizer que isso demonstra que o senhor teve uma grande preocupação e compromisso com o que iria apresentar aos leitores sobre a cultura indígena, mesmo tratando-se de uma obra de ficção?

Nicodemos Sena: O estudo racional do conhecimento humano vem de Aristóteles e foi desenvolvido, no século XVI, por Francis Bacon, que apresentou sua classificação das ciências, adotando o critério geral das faculdades da alma humana: “memória”, “razão” e “imaginação”. A História apresenta-se como “ciência da memória”, a Filosofia como “ciência da razão”, e a Poesia como “ciência da imaginação”. Adoto a classificação de Bacon. Quando me lanço a escrever um romance, procuro pôr em atividade todas as faculdades da minha alma. Apenas inverto a ordem de Bacon. Em primeiro lugar, ponho a imaginação, através da qual se concebe, gesta e conforma a obra de arte, pois a arte é essencialmente forma. (É também pela forma que a obra de arte realiza sua função lúdica); em seguida, coloco a razão, através da qual o leitor, convidado a “filosofar” sobre o tema, eleva-se acima do que é mesquinho. (O próprio autor é um “filósofo”, enquanto o romance é o instrumento com o qual ele deseja libertar os outros seres humanos); e, por último, a memória, sem a qual, em vez de uma história, teríamos um mero ajuntamento arbitrário de acontecimentos. (Mesmo na “escritura automática” dos surrealistas há uma ordem interna nos episódios, produzida pelo “fluxo” inconsciente do pensamento). Não há romance sem memória, assim como não há vida humana sem história. Nem pode haver romance sem a razão, a menos que não se queira resolver a perplexidade instaurada pela imaginação. (Há autores que buscam única e exclusivamente causar a perplexidade ou o espanto, como se a literatura fosse simplesmente uma câmara de terror). A imaginação, por mover-se na penumbra do inconsciente, talvez prescinda da pesquisa, a menos que o escritor se contente com o mero jogo das palavras, a “arte pela arte”, pouco se importando com os símbolos que elas representam. O mesmo não acontece com a razão e a memória. Como colocar em cena, por exemplo, o canibalismo praticado numa sociedade primitiva, sem estar muitíssimo seguro do que ele representa para aquela sociedade? Como dar voz ao selvagem, sem conhecer a estrutura de sua língua e o seu psiquismo? Como contrapor sensibilidades diversas sem conhecer as suas causas materiais? Em “A noite é dos pássaros” há uma combinação de imaginação, razão e memória. E muita pesquisa.

Julia Pais: No último capítulo, “Já escuto o rufar dos tambores”, uma águia que está conversando com o personagem principal (que se transformou em um pássaro) faz uma reflexão sobre a “cegueira” do homem em enxergar o invisível. Ele diz que para que o homem possa compreender a vida é preciso que ele ajuste os símbolos à realidade. É possível fazer uma relação desse trecho do romance ao mito da caverna de Platão?

Nicodemos Sena: Creio que há pontos de contato entre o diálogo do livro e o mito escrito por Platão. Por exemplo: a conversa entre o personagem e a águia acontece num “vôo”, assim como, no mito da caverna, a contemplação do mundo superior é o símbolo do caminho da alma em direção ao mundo inteligível; tal qual no mito da caverna, o prisioneiro Alexandre vê-se convidado a libertar-se da cegueira do mundo sensorial (visível) e buscar a sabedoria no mundo invisível; o conhecimento do verdadeiro Ser representa ainda a passagem do temporal ao eterno. A relação desse trecho do meu livro com o mito da caverna de Platão pode ser feita, independente da minha intenção, pois confesso que não pensei no mito da caverna quando escrevi “A noite é dos pássaros”. Entretanto, observo uma divergência entre os dois textos: a águia convida o personagem aprisionado a buscar a liberdade no auto-conhecimento, mas informa que este não poderá ser alcançado unicamente pelo esforço do humano, isto por que a liberdade que se alcança com a aquisição da sabedoria é uma dádiva do Um, o Todo-Poderoso. O guia de “A noite é dos pássaros”, 2400 anos depois de Platão, não crê que o homem consiga ver a realidade apenas com as luzes da ciência.

 
JULIA VALESCA PAIS:
"A noite é dos pássaros"