O romance A noite é dos pássaros, conta a história de Alexandre Rodrigo Ferreira – naturalista português capturado pela tribo indígena dos Tupinambás no ano de 1750 – que acaba se envolvendo com uma indiazinha de nome Potira. A personagem escolhida pelo autor é uma homenagem a Alexandre Rodrigues Ferreira, naturalista baiano nascido no ano de 1756, mas é considerado português por ter partido para Portugal aos 14 anos. Formou-se naturalista pela Faculdade de Leis da Universidade de Coimbra e só retornou ao Brasil em 1783, o que resultou em um livro chamado Viagem filosófica, no qual descreve as riquezas naturais do nosso país.
No romance, Alexandre é aprisionado por índios Tupinambás na foz do rio Amazonas. No cativeiro ele encontra um livro que foi parar na aldeia após um naufrágio. Trata-se de Duas viagens ao Brasil, do alemão Hans Staden, que, como já dito, também fora prisioneiro de índios da mesma tribo. O autor, então, utiliza-se dos fatos reais do livro de Hans para fazer o roteiro de seu romance, colocando neles a sua visão particular. Entre os fatos aproveitados do relato de viagem do alemão estão: a captura do naturalista pelos índios da tribo dos Tupinambás, considerados inimigos do povo português, ocorrida devido a Alexandre confiar sua segurança, bem como Hans Staden, a um índio carijó chamado Paiguara; a frase dita pelo prisioneiro ao chegar à tribo, “estou chegando eu, vossa comida”; as humilhações sofridas nas mãos dos índios; além de o índio escolhido para ser guardião do naturalista também chamar-se Alkindar-miri.
Tudo porque, assim como Hans confiara no índio carijó, também eu, em minhas andanças pelos arredores de Belém, onde viera pesquisar a flora e a fauna, entregara-me à proteção do safado de um índio chamado Paiguara, pertencente ao senhor que me hospedava, deixando-me levar por ele direitinho ao encontro dos tupinambás.
Ao acostarem as canoas, sou forçado a gritar, em tupi, diante da chusma de moços e velhos que sai das cabanas para ver-me: “Aju ne xé peê remiurama” (estou chegando eu, vossa comida).
Então fazem uma roda em volta de mim e adornam-me a cabeça com um leque quadrangular de penas da cauda de papagaios, que eles chamam “araçoiá”. Amarram também alguns chocalhos numa das minhas pernas – justamente na perna ferida! – e começam a cantar, obrigando-me a acompanhar o compasso batendo o pé com a perna que tem os chocalhos. A dor é tanta que mal posso suster-me de pé.
Quase sem enxergar meus pés, deixo-me levar por Alkindar-miri, cuja figura larga, atarracada e carnuda, peito ancho e arcado, nuca reforçada e pequena, braços curtos, grossos e musculosos, inspirou-lhe o nome e impede-me qualquer pensamento de fuga. (1)
Alexandre Rodrigo Ferreira, após ser capturado, é levado até a tribo dos Tupinambás e no caminho sofre várias humilhações: os índios lhe batem, amarram, tiram suas roupas e juram devorá-lo. Exatamente os mesmos fatos ocorridos com o alemão, como já dito. Quando chega à tribo, mesmo sentindo fortes dores, o naturalista nota a presença de uma jovem índia, muito mais formosa que as demais, trata-se de Potira, filha de Guaratinga-açu, o grande chefe da tribo que a entrega como esposa a Alexandre com a função de o fazer engordar para o banquete que está sendo preparado e do qual ele será o prato principal.
Potira passa a protegê-lo, principalmente de seu irmão Nhaêpepô-açu, o qual diz que vai devorar o português. Potira acredita que Alexandre é Sumé, o mito indígena do branco bom. Sumé era um grande velho, branco como a luz do dia e com uma longa barba, capaz de caminhar sobre as águas do mar como sobre terra firme. Enviado de Tupã, senhor do Céu e da Terra, apareceu antes do descobrimento ensinando aos nativos a cultivar a terra e a se comportar moralmente. Diz a lenda que a paz reinava na tribo indígena até aparecer Jurupari – doméstico de Tupã que foi expulso por fazer maldades – enganou os índios dizendo que Sumé era mau e ensinava mentiras. Rejeitado e perseguido, o santo abandonou a tribo e caminhou sobre as águas do mar até atingir a Índia. As flechas disparadas em sua direção voltavam contra aqueles que as atiravam. A indiazinha e o naturalista envolvem-se cada vez mais e a relação entre eles é cercada de magia, sonhos e mistérios, além do ciúme que Alexandre sente de Itajibá, irmão de criação de Potira. O envolvimento torna-se tão grande que eles passam a viver uma relação amorosa intensa, como a de qualquer casal apaixonado. Totalmente seduzido pelo amor de Potira, Alexandre não consegue, nem mesmo, deixar de atender ao pedido de sua amada para que comesse a carne do índio Paiguara, o qual havia sido morto e assado e estava servindo de banquete para a tribo como vingança pela morte de seus antepassados.
“Aipotar nde caru!” (quero que comas!), disse-me Potira, estendendo-me o fêmur de Paiguara. Quase digo não, mas, vendo os olhos tristes da cunhantã, hesitei. “Na nde maenduari xoe xe resene” (tu esquecerás de mim), ela completou. Em vez de dizer “Alexandre Potira resé i maenduarine” (Alexandre vai lembrar-se de Potira), peguei o fêmur da mão da rapariga e levei-o à boca, sentindo imediatamente o gosto adocicado – diga-se de passagem, até bem tolerável – de carne humana! (2)
Mesmo vivendo esse intenso amor, Alexandre sabe que o dia de sua morte está breve e busca, inconscientemente, nos momentos de maior tensão, refúgio nos sonhos. Lá ele consegue fugir de seu fatídico final quando Potira o transforma em um sabiá e ele passa a conviver com os pássaros e a compreender a língua deles. Num dos sonhos descobre ser filho de um gavião, o caburé-açu, com uma mulher, por isso Potira conseguiu transformá-lo em pássaro para que ele pudesse fugir. Esses devaneios o fazem repensar sua fé, tentar buscar um sentido para a vida e pensar como deve agir se tiver uma segunda chance para viver.
Ainda no sonho, o gavião, que esteve a todo o momento questionando-o sobre a sua crença, o traz de volta à realidade no exato momento em que está sendo realizado o ritual de sua morte. Porém, por já estar escutando o rufar dos tambores anunciando a hora de sua morte, ele reluta em voltar, mas o pássaro ordena que ele abra os olhos, saia do sonho e volte à realidade para encarar seu destino que era o de ser devorado pelos indígenas.
“Queres que te conte o significado dessa visão?”.
“Sim, quero”.
“Ela prenuncia o teu sacrifício”, explica o caburé-açu, “mas não te angustias, o que tiver de ser será; se as coisas optarem pelo Jejum, sobreviverás; se optarem pela Fome, serás devorado. Queres saber o que acho? É melhor ser devorado, pois, como diz aquele anjo: há um dom que nos é dado pelo Um para alimentar a permanência; aliado dos jejuns, esse dom é o da Amizade das coisas pelas coisas”. O gavião faz uma pequena pausa, depois diz: “Pronto, agora podes abrir os olhos!”. Hesito, pressentindo o que me espera. “Abre! O que tiver de ser será!”, insiste. (3)
Sua amada Potira o salva na última hora, no mesmo momento em que os portugueses chegam para resgatá-lo, quando levaria o golpe final.
Pode-se perceber que Alexandre vivencia cenas oníricas, e em muitas delas sonho e realidade tornam-se um único elemento. Como o personagem caminha livremente pelos dois planos, o do real e o do sonho, algumas vezes o leitor não percebe se o que a personagem está vivenciando é sonho ou realidade.
Durante todo o romance, o personagem Alexandre passa por momentos de conflitos, entre eles: às vezes em que se surpreende rogando por sua vida a Deus, embora se julgasse ateu; os ciúmes que sente de Itajibá, irmão de criação de Potira e por quem ela guarda uma grande afeição; a incerteza em saber se Potira também o devoraria no momento em que fosse morto e assado pelos Tupinambás; o medo de ganhar peso e com isso adiantar o dia de sua morte; o receio em decidir se deveria comer carne humana para atender a um pedido de Potira, a fim de não deixá-la triste; e o medo de sair do sonho e voltar para a realidade que o aguardava.
Dou por mim entoando o seguinte canto religioso, que não suspeitava trazer na memória, descobrindo que, embora me julgue ateu, sou mais cristão do que imagino:
“Agora pedimos ao Espírito Santo
Pela fé verdadeira, com todas as veras,
Que nos preserve em nossa morte
Quando deixarmos esta mísera vida”
(...)Potira fala do amigo com tanta veemência que chego a pensar que não são apenas fraternos os seus sentimentos. Tal pensamento desagrada-me. O que me importam os sentimentos de uma cunha
(...)“Aipotar nde caru!” (quero que comas!), disse-me Potira, estendendo-me o fêmur de Paiguara. Quase digo não, mas, vendo os olhos tristes da cunhantã, hesitei. “Na nde maenduari xoe xe resene” (tu esquecerás de mim), ela completou. Em vez de dizer “Alexandre Potira resé i maenduarine” (Alexandre vai lembrar-se de Potira), peguei o fêmur da mão da rapariga e levei-o à boca, sentindo imediatamente o gosto adocicado – diga-se de passagem, até bem tolerável – de carne humana!
(...)“Pronto, agora podes abrir os olhos!”. Hesito, pressentindo o que me espera. “Abre! O que tiver de ser será!”, insiste.
“Abre!”, torna a insistir, já rispidamente, o gavião.(4)
Devido ao envolvimento amoroso com Potira, Alexandre acaba participando de certos rituais e costumes indígenas, o que faz com que passe por um processo de “branqueamento” às avessas. Talvez por dizer-se ateu e, portanto ser um homem livre de dogmas religiosos, consiga com uma certa facilidade, contaminar-se pela cultura indígena. Essa aculturação é fator determinante para o naturalista respeitar e se ajustar ao modo de vida daquela aldeia e consiga, de certo modo, uma relação pacífica com os índios durante o período em permaneceu aprisionado.
Outro fator relevante de contribuição para a aculturação foi o fato de Alexandre já dominar a língua tupi, facilitando o diálogo entre ele e os índios e, principalmente, com sua amada. Algumas passagens do romance, como a relação sexual que acontece entre o português e a índia durante um festim realizado em outra aldeia e do qual eles foram convidados, ilustram o quanto Alexandre parecia estar à vontade no meio dos índios, ou seja, aculturado. Dominado pelo clima de festa, ele e Potira se amam ao ar livre, na presença de outros índios.
Esqueci do que me estava destinado e fui, por um instante, um homem completamente feliz. Sem me importar com nada, nem com Alkindar-miri, nem com a areia que em nós se grudava, entranhei-me de novo em Potira, ali mesmo, ao lado dos outros corpos. Quando terminamos, Potira ergueu-se e fez-me também levantar. (5)
A aculturação pelo qual o naturalista passa pode ser analisada como uma valorização à cultura indígena, pois em outros romances da nossa Literatura Brasileira, como em Iracema, O Guarani, entre outros, é o índio quem passa pelo processo de branqueamento, sempre na tentativa de se valorizar a cultura do branco. Já no romance de Nicodemos Sena, o índio e sua cultura são os elementos de valorização. A narrativa sobre a vida indígena apresentada ao longo do romance é feita sem mostrar vestígios de censura ou depreciação dos atos cometidos pelos índios, em momento algum é questionado se o que eles fazem é certo ou errado.
Embora a narrativa ocorra no ano de 1750, o autor utiliza uma linguagem bem atual, com algumas expressões populares, porém se nota um rigor e um imenso cuidado estético na escrita do texto. Fica nítido que Nicodemos é um autor que se preocupa com a forma e o estilo, por isso cuida minuciosamente de cada frase escrita. Toda essa dedicação é vista através dos diálogos escritos em tupi, demonstrando o intenso processo de pesquisa que o autor entregou a sua obra. Não bastasse toda a riqueza de vocabulário, o romance ainda é repleto de belas ilustrações que contribuem para o envolvimento do leitor com a narrativa. A fantasia e o real misturam-se para compor um romance instigante, intenso, com diálogos eloqüentes que prendem a atenção do leitor do primeiro ao último capítulo.
Que o amigo me compreenda e perdoe. Assim como em garoto, pastoreando ovelhas nos campos do Alentejo, aliviava-me do fardo das responsabilidades troçando de coisas, animais e pessoas, no que divertia a todos, assim também hoje, na situação calamitosa em que me encontro, mofo da minha covardia para diminuir um pouco a vergonha de saber-me um ateu (que já foi coroinha e perdeu a fé no dia em que só por um triz não foi enrabado atrás da sacristia) de repente convertido em cristão, só porque está com medo da morte, ou, como se diz no Grão-Pará, está com o "fiofó na seringa"?
De acordo com o que foi mostrado ao longo desse capítulo, é possível notar que o autor aborda, nesse livro, o choque entre culturas, misturando veracidade e ficcionalidade, criando um diálogo entre fatos ocorridos historicamente e a Literatura, numa valorização da cultura, dos mitos indígenas e da língua tupi. Sena demonstra, além de um compromisso com a estética da obra, um profundo resgate aos costumes indígenas, seus mitos e principalmente o hábito do canibalismo, que é o ponto principal de tensão do romance.
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