Perguntavas-me outro dia, por onde andava a minha poesia, se já teria morrido em mim. Relembraste os famosos cadernos de capa negra, relatos míticos, interditos, de uma adolescência contida, que sempre desejaras ler.
Nessa altura, cada folha branca era um lençol, acolhendo amores e desventuras, desejos e loucuras e lágrimas também. Amontoados de segredos, simplesmente meus. Era aí que morava a poesia.
Depois, o tempo passou.
A poesia saltou do papel e entranhou-se na vida. A tinta foi suor e a caneta uma enxada em terra remexida, com sementeiras e muitos frutos colhidos pela manhã: peras, maçãs, pêssegos, uvas, kiwis, tudo ali na nossa mão, como no princípio dos tempos.
E as rosas, meu Deus! Braçados e braçados, lembrando arco-íris no estreito caminho para casa.
A minha velha casa, onde a poesia se espalhava nos livros, nos retratos de parede, nas longas conversas no pátio. Embalei meus filhos, mas era ela que docemente cantava, baloiçando o bercinho de madeira.
Por vezes quase me abandonou. Quando os mundos pareciam quadrados de erva daninha onde a semente gretava sedenta e sem esperança… Mas mesmo fraca, estilhaçada, voltava rompendo a escuridão dos dias tristes.
Viveu comigo, afagou-me a boca, adocicou-me as palavras na hora das guerras e dos desencantos.
Foi minha companheira em noites mal dormidas, onde a guitarra, numa morna de Cesária era uma oração suplicante, pedindo aos céus algum alento para o amanhecer.
Atirei-a como pérolas aos olhos das crianças, aos doces sorrisos, como quem dá um colo. Muita aí ficou, e fez nascer bravos cavaleiros e lindas princesas em palácios de chocolate.
Envolvi-a em todos os abraços, em cada paixão, nas horas de amor.
Quantas vezes me foi devolvida em ódio, desprezo, incompreensão, preconceito daqueles que nunca tocarão uma só estrela.
Apeteceu-me atirá-la ao mar, envolta num cordelinho. Mas logo, tal Camões, um desejo ardente no meu peito segurando na mão a coisa mais preciosa da minha vida.
E agora, caro amigo, depois de tantos anos, ei-la que volta, pura, original, deslizando no papel, como quem alegremente regressa ao ventre quente de sua mãe.