HELENA FIGUEIREDO:
AO SABOR DA PELE

PROSAS

Renascer
Doce infância
A menina de negro
Êxodo
Cegueira

POEMAS

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Liberdade
Leva-me contigo, pastor
Enleio
Tentação
Ninguém
Tabu
Poema sentido
Um dia sem ti
Vendaval

DOCE INFÂNCIA

O avô chamava-lhe raio de sol e o pai sempre lhe disse que tinha duas estrelas no olhar. O irmão viu muitas estrelas quando caiu de bicicleta e tem uma cabrinha que, por ser branca e ter uma manchinha amarela na cabeça, se chama Estrela. Sabe que o céu está carregado delas, algumas que até já morreram e continuam a dar luz. Aqui não entende. Depois, há aquela outra que a professora lhe contou, aquela de brilho intenso, fulgurante, parecendo a rainha do céu. Não, não é uma estrela, é um diamante do vestido de Nossa Senhora. Isto, porque um tal anjinho que veio à terra na Noite de Natal, ajudar o Menino Jesus a distribuir os presentes, era um pouco distraído, sim, porque os anjos além de brancos, loiros e encaracolados, também podem ser distraídos, incumpridores e até se esquecerem dos pobres. Talvez, porque não brilham como o céu, têm telhados feios e escuros encobertos no arvoredo. E é daí, que nasce a história que a professora lhe contou. O anjinho, quando chegou ao céu de saco vazio, olhou a terra e reparou no esquecimento, agarrou na primeira estrela que viu e num passo de mágica celestial fez do casebre esquecido, um lugar com outra vida muito mais brilhante. E no firmamento gerou um buraco negro, mais horrendo que o buraco de ozono. Só mesmo a benevolência divina na pessoa de Nossa Senhora, para estragar um vestido de valor incalculável retirando da orla inferior uma pedra preciosa e preencher tal vazio. E, segundo a professora, será essa pedrinha, que em noites estreladas realça a luz do céu, sobrepondo-se a todo o firmamento.
Mas, agora, que a sua avó desapareceu, sem ela saber porquê, a mãe povoada de histórias quem sabe contadas por professoras do seu tempo, pegou-lhe ao colo, trouxe-a à varanda e indicou-lhe o céu. Um céu negro, com pontinhas de luz trémula, que em uníssono iluminavam o varão de ferro.
-Estás a ver aquela estrela lá à ponta, para os lados do mar? Aquela maior e mais brilhante? É a avozinha que morreu e está no céu.
Mas afinal em quem devia acreditar? Na professora sua amiga, ou na mãe, que sabe tudo, até mesmo onde está a sua querida avó?
A menina foi para a cama e, com os olhitos fixos na escuridão, viu luzir milhões de estrelas, umas mais fortes, outras simples clarões e já não percebia nada do céu. Será que havia dois céus, um para os anjos e santos e outro para as avós?
Mas no dia seguinte na chegada à escola, como se a noite a tivesse iluminado, segredou à professora:
- Sabes professora, hoje a Nossa Senhora já usou o vestido de brilhantes! A minha avó encontrou a pedrinha que faltava!

Helena Figueiredo nasceu em 9 de Março de 1959, numa pequena aldeia do concelho de Carregal do Sal, distrito de Viseu. É licenciada em Educação de Infância, e desde os 21 anos que trabalha com crianças entre os 3 e os 6 anos. Entre 2003 e 2006 prestou assessoria ao Conselho Executivo do Agrupamento de Escolas de Carregal do Sal.
Entrada no TriploV: Abril de 2008