Cadernos do ISTA . número 17
A verdade em processo

Luís de França
O ESPLENDOR DA VERDADE
– AS VERDADES DA FÉ

 
Preliminares
1. O que é a verdade?
1.1. Verdade do Evangelho e doutrina
1.2. A Verdade como promessa
1.3. A Verdade como testemunho profético -
2. O Poder e a Verdade –
3. Verdade da fé cristã - o lugar da teologia
3.1. Função da teologia na busca da verdade
3.2 A teologia como pratica social
4. Verdades da fé - o lugar da doutrina
4.1. Relação entre verdade e história
4.2 Verdade e história -
4.3 Interpretação doutrinal dos dados históricos –
4.4. Do bom ou mau uso do Denziger
5. Exercício do Magistério
5.1.Evolução irreversível da consciência moderna
5.2. A recepção na Igreja
Epílogo - O Esplendor da Verdade

O Poder e a Verdade
– ou seja o lugar das ciências humanas neste percurso de investigação

No discurso religioso em geral e nas teologias em particular devemos reconhecer um poder, em exercício, gerador das formulações da verdade religiosa e inversamente um trabalho de verdade suscitando a determinação ou legitimando um poder endógeno. Este fenómeno não escapa ao observador.

Como dizia JouvenelO poder não se pode exercer muito tempo sem que um certo discurso assegure a sua legitimidade Assim a força do poder não reside antes de mais no seu exercício mas na elaboração constante da ideologia que o autoriza e a sua verdadeira vitória não está na derrota daqueles que ele submete mas na produção incessante de imagens de comportamento.”

O Poder é antes de mais o poder da produção e reprodução da ideologia que lhe dá a fonte da legitimidade. O censor tem de se fazer amar como diria Legendre

Balandier fixou num texto célebre o que devemos entender pela produção da verdade.

O poder que se apoia só na força, ou sobre a violência não domesticada, teria uma existência constantemente ameaçada, o poder apoiando-se exclusivamente sob a luz da razão teria pouca credibilidade. O poder não se mantém nem pelo domínio da força bruta, nem pela justificação racional. O poder só se faz e só se conserva através da transposição, pela produção de imagens pela manipulação dos símbolos e a sua organização num quadro cerimonial. Estas operações efectuam-se de modos diversos, nas apresentações da sociedade e na legitimação das posições dos governantes. Umas vezes a dramaturgia política traduz a formulação religiosa, e faz da cena do poder uma réplica ou uma manifestação do outro mundo. A hierarquia é sagrada e o soberano depende da ordem divina, pertencendo a essa ordem ou recebendo daí mandato. Outras vezes o passado colectivo, elaborado por uma tradição, traduzido em costumes, transforma-se na fonte da legitimação. E uma reserva de imagens, de símbolos, de modelos de acção; permite empregar uma história idealizada, construída e reconstruída segundo as necessidades, ao serviço de poder actual. Este último dá origem e assegura os seus privilégios, através da promoção uma herança”

Por outro lado qualquer discurso religioso acaba por produzir a reorganização sistemática do espaço, por fazer a determinação dos lugares sagrados, a determinação do tempo pela simbolização da história. No sentido forte do termo o discurso religioso é um discurso de significado e de verdade. Tal como a escrita da história, o discurso religioso e segundo Michel de Certeau é uma produção do lugar e uma produção do tempo. Em nome de uma verdade, na qual se origina, marca a fronteira precisa entre um aqui e um ali, um antes e um depois. Basta recordar as guerras á volta da data de Páscoa ou as divisões cristãs ou as islâmicas por causa de um calendário. Quanto ao lugar basta recordar as guerras pela posse ou o domínio dos lugares sagrados. Que seja Jerusalem ou Dahida no norte da Índia.

Através dos seus múltiplos processos de inclusão e de exclusão, por causa da própria lógica do mesmo e do outro, pela sua propensão a invadir a totalidade do campo dos significados, o discurso religioso determina também as práticas sociais ao mesmo tempo que estas também o determinam. Instituições diversas, cultos e ritos, consagram um ethos, isto é uma maneira de habitar o mundo e a história, e dá origem a um imaginário que se infiltra nas profundidades da consciência social. Para ele como para todo o discurso a noção de poder designa antes de mais os efeitos desse discurso no interior de um determinado tecido de relações sociais. Ora antes de determinarem comportamentos esses efeitos são antes de mais simbólicos, veiculados por uma verdade que ao mesmo tempo é suportada por esses efeitos. Pecado e graça, bem e mal, puro e impuro, válido e não válido, lícito e ilícito, afectam doravante toda a realidade assim como qualquer outra situação fundamental da existência, traçando até aos mais pequenos detalhes os limites do permitido e do proibido. Yves Ledure também chamou a atenção em Conscience religieuese et pouvoir politique, para o modo como o cristianismo em muitas épocas da sua história também soube domesticar o poder secular para os seus fins e lembra a observação astuta de Machiavel que continua a ser lida e aproveitada por algumas forças políticas mesmo no mundo contemporâneo

Machiavel recomendava “conservar em toda a sua pureza a religião e as suas cerimónias e de manter o respeito devido á santidade já que não se conhece nenhum sinal mais garantido da ruína de um Estado do que o desprezo do cultodivino” . Por esta e outras razões o historiador Delumeau reconhecia, há anos, que: “a cristandade de outrora foi muitas vezes uma traição do cristianismo”. )

Na época moderna as Luzes, a Revolução Francesa, e a critica marxista entre outos, deram mostras de querer arrumar o cristianismo como qualquer coisa que não passava de um discurso de legitimação poder. Mas as ideologias modernas do Estado que se quiseram revestir do aparato religioso ou quase religioso como diria Paul Tillich também mostraram os seus limites. E hoje neste confronto entre ideologias e crenças encontramo-nos como que num jogo de soma nula.

A questão que esta passagem pelo confronto com as ciências humanas levanta é a de saber se provocada pela própria história, a religião cristã terá a coragem de renunciar a possuir a verdade que todos os poderes querem dominar? Não será que o cristianismo deveria aceitar que a irrupção da Palavra de Deus vem no seu seio romper para sempre o mecanismo fatal do discurso religioso. Terá o cristianismo o gosto e a paixão de ser no meio das nações o sinal vivo de uma outra palavra?

Numa tentativa de resposta a estas questões consideremos o trabalho de desconstrução que a teologia cristã e ecuménica aceitou percorrer nos últimos 50 anos criando assim condições para uma outra afirmação da verdade da fé cristã.

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