Entre o final da década de 1940 e a primeira metade dos anos 50, no Faial consolidou-se a consciência que «a Segunda Grande Guerra Mundial, por mandato da Geografia, trouxe ao nosso meio um movimento extraordinário» (FLAMENGO, 1955), que «o dinheiro jorrou a rodos por todos os cantos da baía, da cidade e das freguesias rurais [...]» (FLAMENGO, 1955), e que «fomos arrastados pelo turbilhão avassalador, impelidos pelas novas fontes de proventos que surgiam, atraídos por outras distracções que se nos proporcionavam, aliciados por uma vida mais faustosa e facilitada que se nos oferecia. [...] E a população desvairada na ânsia do dinheiro, do prazer, do sensacional, do efémero em suma, lançou-se ambiciosamente na pista do ouro [...] e desceu a todas as especulações, revolveu-se sofregamente no lodaçal e relegou para último plano os seus problemas superiores» (FLAMENGO, 1955).
Quem ler a imprensa faialense deste período verificará que era aceite e partilhada a opinião acerca da dimensão, características e causas das dificuldades por que passava a ilha neste período. Um dos artigos que iniciou a abordagem destas questões na imprensa local, cujo autor assinava com o pseudónimo Luís Flamengo, foi publicado no Jornal Correio da Horta, o «Órgão da União Nacional no Distrito». Esse extenso artigo, intitulado «Quo vadis Terra Mea...» motivou uma edição especial do Jornal, com quatro páginas, «a fim de poder dar o devido relevo ao artigo [...] que trata desassombradamente da apatia que infelizmente se vem a verificar nos diferentes sectores da vida faialense», como se justificava na «Nota da Direcção». Aí se reconhecia que «o Faial já conheceu muito melhores dias, que o momento actual não é nada animador e que o futuro se adivinha menos tranquilizador ainda. [...] Estamos pobres de bens, pobres de ideais, pobres de coragem» (FLAMENGO, 1955).
A consciência das dificuldades e dos atrasos era clara: «afinal de contas as nossas decantadas e reais belezas naturais não são procuradas com aquela assiduidade que seria de esperar e não logram ao menos movimentar um turismo caseiro. A baía continua a representar a sua posição privilegiada [...] mas passam-se os dias na esperança vã de vermos recortarem-se no seu molhe as silhuetas dos dominadores do Oceano. O comércio debate-se numa crise assustadora [...]. Os barcos da empresa de navegação [...] demoram quase um dia a lingar mercadoria para terra e em contrapartida carregam em escassas horas todos os produtos que exportamos o que traduz flagrantemente o desequilíbrio da nossa balança económica. [...] Os empregos escasseiam e assiste-se a um gradual e incessante despovoamento da Ilha» (FLAMENGO, 1955).
E se esta opinião acerca dos problemas do Faial era partilhada por outros autores que regularmente marcavam presença nas páginas dos jornais, também era consensual a defesa de que «só pela educação das gentes desta Ilha se poderá conseguir a sua solução» (IGNOTUS, 1955).
Defendia-se, assim, a criação de «uma Escola Comercial e Industrial nesta cidade onde os futuros empregados comerciais e até alguns patrões iriam colher uma educação que lhes dignificaria a sua profissão;» a criação de «um Asilo-escola que faça “Homens d’amanhã” de rapazes hoje destinados a uma vida de miséria e brutalidade;» a criação de «um Centro extra-escolar da Mocidade Portuguesa a fim de que a juventude operária possa gozar os mesmos privilégios da juventude liceal;» a criação de «cursos anuais agro-pecuários nas nossas freguesias rurais, onde os futuros agricultores possam ir buscar os conhecimentos necessários à sua vida do campo, de forma a acompanharem os progressos da técnica moderna;» a criação de «cursos de ensino doméstico que ajudem as nossas raparigas quer da cidade quer do campo, a preparar-se para a sublime missão de mães;» a criação de «mais Casas do Povo, fonte de cultura do habitante rural;» o auxílio às «agremiações desportivas para que estas possam cumprir cabalmente a sua altruísta missão;» o apoio às «nossas filarmónicas, pois a música está na alma de todo o ilhéu;» a libertação dos filiados dos Sindicatos e Casa dos Pescadores «da atmosfera sufocante das tabernas;» a criação de «um Grupo Cultural, nesta cidade, que tenha por função dirigir, apoiar e estimular todas as manifestações culturais da ilha,» a criação de «um Posto Emissor nesta cidade [...];» o auxílio à «Imprensa, porta-voz dos interesses da Terra [...]»; a atenção à formação religiosa e ao incutir «nas crianças o gosto pela música, teatro, desenho, canto coral, ginástica, desportos [...]» (IGNOTUS, 1955). Tal era o programa que se propunha para atalhar a crise sentida.
No Faial da última parte da década de 40 e da primeira da década de 50 havia, portanto, a consciência de uma certa decadência e apatia em que a ilha havia mergulhado, às quais se associava, como solução, a defesa de uma intervenção privilegiada nas áreas da educação e da cultura, a forma de contribuir para a alteração das mentalidades, que se desejava.
Após a criação do Instituto Histórico da Ilha Terceira, em 1942, e do Instituto Cultural de Ponta Delgada, em 1943, e, sobretudo, após a divulgação das notícias sobre as actividades que promoviam, acentuou-se, no Faial, no final da década de 40, a reivindicação, expressa novamente em movimento de opinião na imprensa local, que reclamava a criação na Horta de «um pequeno Instituto ou Círculo, ou coisa parecida, que agregue em si todos aqueles que, numa ânsia de saber, se preocupam com as coisas do espírito, com o belo, com o sublime [...]» (PICO, 1948).
Entre os líderes de opinião deste novo movimento estava, outra vez, Silva Peixoto. No jornal Correio da Horta de 20 de Outubro de 1948, depois de descrever alguns aspectos da actividade cultural em Ponta Delgada e na Terceira, referindo-se aos seus Institutos, desafiava os faialenses a olharem para si: «nem Institutos, nem Círculos; e no campo artístico apenas a actividade dos nossos grupos de teatro amadores. Não merecemos também ter um órgão que vele pela vida mental faialense e ensine ao presente a lição do passado, rebuscando documentos, investigando, revelando poetas e prosadores e todos quantos se interessaram pelo progresso intelectual desta Terra? Para que são esses braços cruzados e esta apatia geral?» (PEIXOTO, 1948).
No Correio da Horta, de 10 de Novembro de 1948, um Zé do Pico retomava a temática, a argumentação, as interrogações pelo nosso atraso em relação a S. Miguel e Terceira e garantia que «o Distrito da Horta, ontem como hoje, pode ainda reunir uma dúzia de pessoas, que ainda dispensam um bom bocado dos seus ócios à leitura dos bons livros, à ilustração séria e honesta da sua mentalidade. Não cito nomes. Eles aparecerão, quando alguém se propuser tomar a iniciativa da fundação do “nosso” instituto literário ou cultural» (PICO, 1948).
A 14 de Novembro de 1948, o jornal O Telégrafo reconhecia que «é bastante sentida a não existência de um Instituto de Cultura na ilha do Faial» e afirmava, avisadamente, que isso «impõe a publicação de um órgão, e esse órgão só pode existir com o patrocínio da Junta Geral do Distrito. Por isso, o primeiro passo indicado é saber-se com o que se conta, pois sem finanças, nada feito.»
Alguns dias depois, o mesmo jornal garantia que a notícia «despertou, como era de esperar, justificado interesse, e trouxe-nos boas palavras de estímulo. [...] E o apoio que nos tem sido oferecido é, já por si, garantia de que, se houver estímulo “oficial”, o Instituto de Cultura da Ilha do Faial entrará, muito brevemente, em boa actividade prática [...]» (O Telégrafo, 18.11.1948).
No Correio da Horta, Melo Furtado defendia, acerca da denominação desse organismo cultural, que «preferiria círculo a instituto; esta designação envolve já certas responsabilidades; a outra exprime melhor, creio eu, a reunião circular, em jeito de távola redonda, daqueles que se batem pelo espírito [...]» (FURTADO, 1948).
Cerca de um ano depois destes artigos, Carlos Fragueiro, n’O Telégrafo, retomava a temática e interrogava se «não haverá gente, neste distrito, capaz de manter de pé, em forma que nos não envergonhe aos olhos estranhos, uma revista onde se arquivem (anualmente ou semestralmente) documentos e estudos referentes à história das quatro ilhas ocidentais e em cujas páginas se ponha a salvo alguma coisa do que ainda restar da nossa riqueza folclórica? [...] Penso que se deve tratar a sério de dar realidade a esta coisa, para muitos julgada supérflua ou mesmo rematada tolice, mas que é necessário organizar-se: um Instituto Histórico da Horta!» (FRAGUEIRO, 1949).
Independentemente de algumas divergências na designação a dar ao novo organismo, a opinião escrita na imprensa faialense deste período utiliza quase sempre a mesma argumentação na sua defesa: Ponta Delgada e Angra do Heroísmo têm os seus Institutos; criaram-se e desenvolveram-se sem dificuldades; realizavam variadas actividades culturais; davam à estampa as suas publicações; para, de seguida, apelar ao orgulho próprio dos faialenses, questionando-os sobre «o que fazemos? Porque não acompanhamos esse movimento, essa vida nova que tão óptimos resultados há já alcançado nas ilhas irmãs? [...] Não nos faltam valores literários» (PICO, 1948).
No culminar deste processo, a 20 de Março de 1954, catorze cidadãos constituíram o Núcleo Cultural da Horta (NCH), subscrevendo os seus Estatutos. Foram eles José Osório Goulart (escritor e conferencista, 1868-1960), António Xavier de Mesquita (advogado e professor liceal, 1888-1963), Alberto Campos de Medeiros (médico-cirurgião, 1896-1976), Gabriel Baptista de Simas (professor liceal, 1890-1966), Manuel Linhares de Andrade (advogado, 1913), Júlio da Rosa (sacerdote e investigador, 1924), Frederico de Menezes Avelino Machado (engenheiro e vulcanologista, 1918-2000), António Macedo Lacerda Forjaz (farmacêutico, 1916-1980), Constantino de Freitas Amaral (médico-veterinário, 1916-1995), Manuel dos Santos Lopes (escritor e funcionário da Cable & Whireless, 1907-2005), Tomás da Rosa Pereira Jr. (professor liceal e escritor, 1921-1994), Manuel Alexandre Madruga (professor liceal, 1914-1997), Manuel Ribeiro da Silva (engenheiro-agrónomo, 1915-2001) e José Benarús (professor liceal, 1915-1997).
O tempo que mediou entre a feitura dos Estatutos e a sua aprovação ministerial (mais de um ano!) levantou novas dúvidas na concretização de tão ambicionado projecto. Em «Lamentações de um Distinto Faialense», Silva Peixoto dava público conhecimento de uma carta que havia recebido de Marcelino Lima, em que este se lamentava por o esperado «grupo cultural» tardar em concretizar-se «por bizantinismos incompreensíveis» e que por ter «alguns trabalhos concluídos e alguns documentos históricos que destinava ao Boletim, a publicar, mas pelo que vejo, o sonho não se realiza, tendo que passar pela vergonha de pedir para esses meus trabalhos, um cantinho de publicidade nos boletins culturais de Angra ou P. Delgada» (PEIXOTO, 1955). Acrescentava Silva Peixoto que, tendo a Junta Geral já dado o seu acolhimento ao novo organismo, «fiquei aguardando a sua criação para o que não faltava já o amparo administrativo e o talento dos homens encarregados de lhe dar forma e figura. Mas o tempo escorre, inexorável, e o projectado Círculo Cultural não surge» (PEIXOTO, 1955).
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