As palavras de Álamo de Oliveira atestam o comprometimento do poeta com a vivência e realismo insulares que condicionam de forma brutal as personagens dos textos de Pedro da Silveira:
A poesia de Pedro da Silveira está particularmente envolvida por uma insularidade especial. Ela deixa transparecer uma militância que enaltece a condição de se ser ilhéu, enobrecendo-a com um discurso que heroiciza vivências e situações, não raras vezes dramáticas (…), e derivando, depois, para um apelo aos heróis (…), que a sua memória fez emergir e que personalizam o que a insularidade tem de universal (…) ( Oliveira , 2004: 75-80).
Também Urbano Bettencourt foi sensível à captação, pelo poeta, do intimismo e da comunhão (com o universo) que o homem original corporiza no espaço poético de Pedro da Silveira ao salientar a procura das linguagens em que o poeta melhor se revê, na tentativa de exprimir a sua relação com o mundo; e constata-se igualmente no modo como ele utiliza os processos da oralidade: não apenas na transposição da fala popular de Ti Antonho Cristove em «Romance» (…) mas também no tom narrativizante daquele poema e de sequências como a de «Êxodo», cuja matriz se deve procurar precisamente na tradição oral (B ettencourt , 2004).
O sr. Laureano, Mariazinha, o caixeiro, Mateuzinho, ti Antonho Cristove, ti Jzé do Pico, ti Serpas, entre outras, são figuras que ilustram as vivências mundanas da ilha, pessoas que giram em torno de si próprias e das vidas simples que levam, ao mesmo tempo que habitam um espaço concentracionário, de “nuvens correndo no céu”, espaço de lentidão, de vultos e de rotinas despoetizadas, corriqueiras – “quando subimos ao seu pico mais alto/ e a manhã é aberta como nenhuma outra,/ o céu azul, o mar azul/ e ninguém ali dizendo/ palavras inúteis, inúteis, inúteis” ( S ilveira , s.d.: 30). Exemplo disto é o texto «Poema incompleto da menina da vila».
Em A Ilha e o Mundo Pedro da Silveira recorre ao tópico do poema corpóreo, isto é, a um texto que está perto do corpo e do sangue das gentes. A ilha, nomeadamente «San Miguel-o-Anjo», pertence ao tempo da lembrança e da infância. Ela é o motivo para o poeta ensaiar uma reflexão acerca de um tempo que sobrevive na memória, cristalizado no “canto sombrio da igreja”, na “espada ferrugenta e capacete emplumado” do santo em dias de missa, imagem entretanto modificada pelo crescimento do sujeito poético (“Outras vozes acordaram nos meus dias/ e chamaram para outros caminhos/ o menino que fui”.) Assim, o respeito e a veneração que outrora faziam parte da criança transformam-se, agora, em protesto, em apelo ao humanismo do santo, grito à sua indiferença e distância: “Hoje, San Miguel-o-Anjo da minha infância,/ menino santo de pau de zimbro insensível à vida,/ de ti só em mim persiste/ a vontade que eu tinha de gritar à tua indiferença/ que deixasses de ser santo/ e viesses cá para fora brincar comigo/ nas poças da beira-mar” ( S ilveira , 1952: 28). A cobiça acicatada pela distância e a especulação proporcionada pelo céu fechado é o tema do texto «Ilha». No poema «Para ti que ficas parado» o poeta revela, de modo explícito, que a esperança do “sonhador de viagens”, daquele que pretende escapar ao “monótono repetir”, é a matéria do seu “canto”, o povo “camponez marinheiro” dilacerado entre o ficar (parado) e o longe imóvel. Os “olhos de fome” vêm na sequência do poema anterior quando o poeta aponta o desejo de partir no barco e a ambição de descobrir as “Califórnias perdidas de abundância”. Em todo o caso, a ilha é sentida como espaço que estimula a adivinhação, espaço carecido de novidade – “– Que vida monótona a vida da vila!.../ Sem cinema nem teatro/ nem luz eléctrica” ( S ilveira , 1952: 22) –, o que, de resto, é ainda mais notório em «Dia de vapor». Falta à ilha a novidade que o vapor traz de fora, mas não só: a ilha renasce com as probabilidades que o navio acarreta. Este é o pretexto para os sonhos e projectos das gentes da vila (“Ai o dia santo de San Vapor/ despertando velhos planos de viagem,/ enchendo de espectativas e novidades/ a gente da minha ilha!...” ( S ilveira , 1952: 19). Porém, a ilha é, para os que se deixam ficar, lugar silencioso, fantasmagórico. Há o sonho persistente de querer ser “rancheiro”, “prospicador de oiro”, “operário das fábricas e das canarias”. Não obstante, esse espaço, apesar da privação que inculca, é vinculativo. A promessa da abalada, de realização exterior à exiguidade, coincide com o desejo de reconhecimento e de pertença: sair da ilha para ganhar o mundo, levando-a ancorada à memória. «Romance», «Memória» e «Êxodo» são textos centrados em torno da epopeia e da saga dos homens que deixaram a terra, mas que não abandonaram o eco da estirpe. Seja em Oakland, no Nevada ou em “toda a parte”, dando vida a “essa terra que não era a tua”, o homem ilhéu espera poder voltar. É interessante constatarmos que a ilha, por várias vezes, aparece habitada por Mortos, por figuras intemporais. A galeria de personagens de Pedro da Silveira demonstra o seu empenho em recriar o clima psicológico (que não apenas o social e económico) que molda os que nele sobrevivem. E vencer o meio hostil da ilha é uma odisseia, uma tomada de consciência da barreira que separa a terra do mar abissal e promete(dor) – “A ilha sempre dentro de si/ e a esperança de voltar…” ( S ilveira , 1952: 45). Embora sejam tipos ilhéus, alcançam, pela dimensão humana, uma valoração universal. O autor de Fui ao Mar Buscar Laranjas ( S ilveira , 1999) não foca na sua escrita desconhecidos, os sem-nome; pelo invés, solidariza-se com os seus, compreende os que padecem de fome, o que contribui para um clima de veracidade pitoresca. É a memória deles que deslumbra e alimenta a poesia e que vence o desgaste do Tempo: “Hoje estão mortos os velhos que me contavam/ essas histórias de barcas-de-baleia e terras grandes./ Também a minha infância está morta./ Muita coisa está realmente morta em mim./ Mas as histórias dos velhos marinheiros e emigrantes,/ Júlios Vernes e Conrads e Londons da minha infância,/ trago-as, sempre vivas, na memória, seguem comigo/ pelos caminhos novos que descubro” ( S ilveira , 1952: 41).
A memória dos antepassados, dos actos dos emigrantes e marinheiros, está gravada na lembrança do poeta – “(A tua mão desenha no espaço,/ acompanhando a fala descansada,/ a maravilhosa aventura que tiveste)” ( S ilveira , 1952: 42) –, assim como as histórias – “E lembra aquela raituel/ que um dia virou a canoa/ e matou o rapaz do Corvo” ( S ilveira , 1952: 44) e é pela voz poética que se dá a ressurreição dos que morreram no mar – “Fosse outra a minha voz,/ e vocês levantavam-se da cova,/ vivos e exactos nos meus versos” ( S ilveira , 1952: 42). Legitima-se, neste seguimento, uma ilha habitada por Mortos, por aqueles cujos olhos embarcaram na “viage” presos à ilha pelo elo da saudade e da promessa do retorno: “A ilha ficou para lá do horizonte/ com uma lágrima quente de saudade.// Depois…// Nas horas longas da vigia/ Antonho Cristove subiu aos mastros./ Trancou baleias em todos os mares/ – nas águas frias do Ártico,/ no mar quente do Pacífico…” ( S ilveira , 1952: 44). Há, contudo, outras matérias tais como a defesa da humanidade divina e da emigração à qual se associa o da saudade activa e fecunda. Outras vertentes sociais e políticas da escrita de Pedro da Silveira prendem-se com o apelo à consciencialização, à cilada das falsas promessas políticas e ao combate do medo – onde radica a esperança, o “caminho aberto/ ao querer dos nossos passos” ( S ilveira , 1952: 62). Porém, a chamada ao chão nativo, lugar da prisão e da evasão do corpo, enfim, a ilha, como tema-núcleo da Poesia, espaço de “coisas belas”, “simples e natural”, “sem ódios nem revoltas”, é um pensamento transversal a esta escrita – “Ergue do silêncio a voz,/ rasga o teu caminho, povo./ Diz tudo o que não foi dito/ desde o princípio de ti,/ o que calaste na sombra/ das noites longas do medo” ( S ilveira : 1952: 61). |