Sendo uma poesia que se debate entre o mar distante, a espera (o espanto, a lonjura), e o “eco que se desprende, e vai/ de monte a monte”, Pedro da Silveira acusa uma escrita que é reflexo de identidades, busca espectral do outro, questionação da ilha que se percute pelo tempo, perdurando na memória. É nessa ambivalência que o poeta se redimensiona, se revê, achando a sua imagem e identidade, descobrindo o sangue na lida de velhos baleeiros e emigrantes – “Mas porquê lembrar-me agora deste primo/ mais que morto, que afogado,/ ausente do meu sentido?” ( Silveira , 1962: 59); é ainda nesse eixo que reside a esperança num regresso à casa-reduto da intimidade: “Ah! arraste-me a vida por todos os exílios,/ nos desolados continentes hostis/ ou nas cidades tentaculares e tumultuosas/ – nunca me deixe a tua nítida lembrança,/ vivas tu sempre no meu tino!” ( Silveira , 1962: 123).
Acentuemos que Corografias narra a revisitação do poeta aos lugares da memória e dedica-se, uma vez mais, tal como as obras poéticas já designadas, a uma reflexão sobre o tempo que passa, contrapondo-se à cristalização da imagem que o retrato conserva: “Este retrato de um menino/ com um raio de sol aos pés,/ a sua boca admirada,/ seus olhos olhando o vago/ que vai dele ao retratista/ – este menino fui eu” ( S ilveira , s.d.: 37). O texto «Névoa» é, atentemos, uma ponderação sobre os efeitos do cronos, sobre as mortes que vai causando e o “recordar” e o “deslembrar” que ele implica; é, para além disso, uma abordagem ao desencanto das coisas, à perda do mistério que as caracterizava na infância – “E o cemitério onde fora tantas vezes, mas que só agora era um cemitério – ou o sentido completo da palavra cemitério” ( Silveira , s.d.: 40). O lugar ido, entretanto transformado – “Onde era a Vila com suas ruas e casas/ agora é o asfalto do aeroporto./ Onde o Convento ainda a igreja/ e talvez sernalhas e ratos/ onde era a frescura do claustro” ( S ilveira , s.d.: 64) – constitui uma lembrança activa e presente, um manifesto ontológico da existência dos entes. O passado não corresponde às “flores secas” da saudade, às memórias “arrumadas no sótão”, mas crença na esperança e na semente que se lança em solo actual, comprovando a intenção de querer recuperar os fragmentos das reminiscências avoengas dispersas pelo mundo: “O que lembro é sempre inesperado,/ e por isso acontece, é vivo,/ fresco como a vida começada./ Às vezes dói, como as memórias não” ( Silveira , s.d.: 66). Esse diálogo com o homem medular, com uma ilha que roça a maceração e com o presente habitado pelo passado aproxima-nos do pensamento de Urbano Bettencourt:
No seu ponto de equilíbrio, esta dialéctica (radicalmente insular, note-se) entre o “aqui” e o “outro lugar” ou, dito de forma diferente, entre o enraizamento e a errância, traduz-se numa atenção ao mundo e, simultaneamente, numa afirmação identitária, mas uma identidade aberta que recusa o enclausuramento, o próprio e o alheio ( Bettencourt , 2004).
Em «Crónica breve da Holanda» a cata de si, do poeta, e o percurso do homem pelos lugares à procura do trilho dos seus antepassados, obriga-nos a considerar que a viagem no tempo empreendida pelo sujeito é, na realidade, um tópico explorado no universo literário de Pedro da Silveira. O contacto humano e próximo com as pessoas, com a pureza e espontaneidade, está na base da descoberta despretensiosa de laços arcaicos, pois todos no mundo poderão ser seus reflexos e as suas raízes. O tema da memória fossilizada, ainda que “vaga” (mas universal), sumida no tempo e no desvanecimento dos retratos, é frequente em Corografias: é a memória suspensa, da “luz esmaecente” do “silêncio” e do “rasto da água” que nos autorizam a descobrir que o tempo “cego”, conquanto mude, não altera o que os olhos fixaram da terra. A itinerância do poeta, a doação a outros lugares e a outras identidades (o “diálogo permanente entre o mundo e a ilha e as diferentes ilhas de que o mundo se compõe”, segundo B ettencourt , 2004), espelha-se noutros textos que testemunham a fixação de aspectos locais de sítios tais como Belém do Pará, Amazónia ou Rio de Janeiro.
A par disto, em «Aos poetas», encontramos o apelo à construção poética e humana da casa (afectiva, antro da esperança e da ânsia de se encontrar nos Outros), que é prolongamento do corpo e habitação do amor; é a casa intemporal, cuidada, amada, sobrevivente à “morte”, feita à medida da dimensão esperançosa do homem e cujos “alicerces” se fincam no “fundamento que em ti achaste”: “Cada janela, cada porta,/ cada quarto e os corredores/ no espaço certo: tudo/ tão certo e próprio como depois/ não te sentires nunca estranho/ na casa que para ti construíste. (…)/ Uma casa/ verdadeiramente a tua casa,/ que construíste e sobreviva/ a todas as tuas mortes” (S ilveira , s.d.: 73).
Assim, o mar é para os ilhéus perseguidos pelo sonho e pela ambição meio de salvação, de conquista do outro cais, o das Américas – “E só de pensar-me partindo/ embarco, e, deslumbrado,/ imagino-me chegando às ilhas” ( Silveira , 1952: 57).
A poesia de Pedro da Silveira recupera o eco dos Outros, eco que se repercute vencendo o silêncio e a exiguidade/ distância da ilha, alcançando universalidade. É assim que a memória de baleeiros, emigrantes e pioneiros atravessa a história e o localismo popular ilhéu, alastra-se pelo mundo. Esta poesia vital está, portanto, associada ao mar, ao tempo, à ilha sanguínea, mas sobretudo à água (“caminho às avessas”); é para ela que o poeta volta visto que o mar é não só “lonjura” e imobilidade, partida e regresso, sonho e desesperação – “E um navio – um navio verdadeiro, não sonhado –/ atravessando (oh firmeza metálica!)/ a estrada azul do seu destino mercantil” ( Silveira , 1962: 117) –, mas também esperança de “um cais no outro lado”. A paisagem marítima destaca-se pelo impressionante pictorismo, pela sua presença e pelo efeito emotivo sobre o poeta: é o mar-espelho o elemento da reintegração do sujeito na “remota esperança”, expediente para vencer a “espera” e o ambiente de “névoa lilás” e verde. O mar é portador de histórias familiares, de intercâmbios; é esse mar-berço que, por ser lembrança e consciência, acompanha o poeta desde cedo, esperando-o no fim da vida – “Sejas tu, assim, amigo Mar,/ no fundo frio das tuas águas cegas,/ com algas e pedras e peixes insensíveis,/ a última cama de paz onde me deite!” (Silveira , 1962: 123). |