De uma forma geral, em Sinais de Oeste o poeta foca lugares que conservam a memória dos Mortos – “E contigo, sem medo,/ em mil navios navega./ Contigo sabe os nomes/ (ressuscitados)/ de mil navios mortos” ( S ilveira , 1962: 77). Estamos na presença de uma poética dos Mortos ou dos lugares mortos e da existência destes prolongando-se no momento. Lugares, como o Monte Queimado, são inóspitos, lembrando uma “ave melancólica/ vagarosa”, lugares de neblina e de sonolência. Pedra da Vida, Vila das Velas, Angra, Graciosa, Madeira, Santa Maria, a casa do Pilar, o Pico, etc., são, apesar da sua dispersão, lugares de memória histórica, antiga, das vivências dos antepassados originais ( S ilveira , 1962: 78).
Retratando esses lugares, o poeta resgata o frenesim dos portos, os contrabandos, os embarques, o desterro, o cruzamento e a interacção de povos e culturas, demonstrando, como tal, que a sua poesia, apesar deste cunho memorial, desenvolve-se, não se cristaliza no tempo, pois, ainda que a sua memória assente em pessoas e lugares ancestrais, espera pelo renascimento no futuro: “Minha cidade ship-chandler!/ já eras pobre quando,/ no teu corpo salgado,/ nesse olhar que ainda adiantas/ para o longe do mar,/ calada me mostraste/ quanto foste e retratas:/ o passado, que esperas,/ em futuro, renasça/ de nem sabes que frotas/ ou esquadras fantasmas…” ( S ilveira , 1962: 79). Para além disso, e como já referimos, as pessoas também são destacadas: Fernão Alv’res – “e os que vieram após,/ com seu saber de flamengos” – pelo seu trabalho na plantação de “estacas” e “sementes”, Soraia, Massília e Bento Maranna por serem “inventores desvaidosos/ do bom Verdelho do Pico” ( S ilveira , 1962: 80), e outros (os heróis embarcadiços, anónimos) que fizeram o “milagre” de “mudar em terra as pedras” ( S ilveira , 1962: 81). Pelo exemplo desses “pioneiros”, concluímos que as ilhas, no imaginário de Pedro da Silveira, servem de palco ao gesto de navegadores e baleeiros, são pontos de passagem, de transformação e de chamamento.
Acrescentemos que esses lugares a que nos referimos são de “barro e cal”, recônditos, mudos e pacientes. Esta predisposição para uma poesia de figuras e de sítios compele o poeta a uma caminhada deambulante através dos Tempos e dos Mortos. Estes passam a prefigurar (a existir) na criação literária, demonstrando o entrosamento daquele na cultura regional e na defesa do local-insular (cf. Silveira , 1962: 87). Isso levaria Urbano Bettencourt no seu estudo, lembrando Édouard Glissant, a falar de uma “poética da relação”:
de todos os Mortos o poeta fixa a “imagem”, os seus feitos e é daí que se refunde e retrocede ao tempo da inocência, ao tempo dos mitos pessoais: «De cada vez que volto/ não volto: re-vivo,/ tenho doze anos./ Maravilhado, re-cresço» ( S ilveira , 1962: 85) (B ettencourt , 2004).
Porém, não podemos afirmar que a escrita de Pedro da Silveira, fixando-se no passado, se quede por uma representação mordida de saudosismo; pelo contrário, a sua escrita é uma expressão particular de como, no passado morto, no “retrato amarelo”, reside a força do presente e do futuro. Notamos que há um prazer concreto e propositado em recordar e em saudar o tempo ido, vitalizando-o; contudo, mais “útil” a semente que o mesmo plantou no presente: “Se recordo o passado, não é por recordar./ O que recordo, vivo-o, é presente./ Mais, muito mais que presente,/ é, concreto, o futuro.// – E no entanto a saudade é um veneno saboroso./ Mas querer tornar no tempo é não ser viril,/ é sentar-se a jantar com cadáveres à roda” ( S ilveira , 1962: 108).
No texto «Última vontade», o poeta apresenta-nos uma ilha que é ponto de confluência de paquetes e cargueiros: silêncio, “vales escondidos” e “nuvens imprevistas” são expressões que contribuem para a definição, segundo as palavras de Urbano Bettencourt, da “matéria insular” de Sinais de Oeste (B ettencourt , 2004). A composição em causa expressa uma solidão habitada pela presença das águas, pela (in)finitude que a ilha sugere, pelas casas, mas sobretudo pela “miragem” e pelo desassombramento de heróis errando na memória do poeta, heróis das “Descobertas Impossíveis”, e povoando o silêncio: “contemplaste, curioso e comovido a sua solidão/ de rochas pretas, húmidas, verdosas/ e pequenos lugares onde as casas,/ quais navios varados,/ olham o mar como a pedir-lhe/ caminhos livres infinitos…” ( S ilveira , 1962: 100). Assim sendo, julgamos que a parte final de Sinais de Oeste coincide com uma poética centrada na ilha, feita de “pedra limosa” e de “puro verde”.
Em «Memento» é claro o apelo à perpetuação das raízes da ilha, à eterna plantação do poeta no seu universo “seco”, à suplantação da mudez e da ausência: “(Um recanto de praia, o cais,/ as casas, povo que fica ou/ diz adeus/ – tudo delido ao anoitecer.// Nunca me deixe a sua imagem!/ Que sempre me persiga, me comova!/ (Guardo comigo, dela, um punhado de terra/ e outras lembranças: cousas inúteis)” ( Silveira , 1962: 105-106). Essa ilha aparece ainda em «Soneto sem horizonte». Este é um texto rico em impressões e em que o poeta confessa de forma explícita o “frio” que sente num lugar qualquer, a sua dor relativamente à perdição, ao desgosto e à errância que a “tarde macilenta” suscita, querendo sugerir que a mundaneidade da ilha (ou a itinerância) o transporta para paisagens perdidas (para outras ilhas, diria Bettencourt , 2004), pois é seu “destino errar/ de porto em porto”. A ilha, estando “aqui”, lembra-lhe uma “outra tarde assim, cinzenta, lenta”. |