Naquele tempo havia…
A mulher com cheiro a terra e chilreio de pássaros no olhar.
Envolta em teias, caminhos social e politicamente correctos, mundos de olhos nas esquinas, sempre sombras, vultos e pedras. Já teve vinte anos, pele viçosa e um grande amor, daqueles amores, que não cabem nas palavras, nos beijos, nem nos desejos; ficam suspensos no tempo, como gotas de orvalho em teias de aranha matinais, atravessam o firmamento e giram ao compasso dos planetas.
O homem, um rei em terras longínquas, onde as estradas são palavras e das colinas brotam poemas em flor, onde os castelos se misturam com nuvens e à entrada um só nome vem à memória – Paraíso. Já teve vinte anos, pele morena, muitas dúvidas e desejos, insatisfações. Rodeado de conselheiros, as paredes eram olhos, os decretos social e politicamente correctos. Sangue azul da cor do vil metal, histórias de bruxas, lobisomens, feitiçarias.
Nunca um príncipe poderia sequer olhar o povo, misturar-se com o seu destino. Nunca!
Melhor seria o exílio, construído mesmo que no Inferno…
A mulher com cheiro a terra e chilreio de pássaros no olhar, que tinha vinte anos e pele viçosa, viu-o partir e chorou…
E, agora sem que ninguém o procurasse, ou chamasse, assim como uma borboleta, ao acaso, ele voltou. Talvez nas asas de uma andorinha, que ainda ontem rondava o quintal…
E o cabelo dela de novo se soltou, o decote perdeu o botão, os lábios tomaram a cor do medronho. E como diz o poeta, sentiu escorrer do coração a humidade quente da loucura.
Começou a ter segredos, selados no peito que quer transbordar, voar como um balão bem alto. O que sente não cabe nas palavras, nos beijos, nem nos desejos.
E foi assim, que no desassossego dos dias, a mulher teve uma ideia:
Subiu o trilho da montanha, aquele ladeado de madressilva e malmequeres e procurou o lugar onde a serra ao longe é a única testemunha. Abriu um buraco no chão negro, um buraco bem fundo, onde o sol nunca entraria e gritou bem alto para as profundezas, aquilo que nunca poderia ser revelado: Sim, amava-o, desejava o corpo dele no seu, o seu cheiro, o seu calor entranhado na pele. Desejava cobri-lo de beijos, possui-lo com doces malícias, pertencer-lhe para sempre.
Sentiu um arrepio de alívio, quando a última palavra aflorou na sua boca e pode por fim voltar a por tudo como estava, como se isso alguma vez pudesse ser verdade.
O seu segredo!
Ninguém, nem ele nunca o saberiam. Só a terra negra e a serra ao longe.
O tempo passou.
O ciclo dos dias, das estações, repetiu-se, na cadência sábia de quem sabe que sempre voltará.
A mulher com cheiro a terra e chilreio de pássaros no olhar, envelheceu.
Apenas os prados continuaram verdes, os rebanhos pastando …
Certa Primavera, no lugar onde a serra ao longe é a única testemunha, ao cimo do trilho da montanha, aquele ladeado de madressilva e malmequeres, estranhamente nasceu uma cana verde, esguia, baloiçando ao vento, que, certo pastor ao passar, cortou para fazer uma flauta.
E todos os dias quando o calor aperta e os animais se aninham na sombra junto ao ribeiro, o pastor, senta-se na pedra grande, pega na flauta e toca, toca sem parar…
E como que por magia, naqueles vales floridos junto ao Mondego, desliza por entre as pedras, embalando o ar e os pinheirais, a mais doce e bela melodia de amor.
Helena Figueiredo
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