Os dois temas que o título deste ensaio pretende relacionar – “ética” e “identidade pessoal” – sendo embora desde há muitos séculos objecto de estudo sobretudo por parte dos filósofos, estão hoje a ser submetidos a uma profunda análise crítica. Esta análise é motivada sobretudo pelas alterações semânticas dos termos “ética”, “identidade” e “pessoa”, alterações devidas, entre outras coisas, ao impacto das ciências cognitivas: neurociências, psicologia cognitiva, linguística cognitiva e inteligência artificial (1). Os dois temas deste ensaio estão tão profundamente relacionados que não é possível falar em ética sem pressupor uma identidade pessoal, e vice-versa (2). E se os dois temas estão em crise, de que modo isso se repercute na compreensão da forma como se relacionam?
Não se trata apenas de problemas de terminologia. Como responder à questão: o que nos torna sujeitos éticos, isto é, pessoas? É a pessoa um sujeito racional, consciente e livre? Nesse caso, a identidade pessoal de sujeitos éticos, como por exemplo o recém-nascido, será difícil de compreender e justificar, já que ele não é livre, não tem ainda a capacidade de produzir um discurso racional, e a sua consciência não é ainda uma “consciência consciente”, isto é, não possui uma verdadeira “consciência-de-si”. O mesmo se passa com os doentes mentais profundos, com os que se encontram em estado de coma, com os que são afectados pela doença de Alzheimer em estado avançado de degeneração das células cerebrais e que já não sabem dizer quem são, etc.. Nestes casos, não há nem actividade racional, nem auto-consciência, nem liberdade. Fala-se ainda de pessoas? Em que sentido? São ainda sujeitos éticos? (3)
Identidade pessoal, consciência, racionalidade, liberdade e ética são termos intimamente relacionados e interdependentes. Esclarecer o sentido de um pressupõe que de algum modo se conheça o sentido dos outros, o que torna a empresa razoavelmente complexa. Acresce ainda que, por exemplo, a racionalidade, pedra de toque da identidade pessoal e da ética, não é uma capacidade humana independente de outras dimensões não racionais nem sequer necessariamente conscientes (memória, emoção, etc), de tal modo que o que nos aparece como produto da nossa racionalidade (princípios éticos, argumentos filosóficos e religiosos, etc.) talvez não seja mais que a mera ponta de um imenso iceberg não consciente e não racional que é o ser humano, iceberg cuja estrutura e funcionamento tem, no seu conjunto, uma influência muito grande e em parte desconhecida sobre a consciência e a razão humanas, sobre o pensar e o decidir éticos. A própria consciência é algo que embora objecto de múltiplas investigações realizadas sobretudo por filósofos, psicólogos e neurobiólogos, continua a constituir uma realidade de difícil compreensão (4). Ora, o conceito de auto-consciência é essencial para a definição de outros conceitos, como o da liberdade, e este é, por sua vez, um conceito central na definição tanto da ética como da identidade pessoal. Acresce ainda que esta diversidade de conceitos que forma uma complexa rede semântica se torna ainda mais complexa e problemática se considerarmos a diversidade de perspectivas a partir das quais esses conceitos podem ser entendidos. Refiro-me sobretudo às perspectivas filosófica, científica e religiosa, e também à do senso comum. Actualmente, o grande desafio que se nos coloca é o de confrontar e eventualmente harmonizar numa perspectiva interdisciplinar abordagens tão diferentes. Como afirma John Searle,
“Neste momento, o maior problema é este: nós temos uma série de imagens de nós mesmos provenientes do sentido comum, enquanto seres humanos, que é muito difícil de harmonizar com a nossa concepção ‘científica’ global do mundo físico. Pensamo-nos como agentes conscientes, livres, atentos, racionais, num mundo que a ciência nos diz consistir em partículas físicas sem mente e sem significado” (1984, 13).
Mas enquanto Searle concede alguma importância ao senso comum, por exemplo, quando aborda o difícil tema da liberdade, Francis Crick prefere colocar o acento exclusivamente na perspectiva científica. Ele aborda o problema da identidade pessoal e de outros com ele relacionados em termos tão radicais que acaba por os fazer convergir para aquilo a que ele próprio chama “hipótese espantosa”:
“A Hipótese Espantosa é a de que ‘Você’, as suas alegrias e as suas tristezas, as suas memórias e as suas ambições, o seu sentido de identidade pessoal e livre arbítrio, não sejam de facto mais do que o comportamento de um vasto conjunto de células nervosas e das suas moléculas associadas. Tal como a Alice, de Lewis Carroll, poderia ter dito: ‘Você não passa de um embrulho de neurónios’. Esta hipótese é de tal forma estranha às ideias da maioria das pessoas hoje vivas que bem pode ser considerada como espantosa (1994, 3).”
Crick, um eminente biólogo e laureado com o Prémio Nobel, e um conhecedor das controvérsias levantadas em torno da compreensão da natureza humana, é um dos muitos cientistas e estudiosos das ciências cognitivas que ou ignora ou não considera relevante entrar em diálogo com recentes desenvolvimentos no interior das próprias Ciências Cognitivas, desenvolvimentos de que se falará adiante, diálogo que se deverá estender também a desenvolvimentos igualmente recentes em filosofia e até mesmo em teologia no que se refere ao discurso sobre o ser humano. O mesmo se passa com filósofos que apenas estão interessados na filosofia enquanto ciência cognitiva, tais como Patrícia e Paul Churchland.
A verdade é que, desde as últimas duas ou três décadas do século XX, a perspectiva filosófica (5) e mesmo teológica sobre o ser humano tem evoluído num sentido que parece passar despercebido às actuais análises científicas. Com efeito, estas parecem abordar o tema da identidade pessoal e de outros com ele relacionados (alma, espírito, mente...), bem como o tema da ética, segundo a perspectiva que no Ocidente atravessou os últimos dois milénios, uma perspectiva no interior da qual o conceito de substância se revelou fundamental. Esta abordagem conduziu a uma visão individualista do ser humano, no contexto da qual a autonomia, no que se refere à actividade humana, sobretudo a actividade de natureza ética, foi considerada a característica fundamental da pessoa. O ser humano racional e autónomo é o conceito que sob a influência do iluminismo de matriz kantiana dominou grande parte da modernidade. Na primeira metade do século XX, com o desenvolvimento das abordagens existencialistas e personalistas como as de Gabriel Marcel e Martin Buber, entre muitos outros, foi o carácter relacional e dialógico que se tornou predominante na caracterização dos seres humanos. Este tipo de abordagem, que acentua a dimensão ética, é por vezes criticado por ter sido realizada à margem dos desenvolvimentos científicos, sobretudo da biologia e das ciências cognitivas, ciências que, numa perspectiva oposta, fazem uma abordagem do ser humano numa linha individualista, caracterizando a identidade pessoal em termos meramente neurobiológicos e de desempenho baseado nas capacidades e competências individuais.
Algumas abordagens recentes, quer da filosofia, quer mesmo da teologia, distanciam-se do esquema metafísico aristotélico-tomista numa nova perspectiva na qual o carácter relacional do ser humano é visto como constitutivo da sua identidade pessoal, sendo esta relacionalidade analisada no contexto das ciências naturais, incluindo as próprias ciências cognitivas, e não à margem delas ou, ainda menos, em conflito com elas. Esta abordagem relacional permite repensar as questões éticas de um modo novo, como é o caso, por exemplo, das questões bioéticas.
Analisemos então com algum desenvolvimento os dois principais temas deste ensaio: ética e identidade pessoal.
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(1) A filosofia também costuma ser considerada uma ciência cognitiva enquanto também ela se ocupa do conhecimento. Que a filosofia seja uma ciência é já por si um tema de debate tradicional. Que seja uma ciência cognitiva no sentido actual que esta ciência adquiriu não é menos controverso, mas não precisamos analisar essa questão agora. Para uma introdução às ciências cognitivas há uma imensa bibliografia, parte da qual está indicada no final deste ensaio.
(2) Charles Taylor considera que “A identidade pessoal (selfhood) e o bem ou, dito de outro modo, a individualidade e a moral, são temas que se encontram inextrincavelmente ligados”. (1989,
(3)Paul Churchland considera que há diversas situações em que não se pode falar de um self e, por conseguinte, de exigências éticas. Tais são os casos da morte cerebral, da doença de Alzheimer em estado avançado, e do feto antes do final do sexto mês de gestação. “Em tais casos, não há nenhum self.” (1995,309). Argumentarei mais adiante que é possível pensar o self a partir de outra perspectiva paradigmática muito diferente, e que por conseguinte é também possível chegar a conclusões diferentes, nomeadamente no domínio da ética.
(4) Francis Crick afirmava há quase uma década que o termo “consciência” é demasiado genérico, mas que esperava que no final da década dos anos 90 a questão estaria resolvida. De facto não está. Desde que David Chalmers distinguiu dois problemas no estudo da consciência, o soft (aspectos objectivos, neurobiológicos) e o hard (o problema da subjectividade) têm sido feitos progressos no que se refere ao primeiro mas o segundo permanece de muito difícil solução. Cf. David Chalmers (1996).
(5) O sentido da expressão “perspectiva filosófica” aqui utilizada tem um sentido geral e aberto, enquanto contínua busca do saber ou, talvez melhor, da sabedoria, não se identificando nem com a tradição aristotélico-tomista, nem com a recente tradição cognitiva. |