A noção de self não é fácil de compreender. De que falamos exactamente quando nos referimos ao self? Na linha de Hume e de outros autores mais recentes, Eric Olson considera que não há de facto qualquer problema acerca do self, simplesmente porque não existe nenhum self ou, pelo menos, não há nenhuma definição de self acerca da qual haja um acordo mínimo entre os autores que estudam o problema: “dado que não existe um objecto de estudo chamado self, não existe por conseguinte, o problema do self” (1998, 645). Mas esta solução é demasiado simples para ser verdadeira.
António Damásio é, a este respeito, menos radical. Em sua opinião “o conceito self é ambíguo, até mesmo traiçoeiro, mas talvez o termo seja menos problemático se pudermos definir o que ele significa para nós” (1996, 168). Damásio renuncia assim à noção substancialista de um self-em-si-mesmo, para se contentar com uma noção que poderíamos chamar, com alguma generalidade, fenomenológica: o self tal como ele nos aparece. Para Damásio, existe um “si mesmo”, um self, um “eu”, de raiz neurobiológica, com estruturas neurais complexas mas identificáveis, embora não exista um “eu” diferente dos seus estados neurobiológicos transitórios que constitua uma espécie de centro coordenador desses estados. Não há um centro de comando das operações cognitivas. Também para Damásio a ideia tradicional, de base psicológica e filosófica, de que existe um self substancial de natureza metafísica não passa de uma grande ilusão. Damásio acredita porém que “o cérebro tem meios naturais capazes de lhe permitirem representar a estrutura e o estado do conjunto do organismo” (2002, 8). São dispositivos cerebrais que “não são nem hipotéticos nem abstractos: encontram-se localizados no centro do cérebro no tronco cerebral e no hipotálamo” (ibid.). Deste eu biológico passa-se à consciência de si. Segundo Damásio,
“o cérebro utiliza estruturas que cartografam ao mesmo tempo o organismo e os objectos exteriores, criando uma representação nova, de segunda ordem... Esta representação de segunda ordem não é uma abstracção: ela tem lugar nas estruturas neuronais tais como o hipotálamo e o córtex cingular” (ibid. 9).
É esta representação que dá origem à consciência de si, já que é por ela que
“o organismo é informado que ele é o proprietário do processo mental em curso, fornece uma resposta à questão que nunca se coloca: a quem acontece isto? Deste modo se cria no acto de conhecer o sentimento de um self que sabe e que constitui a base de uma perspectiva de primeira pessoa que caracteriza a mente consciente” (ibid.).
Damásio considera a consciência como o conjunto dos estados conscientes, o que pode ser metaforicamente comparado a um filme. Não existe nenhuma realidade como um eu substancial que suporte o filme. Como afirma Damásio: “o sentimento de si, no acto de conhecimento, nasce no interior do próprio filme” (ibid.). A consciência de si, ou o self, nada tem de metafísico.
“São mecanismos cerebrais objectivos que elaboram a subjectividade da mente consciente a partir de cartografias sensoriais. Tal como a cartografia sensorial mais fundamental identifica os estados do organismo e se manifesta sob a forma de sentimentos, o sentimento de si no acto de conhecimento traduz-se por um sentimento particular, o sentimento da interacção de um organismo e de um objecto” (ibid.)
A perspectiva do ‘eu-para-nós’ que Damásio considera para evitar questões metafísicas não corresponde a uma abordagem relacional do self. O ‘eu’ a que Damásio se refere parece ser ainda a “substância individual” de Boécio, ainda que se trate aqui, em certo sentido, de uma substância, ainda que de natureza biológica e não metafísica.
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