Não deixa de ser significativo notar o modo como David Hume dividiu o seu Tratado sobre a Natureza Humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocinar em questões morais. O Tratado divide-se em três partes. A primeira é sobre o entendimento, a segunda sobre as paixões, a terceira é que é propriamente sobre a moral. Hume trata da identidade pessoal na primeira parte. A terceira parte em que aborda propriamente a ética começa com um aviso em que o autor afirma que esta terceira parte é independente das duas primeiras, já que nelas se trata prevalentemente de análises abstractas. Aqui se vê como Hume dissocia completamente dois temas que, segundo a perspectiva do presente ensaio, só podem ser tratados conjuntamente, já que os temas da identidade pessoal e da ética se especificam reciprocamente. Nesta terceira parte Hume afirma que “as regras éticas não são conclusões da razão” (1985, 457). Elas devem por conseguinte ser fruto de impressões ou sentimentos. Segundo ele, o raciocínio humano não tem qualquer carácter abstracto, como se fosse o produto de alguma capacidade não biológica. “É possível”, afirma ele,
“que todas as formas de raciocínio não sejam mais que uma espécie de sensação. Não é apenas na poesia e na música que devemos seguir o nosso gosto e sentimento, mas também em filosofia. Quando estou convencido de algum princípio, isso corresponde apenas a uma ideia que me impressiona de modo mais forte. Quando prefiro um conjunto de argumentos a outro, não faço mais do que decidir entre os meus sentimentos tendo em conta a superioridade da sua influência.” (ibid., 103).
Por conseguinte, “a ética é mais propriamente sentida que julgada.” (ibid., 470). Hume defende assim um emotivismo ético que foi retomado por muitos autores no século XX e que continua a ter hoje os seus defensores. Todavia, é fácil reconhecer que a análise humeana se baseia no dualismo razão-emoção. É este dualismo, também ele hoje sob fortes críticas, que permite separar a razão da emoção nas questões éticas, desvalorizando a primeira e sobrevalorizando a segunda, ou vice-versa. É certo que a coexistência das dimensões racional e emotiva não é fácil de compreender, mas isso não significa que devamos eliminar uma delas, ou subalternizar uma à outra. É precisamente esta conjugação necessária da razão e da emoção nas decisões éticas que defende António Damásio sobretudo na sua obra O Erro de Descartes. Damásio sublinha a forma como a dimensão ética da identidade pessoal está profundamente – por vezes radicalmente – dependente da situação de integridade ou de lesão de determinadas zonas cerebrais (cf. o caso de Phineas Gage). Lesões no lobo frontal podem levar a uma mudança de personalidade e de comportamento ético pelo facto de interferirem na dimensão emocional do ser humano e alterarem a interacção equilibrada entre razão e emoção. As pesquisas de Damásio têm, assim, mostrado não só que razão e emoção estão estreitamente unidas, mas também que têm uma base neuronal. Todavia, o autor parece querer evitar uma qualquer forma de reducionismo, já que distingue a consciência em sentido psicobiológico (consciousness) da consciência em sentido moral (conscience), considerando que é precisamente na sua dimensão ética que o ser humano atinge o vértice da sua humanidade.
A posição de Hume de desvalorização da racionalidade em questões éticas tem sido defendida na actualidade por diversos autores da área das ciências cognitivas. Nesta linha, alguns deles têm recentemente proposto novas perspectivas no que se refere à origem e natureza dos conceitos e juízos em geral, e aos de natureza ética em particular. |