MAJOR MIGUEL GARCIA

A GEOPOLÍTICA DA SIDA
Francisco Proença Garcia
Maria Francisca Saraiva

INDEX

Introdução
1. A evolução do fenómeno no mundo
2. A SIDA e o selénio
3. SIDA e Segurança
3.1. Os reflexos na população
3.2. A SIDA e as operações militares
3.3. A SIDA e o Estado
4. A resposta ao fenómeno
Conclusão
A Sida em números
Referências bibliográficas

2. A SIDA e o selénio

É possível dividir o estudo da SIDA em períodos.

No passado, procurou-se estudar cientificamente o fenómeno fazendo-se sobretudo aproximações às suas origens e causas, o como e porque este progredia. Entretanto, a investigação evoluiu desenvolvendo-se hoje a diferentes níveis. Por um lado, estabeleceu-se um interesse claro em torno de um aprofundamento do entendimento bioquímico do sistema imunitário dos seres humanos. Também se começaram a dar os primeiros passos no sentido de uma plena compreensão das implicações geopolíticas e de segurança associadas à epidemia.

Para Gwyn Prins, não é desejável estudar isoladamente a doença sem tentar compreender o sistema imunitário (1). Há hoje dados significativos que se podem abordar a favor da hipótese que defende que a falta de micro-nutrientes na nutrição geral está a comprometer o sistema imunitário. Se pensarmos nas questões relacionadas com o planeamento da saúde pública, que se confronta actualmente com o regresso de epidemias de doenças infecciosas, este facto merece um acompanhamento cuidado.

Assim, é bastante sólido o desenvolvimento da investigação que procura esclarecer a acção específica das funções fisiológicas de diferentes micro-nutrientes. Sumariamente, a história recente legou-nos vários estudos sobre micro-nutrientes com profundidade suficiente para se perceber o seu impacte na imunidade humana: primeiro foi o ferro, depois as vitaminas e o zinco e actualmente é o selénio. Ainda que se reconheça que continua a ser difícil estimar a importância deste composto no sistema biológico, nos últimos dez anos houve avanços significativos que permitem um melhor entendimento do seu papel na saúde humana e animal, com especial ênfase para o HIV/SIDA.

Este micro-nutriente ficou inicialmente conhecido pela sua importância na reprodução sexual. Mas tal como são entendidas hoje em dia as funções do selénio para a manutenção da saúde são bem mais amplas. Ele actua como anti-oxidante e anti-inflamatório no que diz respeito a atrites e asma, contribui para a prevenção do cancro, nomeadamente o da próstata e também de doenças cardio-vasculares. Segundo as teorias mais recentes a falta deste micro-nutriente no plasma sanguíneo é um dos grandes causadores da progressão da SIDA (2), sendo certo que o decréscimo dos níveis de selénio em pessoas portadoras de HIV é hoje um indicador da sua progressão (3).

A principal descoberta tem que ver com a comprovação clínica que aquele micro-nutriente retarda a transição de HIV positivo para SIDA. De modo semelhante, também está demonstrado que ministrar selénio durante uma infecção de HIV reduz o stress oxidativo, modula as citoquinas (moduladores do processo inflamatório), incrementa a produção e diferenciação de glóbulos brancos e reduz a replicação do vírus (4).

Conhece-se a existência de selénio nas rochas e solos da crosta terrestre. A quantidade disponível pode variar do praticamente 0 às 100 partes por milhão, dependendo das regiões. A sua presença no corpo humano tem consequências: como tudo na vida, se estiver presente em excesso pode provocar uma intoxicação, se estiver em quantidades insuficientes pode provocar várias deficiências, pelo que foi necessário cartografar as regiões selénio deficientes e tóxicas (5). É-nos muito fácil entender este fenómeno pela análise de um mapa, datado de 1265, que tem sido atribuído a Marco Pólo, onde se registaram as regiões ao longo da rota da seda onde o navegador teve problemas na alimentação dos seus animais, que pereciam por razões desconhecidas. Hoje é certo que nessas zonas o selénio atingia níveis de toxicidade.

Sem dúvida, a grande fonte do selénio para os humanos é a alimentação, havendo mais variedade na alimentação vegetal do que animal. Assim, os vegetais reflectem a qualidade dos solos e são os grandes responsáveis pela passagem do selénio para a cadeia alimentar. Nesta ordem de ideias, uma dieta alimentar pobre em vegetais pode tornar as pessoas mais susceptíveis à deficiência. Por exemplo, existe uma região em plena China onde a ingestão diária de selénio é de apenas de 9 a 11 micro-gramas/dia (a dose recomendada é de 55 micro-gramas/dia) o tem implicações na etiologia da doença de Keshan (cárdiomiopatia endémica) nessa região (6).

Hoje, conhece-se bastante bem a situação dos solos europeus especialmente no Leste (região de epidemia HIV/SIDA no presente) uma vez que, contrariamente aos da América do Norte, são geralmente deficientes em selénio. Os níveis plasmáticos de selénio europeus são inferiores aos requeridos para a actividade óptima da selénioenzima (a enzima leutatião peróxidaze), pelo que para solucionar o problema diversos países da Europa Ocidental adoptaram uma política de enriquecimento dos solos através da introdução de selenato de sódio nos fertilizantes agrícolas (7).

Deste modo, distingue-se hoje em dia uma relação entre o mapa mundi representativo das áreas de um baixo perfil antioxidante em geral, e deficiência de selénio em particular (8), e o mapa da prevalência da SIDA. A sobreposição das zonas é um resultado óbvio e muito esclarecedor. Recordamos que a primeira transmissão do HIV dos símios para os humanos ocorreu nas populações selénio-deficientes do Congo.

Nesta ordem de ideias, faz sentido prever que uma nova vaga de HIV/SIDA (a vaga chinesa) irá muito provavelmente ocorrer ao longo da cintura selénio-deficiente já antes implicada na epidemia da gripe das aves. O primeiro passo está dado: a julgar pelas correspondências já apuradas haverá em breve material que, embora objecto de controvérsia, inaugura uma nova dimensão geopolítica baseada na análise dos padrões da disponibilidade do micro-nutriente. Vistos em perspectiva, Halford Mackinder ou Spykman, se fossem vivos, não teriam certamente ignorado este aspecto nas suas teorizações geopolíticas.

A partir de uma análise comparativa das cartografias do selénio e da SIDA, tudo indica que os solos do crescente exterior ou insular (ilhas ou continentes exteriores, o mundo oceânico) são selénio -competentes, ao passo que os do heartland do Norte, do heartland do Sul (África ao sul do Saara, zona geopolítica identificada por Mackinder em 1919) e grande parte do crescente interior ou marginal (o rimland de Spykman) são menos ricos em selénio (9). Este aspecto carece de maior sistematização e integração na análise geopolítica, uma vez que pode ajudar a explicar o seu profundo impacte em factores variáveis da Geopolítica como sejam a estrutura demográfica e a organização económica e das Forças Armadas dos países, só para citar os mais evidentes. De facto, a SIDA modificou irremediavelmente a relação do homem com o espaço que o rodeia e condiciona hoje muitos dos projectos políticos que os países procuram implementar nas realidades geográficas que os circundam. Ao estudar a propagação da SIDA no mundo é do máximo interesse estabelecer-se o problema de como esta pandemia é utilizada como poderosa arma de guerra.

Notas

(1) PRINS, Gyn (2004) - “AIDS and Global Security”, International Affairs. Westminster. Vol. 80: 5, October 2004, pp. 931-958.

(2) PRINS, Gym, ob. cit., pp. 932-933.

(3) O avanço também está relacionado com a falta de linfócitos CD4 (glóbulos brancos).

(4) ISSELBACHER, Kurt [et. al.], ob. cit., pp. 1802-1859.

(5) OLDFIELD, James (2002) - Selenium World Atlas; Oregon State University. p. 8.

(6) Idem, p. 17.

(7) Em 1984, a ingestão de selénio na Finlândia era inferior a 38 microgramas/dia, tendo o governo adoptado uma política de enriquecimento dos fertilizantes com selenato de sódio e em 1999, foram registados níveis de ingestão de 65 microgramas/dia, com um máximo de 125 microgramas/dia, e níveis séricos (plasmáticos) de selénio óptimos para a actividade do glutatião peroxidaze. Ao aumentar os níveis de selénio nas plantas, as repercussões verificaram-se em toda a cadeia alimentar, com a vantagem de não se terem registado efeitos adversos ambientais. Sobre este assunto podemos detalhar mais em OLDFIELD, James, ob. cit..

(8) Os dados cartografados apresentam limitações em algumas regiões como a China e em alguns países em vias de desenvolvimento.

(9) OLDFIELD, James, ob. cit., pp. 12-50 e PRINS, Gym, ob. cit., p. 936.

 

Francisco Proença Garcia. Major de Infantaria, Professor do Instituto de Estudos Superiores Militares.

Maria Francisca Saraiva. Assistente no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Mestre em Relações Internacionais.