Mephostophilis : eis um estranho nome que tem provocado não poucas especulações entre os cocabichinhos que se dedicam a estudar estas curiosidades. Para encurtar razões, apenas apresentarei duas das inúmeras hipóteses que têm sido aventadas.
A primeira diz que o nome Mephostophilis é, muito provavelmente, um composto de três palavras gregas, que significariam «não amar a luz»: mê («não») + phôst- («luminária») + phil- («amor, amizade»). O Faustbuch limita-se a indicar o nome deste subalterno infernal sem lhe aprofundar a origem, mas já não se excusa de o fazer em relação ao Diabo-mor, explicando no capítulo X — que traz uma disputatio sobre o anterior estado beatífico dos Anjos Banidos —, que o seu nome, Lúcifer, se deve a duas razões: primeira, porque antes da Queda era o Anjo de Deus mais luminoso e cintilante em pompa, dignidade e proeminência, e segunda porque, em resultado da sua insolente e arrogante revolta contra o Trono Celestial, foi banido da rútila luz dos céus.
O dramaturgo Christopher Marlowe (1564-1593), contemporâneo de Shakespeare, foi o primeiro a aproveitar as potencialidades dramáticas da lenda de Fausto: inspirando-se na tradução inglesa de 1592 do Faustbuch, compôs, pouco antes de morrer, a peça em verso branco The Tragicall History of the Life and Death of Doctor Faustus. Marlowe, que pertenceu ao círculo iniciático «The School of Night» de poetas, intelectuais e cientistas suspeitos de ateísmo (acabou por ser misteriosamente assassinado numa rixa de taberna), mantém na sua peça o nome e a grafia Mephostophilis — figura de trevas ainda limitada pela concepção maniqueísta medieval de que o destino do homem é trágico e não há meio termo entre a danação e a salvação.
Por sua vez o gigantesco Johann Wolfgang Goethe (1749-1832) pegou na referida lenda e deu-lhe uma dimensão metafísica, teológica, estética e esotérica que a universalizou, na sua obra-prima Faust: Eine Tragödie (I-1808, II-1832). Goethe alterou a prolação do nome diabólico, que passou no seu texto a ler-se Mephistopheles, o que talvez justifique a segunda hipótese a que me referi há pouco: que esse nome, Mefistófeles, estaria associado a uma entidade simultaneamente silvestre e libertina, que vem referida cripticamente em dois livros do Antigo Testamento (Reis e Crónicas).
Teófilo Braga perfilha esta hipótese no prefácio do seu livro Frei Gil de Santarém, prefácio esse intitulado «Ideia do Poema» e que já citei mais de uma vez lá para trás. Segundo esse ponto de vista, a que Teófilo Braga chama «intuição admirável» (Braga 1905, p. XIII), aquele ser diabólico teria o seu nome derivado de uma certa palavra hebraica, mif elatseth, que encontramos no Primeiro Livro dos Reis e no Segundo Livro das Crónicas, e que parece constituir uma ponte deslizante entre o anseio de conhecimento das artes secretas e o da sensualidade depravada:
«No vigésimo ano do rei Jeroboam de Israel, Asa tornou-se rei de Judá […]. Expulsou da terra os prostitutos e removeu todos os ídolos que os seus antecessores tinham feito. Também destituiu a sua mãe Maakah da sua dignidade de rainha-mãe, porque ela erigira uma coisa abominável [hebr. mif elatseth] à deusa Asherah. Asa despedaçou essa coisa abominável [hebr. mif elatseth] e queimou-a no vale de Qidron» (1 Reis 15, 9-13).
Jerónimo, na sua Vulgata, traduziu mif elatseth pelo nome do deus Príapo, filho de Afrodite e de Diónisos, divindade fálica e dos libertinos, guardião dos jardins e dos pomares, e aquele trecho ficou assim: «…et Maacham matrem suam amovit, ne esset princeps in sacris Priapi, et in luco eius, et confregit simulacrum turpissimum et combussit in torrente Cedron». Em vez da deusa Asherah, do original hebraico, Jerónimo optou pelo termo lucus, luci, «bosque sagrado», e na segunda ocorrência de mif elatseth chamou-lhe simulacrum turpissimum em vez de Príapo. No passo paralelo do livro das Crónicas, Jerónimo continuou a chamar-lhe Príapo e simulacrum, e insiste no termo lucus : «…eo quod fecisset in luco simulacrum Priapi…» (2 Crónicas 15, 16).
Teófilo Braga interpreta esta imagem como a «energia sensual que arrebata o sábio à serenidade especulativa» (Braga 1905, ibid.), simbolizada noutra imagem pela sinuosidade de percursos. Tanto na lenda de Frei Gil como na do Fausto, os protagonistas deambulam por vários lugares, desde os mais próximos aos mais distantes, como por exemplo nas idas e vindas de Gil Rodrigues (depois Frei Gil) entre Coimbra, Toledo, Paris, e em seguida Palência e novamente Paris, e outra vez Coimbra, e finalmente Santarém… Fausto por sua vez também se passeia por diversos locais e jardins e mercados, e montanhas, e mansões remotas, e palácios e penhascos e florestas, até ao fantástico castelo de Helena:
«À deambulação física de saída e de regresso corresponde um percurso interior de procura, de engano e de obtenção final de um objecto de desejo, que é a ciência, por sucessivas superações: da aprendizagem escolar passa-se à nigromância, que proporciona o conhecimento das coisas ocultas ao comum dos mortais, e desta à teologia para chegar finalmente à ciência mística» (Nascimento 1992, p. 17). |