Esta fórmula um tanto rude e primária, em que o acto reprodutório é consumado e a menina atira com a castidade às urtigas, alterna com o modelo de inspiração gnóstica encratita em que a virtuosa donzela, apesar das investidas do Demónio, preza tanto a sua devocional virgindade que se não deixa inflamar pelas ardentes solicitações da carne.
Antes de seguirmos adiante anotemos que um dos formatos literários mais adoptados pelos autores eclesiásticos medievais era o do exemplum, uma pequena historieta intercalada no sermão para exemplificar a moralidade que se pretendia transmitir, como nos explica o historiador Mario Pilosu: « […] [E]stas histórias pias, que relatavam factos milagrosos, desgraças, castigos divinos, com inúmeros topoi releváveis na literatura hagiográfica e nas histórias populares, eram facilmente assimiladas como modelos pelo auditório do sermão» (Pilosu 1995, p. 21). Quando essas historietas edificantes, ou esses exempla, eram passados a escrito, entravam na categoria das «coisas que se deviam ler», ou que «deviam ser recolhidas» para bem da saúde moral e espiritual do leitor. O plural latino que traduz esta ideia é legenda, particípio futuro (gerundivo) da voz passiva do verbo legere, que significa «ler» mas também «reunir, recolher, apanhar». Portanto, legenda significa as coisas que se devem ler ou recolher. É por isso que nestes casos os historiadores preferem usar o termo latino «legenda» em vez do popular «lenda», para acentuar precisamente a ideia do que «deve ser lido ou recolhido», em contraste com a simples «lenda» que por evolução semântica passou a ser uma mera narrativa fantasiosa de carácter semi-histórico e semi-irreal, sem uma necessária conotação moral e/ou religiosa.
Posto isto, passemos agora para o segundo exemplo daquele motivo literário, cronologicamente, que é o do mago pagão Cipriano, de Antioquia, e da virgem Justina. Tal como o exemplum anterior, remonta pelo menos ao século IV, uma vez que a legenda de Cipriano e Justina já é mencionada pelo bispo S. Gregório de Nazianzo (329-390 d.C.) e pelo poeta cristão Aurélio Prudêncio (348-410 d.C.), que aliás confundiram este Cipriano, de Antioquia, com S. Cipriano bispo e mártir de Cartago, erro frequentemente repetido por posteriores mitógrafos. Certos autores pensam que a legenda do mago Cipriano teria sido o «protótipo místico» da posterior lenda do Doutor Fausto, devido à divulgação que teve ao longo da Idade Média, destacando-se sobretudo os relatos que dela são feitos nos Acta sanctorum do hagiógrafo bizantino Simeão Metaphrastes (século X), na já referida Legenda aurea de Jacobus de Voragine (século XIII), bem como em diversas versões medievais e renascentistas do Flos sanctorum.
Na Legenda aurea, no capítulo referente a Santa Justina, a história começa assim:
«A virgem Justina, da cidade de Antioquia, era filha dum sacerdote dos ídolos pagãos. Todos os dias, sentada à janela, escutava um diácono que lia o Evangelho, e acabou por se converter. Quando uma noite, na cama, a mãe dela contou ao pai a conversão da filha, apareceu-lhes Jesus Cristo rodeado de anjos e disse-lhes: “Vinde a mim, e dar-vos-ei o Reino dos Céus”. Quando acordaram, foram a correr baptizar-se com a filha. E esta virgem, Justina, foi perseguida e assediada por Cipriano, até que por fim ela o converteu e o conduziu à fé de Jesus Cristo. Este Cipriano, desde menino, tinha-se votado à magia, porque logo na idade de sete anos fora pelos pais consagrado ao Diabo, e tornou-se hábil em sortilégios: transformava as mulheres em jumentas e outros animais, e fazia muitos outros prodígios» (Voragine 1900, vol. 5, pp. 79 segs.).
A história prossegue com as peripécias do costume: Cipriano invocou o Diabo para o ajudar a seduzir Justina, fazendo com que ela mudasse de ideias acerca daquele desatino da virgindade consagratória. Mas ela foi inamovível, rezava e fazia o sinal da cruz e os demónios que o Diabo enviava tinham de fugir sem conseguir «abrasar-lhe o coração com o fogo da luxúria». Um deles chegou mesmo ao ponto de tentá-la com a seguinte esperteza:
«O demónio tomou a figura duma virgem e disse-lhe: “Vim ter contigo porque desejo viver contigo em castidade, e peço-te que me digas qual será a recompensa do nosso combate”. E a virgem [Justina] disse-lhe: “A recompensa é grande, e o custo pequeno”. E o demónio respondeu: “Então que significado tem o preceito de Deus: Crescei e multiplicai-vos, e povoai a terra? Receio, querida irmã, que se nos mantivermos em virgindade, estaremos a agir contra a vontade de Deus, e que a nossa desobediência e o nosso desprezo pelo seu preceito nos façam incorrer num grave castigo, em vez de alcançarmos a recompensa que esperamos”. E então, com as sugestões do demónio, o coração da virgem foi agitado por pensamentos tumultuosos e ela sentiu-se fortemente inflamada de concupiscência, de tal maneira que esteve prestes a levantar-se e a partir. Mas logo caiu em si e percebeu com quem estava a falar, fez o sinal da cruz e soprou sobre o demónio que imediatamente se desvaneceu derretendo-se como cera, e ela ficou livre de toda a tentação» (Voragine 1900, vol. 5, ibid.).
Em suma, o Diabo usou dos mais variados artifícios, chegou até a devastar Antioquia com uma peste epidémica que provocou uma grande mortandade durante sete anos, mas Justina foi inabalável. Cipriano, por sua vez, desiludido com os sucessivos desaires do Diabo, tentou junto da jovem os seus enguerimanços mágicos, sem melhores resultados. Então, compreendendo que o Crucificado era infinitamente mais poderoso que todos os demónios e todas as magias, renunciou ao Diabo e foi ter com o bispo, que o baptizou. Depois disso tornou-se tão devoto e virtuoso que foi ordenado, e, quando o bispo morreu, substituiu-o no bispado de Antioquia e pôs Justina como abadessa num mosteiro de jovens virgens consagradas à vida monástica.
Bom, o happy end não é tão happy como se poderia desejar — pelo menos de um ponto de vista profano… a virtude tem os seus inconvenientes, neste mundo materialeiro, e foi assim que o governador de Antioquia, em representação do feroz imperador Diocleciano (ca. 245-316 d.C.), ordenou que Cipriano e Justina oferecessem sacrifícios aos ídolos do paganismo, coisa que eles recusaram fazer, com toda a veemência. Então o governador submeteu-os a torturas várias a que não faltaram a cera, o pez e a gordura a ferver no clássico caldeirão, mas como ficaram milagrosamente incólumes, mandou-os decapitar e que se atirassem os seus corpos aos cães, tendo ficado expostos durante sete dias… enfim, «les malheurs de la vertu». Paz às suas almas. |