Quando chegamos a uma certa idade afigura-se-nos mui natural contar com a indulgência alheia para as nossas fraqueiras, ou tinetas, e eis que me vou valer dessa prerrogativa — ou desse mito… — para iniciar este desambicioso escrito com uma delas: as minhas recordações pessoais disto ou daquilo, sobretudo daqueles remotos tempos da mocidade que os venerandos septuagenários, entre os quais reumaticamente me incluo, costumam adornar com o clássico estribilho: «No meu tempo…» Pois bem, uma dessas minhas recordações, e bem curiosa, tem precisamente a ver com o meu primeiro contacto com uma singular figura do hagiológio lusitano, o tão demoníaco como bem-aventurado S. Frei Gil de Santarém.
A primeira vez que ouvi falar dele foi em 1948 (já lá vão 57 anos!), andava eu no 7.º ano do Liceu de Camões, era meu colega o futuro escritor Manuel de Seabra que num dia de Inverno desse ano longínquo me puxou para um canto da sala de aula, durante um intervalo, e me noticiou em voz de segredo: «Descobri um português que fez um pacto com o Diabo!»
Era um tempo em que certas coisas não se podiam dizer em voz alta, a salazaresca tríade «Deus-Pátria-Autoridade» não tolerava desvios, o padre professor da disciplina de Religião e Moral estava atento, e embora um inofensivo pacto com o Diabo fosse coisa de pouca monta, pelo sim pelo não o melhor era não andarmos por aí a apregoá-lo, não fôssemos correr o risco de chamar a atenção de vigilâncias menos tolerantes. Claro que a história me espicaçou a curiosidade, o meu colega não tinha muitos dados, apenas uma vaga indicação duns alfarrábios, mas tanto bastou para que eu na primeira oportunidade, poucos dias depois, fosse à Biblioteca Nacional consultar o que por lá houvesse sobre a matéria.
Nesse tempo chamava-se «Biblioteca Nacional de Lisboa» (BNL), estava instalada no antigo Convento de S. Francisco no Largo da Biblioteca Pública, entre a Rua Ivens e a Rua Vítor Cordon, no centro pombalino lisboeta, não havia idade mínima para se ser frequentador nem se pagava nada, era um serviço gratuito, e bastava exibir o bilhete de identidade para se requisitarem os livros — a única restrição é que se não podiam tomar apontamentos com caneta, só com lápis, para não deixar cair borrões de tinta nos pesados tecidos vermelho-escuro que recobriam as mesas! Foi preciso chegar o preocupante ano de 1980 para se criarem indecorosas limitações ao acesso à cultura: o colubrino Vasco Pulido Valente, então Secretário de Estado da Cultura do VI Governo Constitucional, presidido pelo Primeiro Ministro Francisco Sá Carneiro, instituiu a obrigatoriedade do «cartão de leitor», pago anualmente, com prévio preenchimento de formulários burocráticos e inquisitórios, além de que o privilégio de frequentar a biblioteca passou a ser interdito a menores de 18 anos, assim se mantendo até hoje. Curiosamente, a venda de tabaco nas lojas, de acordo com a legislação em vigor, é proibida a menores de 16 anos; donde deduzo que é muito mais perigoso ler um livro do que fumar um maço de cigarros, a fazer fé nas respectivas idades a partir das quais a tolerância é autorizada… |