Luiz Pacheco

Luiz Pacheco (ainda...) resiste

Entrevista de Guilherme Pereira

INDEX

Ainda resiste
Agonia do génio
Como é que ocupas aqui o tempo?
Cresceste numa família de militares...
E tu no Liceu Camões?
E a Contraponto?
Escreveste também na Seara Nova.
[Batem à porta do quarto, entra um homem]
Como é que era no Limoeiro?
Referes-te muitas vezes ao Café Gelo. Conta aí uma história.
O libertino passeia-se no lar.
 Foste um dos responsáveis pelo sucesso de O Que Diz Molero.
Opinião sobre o José Saramago, queres dar?
E a Admirável Droga?

Cresceste numa família de militares...
O meu avô materno era capitão-de-mar-e-guerra, era engenheiro maquinista, e o meu avô paterno era coronel de artilharia, foi director do Arquivo Histórico-Militar, que é em Santa Apolónia. Como era director e foi da Comissão ao Monumento dos mortos da grande guerra tinha uma grande biblioteca sobre a Grande Guerra, havia uma prateleira que era a História da Guerra Peninsular, do Luz Soriano... eram 9 volumes encadernados... esse meu avô fez uma espécie de testamento em que doava ao arquivo os livros que eles quisessem... eu já não conheci essa biblioteca... contava o meu pai que apareceu lá o funcionário do arquivo, este escolheu uma obra, dois volumes que deviam faltar lá na biblioteca do arquivo, ou seja, fodeu aquela m**** toda...

Dessa biblioteca, o que é que restou?

Livros de poesia, romances... ainda eram umas centenas de livros... e ia às bibliotecas públicas, havia uma biblioteca municipal que ficava ao cimo da Av. Duque de Loulé, ia ao Palácio das Galveias... Galveias era o fim de Lisboa... Depois é que comecei a comprar... Tinha uma coisa que era o meu livro do mês: só comprava um livro por mês... na altura custavam à volta de 20$00, 25$00...

E o teu pai?

O meu pai era funcionário público, trabalhava no Instituto Nacional de Estatística, era repórter mundano do Comércio do Porto, tenor na Sociedade Coral Duarte Lobo. E ainda tocava piano nas horas vagas. Não acabou o curso, estava a tirar o curso da Faculdade de Letras para diplomata, era um curso que metia um mestre de espanhol, um mestre de italiano... Queria ser diplomata, simplesmente passou a grande guerra de 1914 e o movimento diplomático parou... ficámos sem os postos dos alemães, dos austríacos... resultado, não acabou o curso, nem ele nem eu...

Nasceste e cresceste na Estefânea...

Quando vim para o lar, comprei o passe, então metia-me no autocarro sem saber para onde é que eles vão... não vejo nada, nem sequer os números e o caneco... metia-me no primeiro autocarro e ia até ao fim da linha... um dia apareci no Fonte Nova, julgava que era o Arco Íris... bom, mas numa dessas viagens fui parar ao Arco do Cego, Alameda, Praça do Chile... o Chile está na mesma… não está exactamente na mesma porque havia um lago no meio… o lago que depois estava no largo D. Estefânia…nos meus 14, no tempo do liceu, havia a rua de grande movimento e muito populosa que era a Moraes Soares, havia a Carvalho Araújo, que ia até à Alameda, e depois acabava... não havia a Alameda, não havia o Técnico, depois era o Areeiro e até à Av. do Brasil, ao aeroporto, eram terrenos, quintas aqui ou ali, pequenas quintas, depois eram zonas de despejo, onde as camionetas despejavam ali nos terrenos… Ao cimo da Rua D. Estefânia, onde eu nasci, no nº 91, 1º andar, havia a rua do Arco do Cego que tinha uma coisa que era o sobe e desce, depois puseram-se a fazer a Casa da Moeda, a Estatística, o Técnico… o Duarte Pacheco, que era presidente da Câmara de Lisboa e Ministro das Obras Públicas foi censuradíssimo por causa do Técnico, porque havia aulas onde só estavam seis estudantes… hoje o Técnico tem milhares de estudantes… O Duarte Pacheco era diabético e um trabalhador incansável… estava lá no ministério até às tantas, a beber leite, era um gajo de facto com uma visão do futuro… depois tinha o apoio do  Salazar, que também não era tão mau como isso… não era tão mau como isso… era péssimo... mas enfim… era péssimo, um criminoso com batina de padrecas e botas pretas...bem se fodeu... mas também não era como estes m****s que há agora… Disseram-me que o prédio da D. Estefânia tinha ido abaixo, parece que a casa do Jaime Salazar Sampaio, na rua Casal Ribeiro, também foi abaixo… quer dizer aquela zona da Estefânia mantém-se muito mais parecida com o que estava aqui há 70 anos do que a Casal Ribeiro ou o Saldanha… aí foi tudo abaixo, o Monumental, um dia passei lá e vi a imagem, a estátua do Saldanha com o dedo apontado, parecia um paliteiro... aquilo foi feito para um cerco de prédios muito mais baixo e hoje estão coisas brutais…de maneira que eu de repente estava em sítios que conheço de gingeira... Era a zona onde brincávamos, o Pires, o Salazar Sampaio, a malta da minha turma do Camões, andávamos por ali aos saltos a brincar, de repente aparecia um lago...