Como é que era no Limoeiro?
O Limoeiro era uma prisão de passagem, para quem estava à espera de julgamento, não era para os que estavam a cumprir pena. Isso era em Monsanto e assim... Lá dentro havia estratos sociais, a Sala dos Menores, a Sala dos Bacanos, os que tinham conhecimentos fora da prisão... como eu... da segunda vez que lá estive o Artur Ramos telefonou ao pai, que era Director-Geral da Penitenciária... e depois havia a Sala Comum, para onde iam todos... ah, e a Sala dos Primários, para aqueles que lá estavam pela primeira vez... De repente havia confusão... jogos a dinheiro... havia um fiscal, que era um preso nomeado... dava prestígio mas também era perigoso... tinha de ser um tipo forte. Dava prestígio e dinheiro, porque tinha um negócio de laranjadas, sandes, etc. Depois havia a oficina, alguns presos trabalhavam lá, uma enfermaria... tinha lá um enfermeiro perigosíssimo, vendia penicilina misturada com água, em frascos de vidro...o gajo limpou o sarampo a vários presos. O refeitório, com mesas corridas, aí umas 10, havia o chefe de mesa, que era quem distribuía a comida, conforme as amizades e os acordos... Havia muita discussão por causa da comida...
Estiveste preso com o Edmundo Pedro...
O Edmundo Pedro é um tipo muito giro... foi preso por causa de contrabando, mas também por resistência, para foder a economia do Salazar... Um vez o gajo ia num camião com uma carga valiosa, estava cheio de whisky e de tabaco... Um GNR manda-o parar, os gajos não podiam perder a carga... então o Edmundo Pedro apontou-lhe um pistolão... o GNR abre a camisa e diz: “dispare, dispare que mata um homem”. O Edmundo Pedro ficou aflito, disse ao GNR para fugir, para desaparecer, que não queria matá-lo nem ser preso. O GNR desapareceu. Depois foi saber quem era o GNR e foi a casa dele dizer-lhe que ele se tinha portado muito bem e levou-lhe um envelope cheio de dinheiro. É um gajo muito giro... Quando foi aquela cegada do Quartel de Beja, o Edmundo Pedro ia ser julgado no Tribunal Militar de Santa Clara e então pediu à mulher para lhe levar pimenta... quando estava no tribunal mandou pimenta para os olhos do PIDE... à saída tinha um carro à espera dele... fugiu e tentou abrir a porta do carro mas era a errada, estava fechada, fodeu-se... Opá, o gajo andava a ler no Limoeiro o Charles Dickens, um grande tijolo, o Grandes Esperanças. Nunca acabou de ler o livro, porque era assim...ora lhe adiantava 100 páginas, depois recuava outra vez, e ele nunca deu por nada... A mulher levava-lhe comida todos os dias. Dessa vez comi muito bem...
Ficaste associado ao Limoeiro...
Opá isso é o Bocage... fiquei ligado ao Limoeiro... já nem há Limoeiro, calha bem... Tu tens de perceber uma coisa, eu quando falo no Limoeiro é para chatear o burguês instalado...mas toda a gente sabe que estive lá por motivos da política e por comer umas garotas e uns garotos...bons tempos, c******!
Há uns anos, lembro-me que andavas a ler vários livros do Céline. Gostas?
Eu escrevi um texto sobre o gajo, “Lendo e Relendo Céline”, que foi publicado em Portas do Sol, a página literária do Correio do Ribatejo, e depois foi incluído na Crítica de Circunstância. O Céline era cortado, sabotado, como o Giono... mas eu escrevi aquele texto, sobre a Viagem, porque só tinha esse livro em casa. Era o único, de bolso, no original, em francês. Já tinha lido partes da tradução e fiquei muito chateado. Viagem ao Fim da Noite? O fim da noite é o dia... Devia ser: Viagem ao Fundo da Noite. Mas nesse dia, como era o único livro que tinha à mão li-o do princípio ao fim. Fiquei espantadíssimo. É um livro de arromba. O título do meu texto devia ser: “Lendo, espantado, Céline”. Recebi 20$00 pelo artigo, em selos fiscais que rebatia na papelaria. Escrevi o texto em Setúbal. O Cesariny disse-me: “Já li o teu elogio da traição”. Bardamerda!
Também ganhavas uns trocos a fazer traduções...
Relativamente... muito poucochinho...
Por exemplo, o José Gomes Ferreira fazia as legendas para os filmes… era com isso que ele ganhava dinheiro, não era com os livros… Álvaro Gomes era o pseudónimo… isso são coisas muito bem pagas… não é a traduzir uma m**** de um romance ou de um livro… A certa altura o Ernesto Sampaio aparecia no Café Gelo, rasgava um livro em partes, em blocos de 100 páginas, e distribuía por uns tantos, para vários o traduzirem. Eram os negros. Eu fui negro do Cesariny, num livro de um escritor romano... o Gaspar Simões tem montes de traduções que não são dele, nem da avó dele... muitas são da Isabel da Nóbrega, ela traduziu Os Sonâmbulos e eu é que estive a rever as provas da Arcádia em Setúbal… tiveram que lá ir buscar que se foderam… eram à máquina, com emendas à mão…Em Massamá fiz umas 4 ou 5 traduções para o Fernando Passos, da Verbo. O Tia Vânia, do Tchekov, foi traduzido por mim e pelo Chico Bretz. O Chico traduzia até às 3 da manhã, depois quando se fartava ia-me acordar para passar aquilo à máquina.
Referes-te muitas vezes ao Café Gelo. Conta aí uma história.
Vou contar-te uma...era um 1º de Maio. Havia uma manifestação muito grande em Lisboa… havia greve, talvez… opá houve mortos e tudo, houve polícias que foram parar dentro do lago do Rossio... aquilo foi a sério... foi a primeira manifestação a sério que houve em Lisboa... depois no dia 8 houve segunda… foi a primeira vez que apareceram carros de água com metilene para marcar as pessoas, tinta que não saía… ele aí apanharam muita porrada, na rua da Madalena, no Largo da Anunciada… então a malta do Gelo, estava lá o Virgílio Martinho, que disse: “o que é que a gente veio cá fazer?” Respondi-lhe: “então a gente veio cá mostrar o casaco… dar porrada? o que é se pode vir fazer…” E de facto estivemos no dia 1 de Maio muito sossegados. Eu sentei-me num cantinho, tinha ao meu lado o pai da Fernanda Alves, que era funcionário do DN, por isso é que o genro aparece no DN, ele estava ao meu lado, também muito choné, e mostra-me a arma que era um canivete com uma coisa deste tamanho… também devia estar o Ernesto Sampaio, o João Rodrigues… ao lado do Gelo havia uma pensão residencial e acho que uma estrangeira qualquer, americana ou inglesa, saiu da pensão para a rua, sabia lá o que se passava, e os gajos vieram atrás da mulher, pareciam verdadeiras feras, ela vinha assarapantada, vieram a sacudir a mulher… disseram: “ninguém se levanta daqui, ninguém sai!” O João Rodrigues tinha ido mijar ao 1º andar, vinha a descer a escada, disseram, “ei você…” E a malta disse: “é daqui! é daqui! é daqui deste grupo que está aqui sentado…” Quando os gajos iam a sair, já de costas voltadas, não sei porque carga de água começámos “uhuhuhuhuhuh”. Quando a malta faz o “uhuhuhuhuhu” os gajos regressam e começam a dar porrada à maluca… eu estou no canto, vem um gajo a distribuir cacetadas… eu aponto para os óculos e fizemos um passo assim de dança, ele para um lado eu para outro, depois começou a dar porrada num gajo que estava sentado e eu pirei-me, pirei-me para outro canto... nós não podíamos sair... Havia uns açucareiros de metal, que eram assim uma meia esfera de metal, cheios de açúcar, aquilo era chato, os açucareiros voaram, estava um gajo com a pinha toda partida, cheia de sangue e de açúcar… havia lá um gajo que era careca, diziam que era bufo, levou porrada dos polícias. O gerente, que era um gajo chamado Sequeira, um gajo muito simpático, foi chamado à esquadra nacional e perguntaram-lhe: “quem são esses gajos?”. “Ah, aquilo é malta, estudantes, artistas, pintores, poetas…” “Não quero lá esses gajos”. De maneira que quando voltámos, 3 ou 4 de Maio, o gerente disse: “vocês não podem estar aqui”. Fomos expulsos do Gelo. Foi quando a malta se passou para o café Nacional, um café enorme, que agora já não há, que era lá ao fundo, na rua 1º de Dezembro, do lado direito.
[Batem à porta, entra uma empregada do lar, brasileira]
Pacheco: “Ó minha senhora, desculpe que lhe diga, é uma lindíssima mulher…
Empregada: “ahhh?”
Pacheco: “ahhh? O que é que ela diz?”
Empregada: “Isso é a minha filha”.
Pacheco (pega nas mãos da empregada): “Olha, tem as mãos quentes. Tu não fazes ideia, esta senhora e as outras acordam a velhinha ali do lado todas as manhãs, sabes como? Dando beliscões na velhinha…o barulho que elas fazem a rir… Olha, ontem vi uma… não estava nua… estava a vestir-se…”
Empregada: E o senhor gosta de ver, né, e o senhor gosta…
Pacheco: Eu não vejo quase nada, ó minha senhora… eu não vejo quase nada… chegue-se aqui... olha para este espanto... é uma mulher linda... anda é muito vestida... quero vê-la na praia...”
Empregada: “Ele é fogo, o sôr Luiz é fogo…”
Pacheco: O quê? pego fogo…? Queres levar um livro? Não te faz mal nenhum…
O libertino passeia-se no lar. Como é que foi a publicação de O Libertino Passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor?
Quem pagou a edição foi o Vítor Silva Tavares. Um dia estava numa tipografia e encontrou uns exemplares, primeiras edições, de Sodoma Divinizada, do Leal. Comprou esses exemplares ao tipógrafo. Com o dinheiro que fez da venda desses exemplares do Raul Leal produziu a 1ª edição do Libertino. O que eu sei é que o Libertino foi a fazer ao Porto, tenho a impressão que fui lá rever provas, saiu e em Janeiro de 1970 aparece-me no Hospital de Santa Marta, onde eu estava internado desde o 25 de Dezembro de 1969. Na véspera de Natal acordei com uma ressaca doida, depois de ter andado nos copos e no putedo, e não me conseguia levantar da cama… fui para o banco de S. José, fiquei lá a noite e no dia seguinte fui para Santa Marta… com uma ressaca maluca... o diagnóstico dizia que era angina de peito… estive lá um mês…bom, entra-me por ali adentro, em Santa Marta uma embaixada, à frente a Lia Gama com o marido, atrás o Lauro António e o Vítor Silva Tavares. Vinham de almoçar todos juntos e traziam-me a edição do Libertino para eu assinar e numerar…eram 500 exemplares...
A edição foi apreendida pela PIDE...
O Libertino não foi apreendido porque nunca chegou a ir às livrarias, a 1ª edição nunca chegou a ir às livrarias. Não foi apreendido, foi proibido. Depois o Vítor guardou os livros, acho que parte em casa, parte no Diário de Lisboa, e era aí que depois ele vendia os livros, a 500 paus cada.. desapareceu tudo... era bem bonita, a 1ª edição...
O que é, para ti, um libertino?
As pessoas não percebem nada do que é o libertino. O termo ficou, na linguagem vulgar, associado a coisas disparatadas, como sinónimo de devassidão. Ora libertino não é apenas um devasso. Não é apenas aquele tipo que gosta de ir para a cama com homens, com mulheres, com todos ao mesmo tempo... O libertino é um tipo livre, que está contra todas as tiranias. O Sade, por exemplo... aquilo que o Sade conta está quase tudo dentro da imaginação dele... Repara: o gajo esteve quarenta e tal anos prisioneiro em masmorras e hospícios, e à ordem de quatro regimes: a realeza absoluta, a realeza constitucional, a Revolução e o Império, o que mostra bem como o libertino é o maior inimigo de todos os sistemas e como estes o odeiam, o temem. Porque os sistemas são a ordem e o conforto, ao passo que o libertino é a aventura, é o descontrolo. O Sade está aí. O Sade está entre nós. Mais: o Sade está em todos, dentro de nós. Mas o libertino também é o ateu radical. É aquele que faz da sua vida amorosa um espectáculo, um espectáculo através das palavras, do discurso. Conheci muita gente devassa, mas libertinos muito poucos. Agora, aquela coisa da crueldade como fonte de prazer sexual aí já tenho as minhas resistências, já tenho as minhas repugnâncias. Pessoalmente, do ponto de vista do comportamento sexual, prefiro o Valmont, das Ligações Perigosas, do Laclos. Ou seja, o Sade é exemplar mas não é um bom exemplo.
A casa em Massamá, para onde foste viver em Setembro de 1970, era conhecida na vizinhança como uma casa de má fama...
A casa em Massamá era um disparate... às vezes era uma balbúrdia do c******... a tal política de porta aberta em Portugal não dá… em Portugal não dá… quer dizer, não dá, os negros, por exemplo, têm isso, em casa moram 4, de repente vêm mais 5, ficam, ajeitam-se, vêm mais 10, ajeitam-se... são muito solidários e não se importam de ficar a dormir no meio do chão… em Massamá era assim, dormiam no meio do chão, de qualquer maneira... A gente não tem a vida na mão, de repente, depois de mortos, não precisamos de nada. Nem dinheiro, nem vestes, nem nada... Agora, às vezes o Chico Bretz avisava: “olhem que o Pacheco é mau de assoar”. Porque de repente eu não lhes abria a porta ou punha-os na rua… Se me chateavam era limpinho, bom, adiante…
Foi quando moravas em Massamá que saíram os Exercícios de Estilo, um dos teus livros mais importantes...
Saiu agora, há uns anos [1998], a 3ª edição dos Exercícios. A capa é horrorosa, o gajo arranjou um postal com o lago das Caldas... esta capa é uma capa para os supermercados... as outras não tinham o mesmo impacto desta. Esta edição nem revi. É uma edição póstuma. Mas tem uma vantagem em relação à 1ª edição, que é ter separado estes textos... [aponta para o índice]. O primeiro texto era “O Homem que Calculava”, que era um gajo que não quer empregos e não sei que mais... ora se é um gajo que não quer empregos acaba a pedir esmola e, por isso, a primeira parte acaba com “peço uma esmola”, de “O que é o Neo-Abjeccionismo”. Isto é que eram os exercícios de estilos. Eles acharam pouco e eu então arranjei 4 fragmentos mesmo assim, como estavam, que são textos que não estão acabados... Esta 3ª edição leva depois aqui para o fim com a tralha toda que eu consegui juntar, “Um conto por um conto”, “O Veado”… esses vinham nos Textos de Guerrilha…
[Bate à porta um velho para informar que o almoço é empadão]
Pacheco: “Este gajo irrita-me. Quando estou a dormir na cadeira ele grita: BOM DIA! Ele não diz bom dia, ele atira o bom dia como quem atira uma pedra.Nunca mais morre o cabrão, tem feitio de almocreve e foi um panascolas de m****...agora já nem cú tem...
Foste um dos grandes responsáveis pelo sucesso de O Que Diz Molero. Como é que isso se passou?
Eu estava em Massamá e tive a informação de que a Bertrand me queria editar a Obra Completa. Um dia fui à Bertrand, na Venda Nova, e encontrei o Dinis Machado, que foi gentilíssimo comigo e com o Paulo... encheu-o de álbuns, papel, livros... e deu-me as provas do Molero – portanto a minha crítica saiu no Diário Popular antes do livro estar à venda. No dia seguinte comecei a ler aquela m****, aquilo são dois gajos a discutir, e eu disse ao gajo onde estava o meu filho Paulo, o Henrique Garcia Pereira: “opá, eu estou f***** com este gajo, este gajo foi tão simpático comigo e com o meu filho, deu-me tanta m****, e agora isto é uma porcaria, não se percebe nada”. Até que de repente entrei na cegada da cena de porrada com os camones no Bairro Alto... aquilo tinha uma coisa, é que era um livro que já não era escrito com medo da censura, via-se que havia ali... o gajo não era nenhum novato, já tinha escrito 3 romances policiais... havia ali de repente uma força, porque estes gajos se tivessem um bocadinho de vergonha não publicavam os livros que publicaram durante o fascismo… bom, então escrevi o artigo “Descobri um Autor”. Só na semana seguinte é que o Molero saiu à venda. Estava na feira do livro e apareceu-me o Afonso Praça: “olha, comprei aquela coisa do Molero por causa da tua crítica, opá julguei que estavas a gozar, mas tinhas razão, aquilo é muito giro…” Depois disse muito mal do Reduto quase final, numa entrevista ao Batista Bastos. Um gajo também não escreve só obras-primas, há altos e baixos... Se um gajo vai facilitar, a não pensar, se o gajo não é o leitor mais exigente de si mesmo, está f*****, tem a classificação que merece. Eu de facto não descobri autor nenhum, descobri um livro giro…
E aquela história do Fernando Namora, O Caso do Sonâmbulo Chupista?
Eu apenas fiz a divulgação da vigarice do Namora…o Namora era um vigarista, o gajo que mais plágios fez em toda a história da literatura...onde é que eu ia?Ah... e eu estou em Agosto na cervejaria Trindade com o Serafim Ferreira e com o Herberto Helder, que se está a queixar que aquela gaja, a Maria Estela Guedes, tinha feito um livro com textos que tinha roubado, e de repente o Serafim diz: “opá, isso plágios é o que para aí há mais, eu tenho lá em casa a edição especial da Aparição que me deu o Vergílio Ferreira com coisas anotadas que o Namora lhe roubou...” E eu estou a ouvir aquilo e estou calado. No dia seguinte telefono para a Amadora, onde mora o Serafim, e pergunto: “ouve lá, aquela tua conversa de ontem, aquilo era blague de café ou era a sério?” “Não, tenho cá o exemplar da Aparição. Combinámos então o terrível crime nas escadinhas do duque, em que ao cimo das escadinhas eu digo: “ouve lá, tu vais fazer um panfleto e eu edito-te e vamos ganhar um bocado de massa os dois, estamos em Agosto, agora não se vende nada mas vende-se em Setembro”. E ele disse: “eu não posso fazer” – não perguntei porquê, devia favores ao Vergílio Ferreira ou ao Namora, porque o Serafim é um bocado marçano. E eu disse: “então passa-me para cá isso e faço eu”. Estive semanas ou talvez mais, um mês ou dois, a confrontar na Biblioteca Nacional, foi tudo verificado... eu mostrava às pessoas e as pessoas concordavam, aquilo era tudo roubado, o Namora, no Domingo à Tarde, tinha copiado partes do Aparição, do Vergílio Ferreira. Fui então ao O Jornal ter com o Rodrigues da Silva: “ouve lá, achas que isto aqui é publicável? Reposta dele: “opá, o José Carlos Vasconcelos é muito amigo do Namora, nem pensar...” Ninguém queria publicar aquilo. Estavam com medo do Namora. Tive eu de publicar, melhor, tive de arranjar um gajo, o Vítor Belém, ele é que fez a edição. O Belém foi comigo à Tipografia Mirandela, na Travessa Condessa do Rio, perto da Calçada do Combro... era a gráfica desses gajos da extrema-esquerda… aquilo foi composto, eu revi provas, num papel muito ordinário... saiu num folheto de 8 páginas, fiz 5 ou 6 mil exemplares. Despachei tudo, vendeu-se à maluca, alguns iam parar às caixas do correio.
E as reacções?
O Dinis Machado foi com a mulher ao Hospital do Rego interceder para eu não publicar o folheto. A célula do PCP na Trindade, o Batista Bastos, o Virgílio Martinho, o Dácio e outros juntaram-se e condenaram-me... diziam que eu me tinha vendido ao Vergílio Ferreira, que tinha sido pago pela direita para dizer mal de um escritor da esquerda. Ora o Namora era tão de esquerda como o Vergílio Ferreira. Dizia-se que o Vergílio Ferreira me tinha dado um fato novo e 50 contos. A reacção do Vergílio Ferreira vê-se na Conta Corrente, o gajo lamenta-se e tal… O Namora disse que me processava e não sei que mais... O meio literário não é fácil, não é melhor nem pior que os outros... agora avançar neste meio é facílimo...se fores vigarista até prémios ganhas...
E xplica lá isso melhor...
Foda-se, tu não sabes? És jornalista e não sabes?…foda-se não te vou ensinar, eu ensino-te é a combater o meio... opá, um tipo que quer fazer carreira, se não for parvo de todo e for um bocadinho filho da p***... é facílimo... O meio literário é de cortar à faca mas muito fácil de penetrar. Eu, que nasci em Lisboa, via-os chegar da província, os Namoras, os Amândios César, os Paço d’Arcos, etc., andavam por aí a borbulhar, a deslizar, a ver quem chega primeiro. É como os espermatozóides. Agora combater o meio, isso é que é difícil, é o mais difícil... a questão é esta, estúpidos, conformistas, cobardes, é a maioria da malta...
Pessimista sobre o nosso meio, Luis...
Não, é ser realista...
Todos os pessimistas respondem dessa maneira...
Eu não sou muito de me deixar influenciar...vai insistir com o c******...o teu ainda funciona...
Consideras-te um marginal?
Eu não me considero coisíssima nenhuma. Eu considero-me um gajo que está aqui sentado. O burguês tem perante o chamado marginal, o gajo que está na cadeia, ou que está no hospital, ou aqui no lar, uma atitude natural de superioridade e supremacia. Isso manifesta-se. O que estou a dizer é que estou-me cagando para o burguês, para os burgueses todos, incluindo a minha costela burguesa. Esses gajos são uns exploradores. Querem apanhar o meu lado pitoresco, ou folclórico, para fazerem negócio com isso. Se fazem negócio com isso, é bom, eu acho bom....mas não me fodam a cabeça...
Recebes uma bolsa do Ministério da Cultura, por mérito cultural...
O Alçada Baptista quando era Secretário de Estado encontrou-me um dia na Av. da República e perguntou-me: “não lhe dava jeito uns 7 ou 8 contos por mês?”. “Ó dr., não me diga isso”. Se fosse um conto ainda acreditava…” Depois vi o decreto e concorri. Tive logo um subsídio de 10 contos. Depois, a Maria João Rolo Duarte, a mãe deste Pedro, é que conseguiu que o Santana Lopes, quando era Secretário de Estado da Cultura, me aumentasse o subsídio, que na altura ia nos 60 contos... a Maria João Rolo Duarte sabia que o Cesariny recebia mais que eu e, numa festa em que encontrou o Santana Lopes, fê-lo prometer que me aumentava o subsídio. Como ela escrevia na Capital, publicou um texto que comprometeu o Santana. Recebi mais 30 contos por mês, passou para 90 contos. Mais trinta contos por mês, um conto por dia... de repente apareceu-me lá em Setúbal uma carta com retroactivos, 6 meses, foi um balúrdio... 30 contos é uma grande diferença... Gosto do Santana por causa disso. E também porque é um playboy, um gajo dos copos, das discotecas e das putas.
Opinião sobre o José Saramago, queres dar?
É muito meu amigo. Foi muito porreiro comigo na altura do Diário de Lisboa. E noutras ocasiões. Um dia apareceu-me no sanatório do Barro, em Torres Vedras, com a Isabel da Nóbrega... quando se foram embora puseram uma nota de cinco contos, disfarçadamente, na gaveta da mesa de cabeceira... Quando ele recebeu o Nobel foi lá a Palmela uma filha minha, com o marido e com os dois filhos, e diz-me assim: “ah, tu tens é inveja do Saramago”. Tenho agora inveja do Saramago… nunca quis prémio nenhum quanto mais agora o Nobel… quem tem inveja do Saramago é o Lobo Antunes e muita… porque o Lobo Antunes deve ter-se convencido que com o seu mérito próprio ganhava o prémio... ora o prémio não é um prémio para mérito próprio, o prémio é um prémio político, o prémio é dado com pontaria, com muita pontaria...fica sempre desconfiado quando vires um gajo da nossa arte a ganhar um prémio...
Nos últimos anos tem publicado livros a um ritmo espantoso. Uma Admirável Droga...
Isso é aquilo que eu chamo um livro póstumo, eu não tive intervenção quase nenhuma naquilo... a Isabel Segorbe, de Coimbra, telefonou-me a perguntar se podia editar um texto meu que tinha lá em casa... mudou de casa e achou lá aquela laracha... eu não sabia o que era aquilo... De repente sou confrontado com situações de que não lembro de nada... eu andei debaixo de álcool, álcool misturado com drogas, não é o haxixe e essas coisas que vocês tomam agora, era o Lorenine, era o Valium, era essas m****s. Eu tinha dias em que não me lembrava, no dia seguinte, absolutamente de nada... podem contar-me tudo o que quiserem que eu não vou negar, mas vou negar para quê? Já não consegues desfazer em muita gente a opinião que fazem de ti, é muito difícil de desfazer... por exemplo, o Batista Bastos foi ele que apresentou esse livro de Coimbra, o lançamento foi ali na livraria Ler Devagar... eu não fui lá, ficou muito ofendido... eu se fosse lá era para lhe dar com uma bengalada nos cornos... o gajo começa: “Luiz Pacheco, bebedeiras, prisões, sexo bilateral... até parece que ninguém viu o B.B. bêbedo... eu por acaso vi... às vezes aparecem-me aqui gajos que dizem que me conhecem... sei lá quem são os gajos, não faço ideia nenhuma... um dia destes apareceu aqui um gajo: “eu sou o António Carranca”, como quem diz “eu sou o Napoleão”... eu não fixo caras... quando chegaste aqui, se dissesses “eu sou o Kadafi”, eu acreditava... mesmo com os óculos eu levo uns segundos... se fores às Caldas da Rainha há montes de gajos que me conhecem ou se lembram de mim e eu não faço ideia quem são...
E a Admirável Droga?
A carta que tu me escreveste, quando aquilo saiu, foi a 1ª opinião que me chega sobre a Admirável Droga. Gostava que tivesses sido mais agreste. Não por masoquismo mas porque entendo que o teu adjectivo despudorado é ao mesmo tempo bastante pudico... discreto... delicado... Não estamos em tempos de PIDE, Censura, Clero da Inquisição. Dá-me vontade de rir estas coisas. Eu nem sei o que escrevi. Li agora aquilo como o livro de um outro. Quando revi, em Janeiro de 2001, as provas (ampliadas) escrevi no fundo da página três desabafos, que saíram colados ao texto. Que fazer? Nada. Autorizei a Senhora a fazer o que quisesse… e ela fez bastante, caramba! As pessoas, o que eu tenho visto, prendem-se ao escandaloso, ao insólito, falando vulgarmente, ao espectacular. É com elas. Tá bem, é assim. Não havia, creio que ainda não há, em português, originalmente, relatos com homossexualidade, pedofilia e por aí. Não vai tardar muito, creio! Nem eu me arrogo o Vasco da Gama, o Colombo, o Cabral desses “descobrimentos”. Nem está aí o meu objectivo. O Libertino é uma reportagem, escrita de jacto, no dia seguinte aos eventos relatados. Estes casos, dos marujos e da Emília, chegam-me de longe e já têm meio século.
És parecido com o que escreves...
Eu não tenho, creio, grandes dotes de imaginação. A minha fantasia é pobre. Sendo assim, os textos que considero mais conseguidos são autobiográficos. Reportagens de mim. Com um mínimo arranjo estético. Nalguns casos, como o do Libertino, são textos directos, rápidos, sem mastigação. Noutros são uma construção sobre os factos, aquilo a que chamo textos orquestrados, como a Comunidade, por exemplo.
E o livro Mano Forte, a correspondência para o António José Forte?
Quem conheça um pouco da minha vida sabe que eu tive uma vida atribulada, com fugas de casas, de terras, de mulheres, de calotes e cobradores, da polícia e até dos ladrões, de ambientes… eu sempre tive o cuidado, quer em Setúbal, quer nas Caldas da Rainha, quer na Macieira, quando aparecia uma ameaça de ser preso ou ter que mudar rapidamente de casa, de não andar carregado com dossiers cheios de tralha… ficou-me muita tralha perdida para aí… ainda bem que ficou…
Mas gostas do resultado final do livro?
Dali não vem mal ao mundo. Podia vir se isto fosse uma edição que não tivesse venda. Isto é muito cuidado. Se teve venda alguém ganhou, ganhou a tipografia, ganhou a fábrica de papel, ganhou também o editor… Eu tenho uma certa cagança nisto. Repara, eu estou aqui no quarto, não saio à rua há mais de um ano e de repente estou na montra da FNAC… é uma maneira de sair daqui.
Lembras-te de ter escrito aquelas cartas e aqueles postais?
Não me lembrava de nada. Publiquei cartas minhas para na cadeia do Forte de Caxias e do Forte para mim no Pacheco versus Cesariny. Isto é nem mais nem menos o resultado de um gajo que teve uma vida fodida, ou variada, salta de Lisboa para Setúbal, de Setúbal salta para as Caldas da Rainha, salta para Almoinha, Sesimbra, salta para Vieira do Minho. As cartas também são para vários sítios porque como o Forte era funcionário das bibliotecas itinerantes andava por Vieira do Minho, Portalegre, Santarém, Tomar…
Qual a memória que guardas do António José Forte?
O que não está aqui feito e também agora não interessa fazer era valorizar, dar o seu justo valor à figura do Forte. Eu tentei convencer o Bernardo Sá Nogueira... não quis, achou que não… O Forte nunca foi um gajo de se evidenciar muito, de se por em bicos de pé… é claro que este livro era uma boa oportunidade de chamar a atenção para o Forte… Olha, não quero falar de mortos. Aqui no lar já há muitos mortos. Aqui está tudo morto. O gajo da cadeira de rodas… Quando passa aqui o cortejo, à hora de almoço, à hora de jantar…
Como é que esta correspondência aparece passados tantos anos?
Um tipo sabe que fulano, António José Forte, por exemplo, guardou coisas que lhe mandou, cartas e postais, guardou, morreu, foi parar às mãos de alguém e depois aquilo representa um valor… e então vendem… depois aparece um urubu mais categorizado, com outra perspectiva empresarial e faz a edição. Eu em princípio não posso estar contra isso. De qualquer forma, este livro é uma golpada, é de rabo à mostra… repara, é uma edição de 1000 exemplares a um preço, mais 100 a outro preço, numerados, com mais 30 a outro preço, numerados também, uns em romanos e outros em árabe. É o intuito do alfarrabista a valorizar as cartas que lá tem. Seja como for, o livro está cheio de disparates. Passaram a vida a foder-me.
Como por exemplo?
O título, desde logo o título. Eu não conheço as cartas nem os postais, mas duas dezenas de cartas e três postais nunca podem ser “cartas fortes”, que era como o Bernardo, no início, lhe queria chamar… há uma carta maior, mas o resto são tudo cartas pequeninas… O Bernardo Sá Nogueira diz sobre estes postais que era “escrita premeditada no pressuposto de publicação”. Isto é um disparate, é a armar em esperto. Quem vê os postais que vêm ali, em fax-simile… então um gajo escreve um postal destes a pensar que vai ser publicado? Eu agora quase não escrevo postais com o objectivo de não serem publicados. Escrevo muito poucos postais e cartas, então, é um caso sério. Aqui já não é o interesse amigo de guardar um papel de um gajo que lhe mandou, aqui é já o interesse meramente mercenário de fazer dinheiro com o papel. No gesto de guardar cartas há uma certa afectividade ou interesse ou coisa que o valha. Um gajo que está numa cadeia, num hospital, numa aldeia, se comunica com alguém, se gosta de comunicar, a carta é um derivativo. Ainda mais nessa altura, no tempo do antigamente, do fascismo, a carta era uma expressão livre, claro que os gajos muitos cautelosos nem cartas nem postais escreviam. Agora eu escrevia imenso… Este livro é uma golpada. É evidente. Por exemplo, a fotografia na capa… é uma maluqueira como outra qualquer… Dá ideia que eu é que sou um exibicionista, que gosta de vir nas capas… é para chamar, para vender mais… Isto faz vender. A fotografia e o nome fazem vender…
Mas os teus outros livros também têm o Luiz Pacheco na capa…
Mas olha que nunca foi por minha vontade… As edições Contraponto, que são as minhas, não têm fotografia na capa. Vem na Estampa, invenção do senhor Vítor Silva Tavares… depois vem com atributos como as calças curtas, os sacos de plástico nas mãos a arrastar-me na rua,
... opá isso são os chamados bonecos, é a imagem de marca. É um bocadinho por desprezo. Porque eles usam bons casacos. É uma atitude normal do burguês, que goza o marginal...
Vai sair na D. Quixote, em breve, um diário inédito, o Diário Remendado...
Aquele diário é uma conversa comigo mesmo, um desabafo... e é um fragmento de um fragmento do meu diário... é uma amostra, um fragmento daquele período, entre 1971 e 1975... deitei muita coisa fora... tirei mais de metade...
Inclusive o relato do 25 de Abril...
Esse corte foi deliberado... eu não gosto daquele texto... era uma resposta aos gajos que faziam artigalhadas mais ou menos inventadas com o título “O meu 25 de Abril”... aquilo era tão presunçoso... não foi só um gajo, ainda foram uns quantos... se tu fores consultar os jornais na altura verificas isso... era uma paródia a esses gajos... Como é que foi o seu 25 de Abril? Opá, os colhões do Padre Inácio... já ninguém liga ao 25 de Abril...
Foste de pijama para o Largo do Carmo...
Mas não foi de propósito... eu estava em casa, sozinho, o Paulo tinha ido para o liceu, estava a rever provas do Pacheco versus Cesariny... de repente chateei-me, não tinha telefonia, não tinha televisão, não tinha nada, chateei-me de rever provas e disse vou ali beber uma cerveja e quando venho de beber a cerveja há o barbeiro que me diz “ó senhor Pacheco, olhe que há revolução em Lisboa”. Então enfiei o sobretudo que me deu o marido da Natália Correia e fui para Lisboa... não foi de propósito que eu fui para o Carmo de sobretudo e pijama...
Impressionante a tua memória, Luis.
É a única m**** que funciona, pá.
Só mais uma pergunta...
Agora não respondo mais nada... estou cansado...c******!... são 80 anos, foda-se... vá, pira-te que eu tenho de mijar e ir comer qualquer coisa...
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