Eu ficava sempre na carteira da frente, junto ao quadro, porque via mal. As janelas da sala davam para o jardim do Matadouro, onde é o Fórum Picoas... Sabes quem é foi meu professor? O Prado Coelho, pai do Jacinto e avô deste Eduardinho, o almôndega peluda... era a alcunha dele... que culpa tenho eu que lhe chamem assim...
O Eduardo Prado Coelho deu-te uma porrada muito grande no Diário de Lisboa, num texto que escreveu sobre Crítica de Circunstância, o primeiro livro do Luiz Pacheco... Esse paneleiro de m**** disse que o livro tinha graça mas que não continha uma única ideia, ou seja, o Luiz Pacheco não tem ideias... Ora se isso é verdade então o problema, a culpa é da família dele... É que eu já aturei 3 gerações de Prados Coelho. O avô no Liceu Camões, por sinal fui o melhor aluno dele, mas pelos vistos não assimilei nenhuma ideia dele. Do que li do Jacinto encontrei algumas ideias mas não me devem ter entrado na pinha. Este, o novinho, tem ideias mas são francesas. O avô dele foi meu professor no 6º ano e à entrada da aula dizia: “recomenda-se o máximo de silêncio”. Não era o gajo, era o indefinido, o Jeová! A turma estava-se cagando para o gajo. Durante um ano, para não se chatear, e para nós não nos chatearmos também, pôs-nos a recitar “A Balada da Neve” do Augusto Gil: “batem leve levemente como quem chama por mim…” Esse rapazola (Eduardo Prado Coelho), esse m****s, era um gajo terrível do partido. Não foi por acaso que o gajo veio de Paris para cá quando o Carrilho se tornou ministro. Está a mexer nos cordelinhos do Carrilho e da Bárbara...
Como foi a tua passagem pela Faculdade de Letras?
Quando acabei o liceu, em 1943, o meu pai disse que não tinha dinheiro para me pôr na Faculdade. Fui então falar com o João de Brito, o professor de latim, que me deixou ficar como aluno fantasma. A professora de português, Celeste Pereira Rodrigues (o Câmara Reys, que era o meu professor, reformou-se no meu último ano do liceu), deu-me explicações no último período, de Latim avançado (Cícero, Tito Lívio) e francês. Tinha 2 aulas por dia, às vezes menos. Nos intervalos ia para a Biblioteca. Li o Gil Vicente todo, em português e castelhano, o Fernão Lopes, o Garcia de Resende e outros. Nesse ano fantasma também dei explicações. Aprendia e ensinava. Foi um ano magnífico. Não me faziam perguntas, o que era óptimo, porque eu era um aluno muito nervoso, gaguejava quando me perguntavam alguma coisa. Nesse ano só registava e ouvia. Depois, como fiquei muito bem classificado no exame de admissão à Faculdade de Letras de Lisboa (Curso de Filologia Românica), não tive de pagar propinas, fiquei isento. A Faculdade foi um grande choque. Havia 10 alunos rapazes para 200 alunas. No liceu era só rapazes. Os professores faltavam muito, eram uns chatos, excepto o Vitorino Nemésio e o Delfim Santos. O Nemésio deu-me 18 valores. Nunca dei graxa ao Nemésio, como o David e o Urbano. Eram uma espécie de pagens dele. Montaram-se nele.
Quando é que começaste colaborar em jornais?
Ainda tu não tinhas nascido, pá. Comecei n’ O Globo, em 1945, com uma coisa sobre os Jogos Florais e o centenário do nascimento do Eça. Fui à redacção falar com o Vasco Vidal e fiquei a trabalhar à borla. Depois levei o Cardoso Pires, que publicou lá um conto, e o Jaime Salazar Sampaio. Eu e o Pires dirigimos um suplemento universitário, Novos Horizontes. Fui aí que publiquei as minhas primeiras coisas. Saiu lá uma entrevista minha ao Mário Dionísio... ora aquela entrevista quem a escreveu foi o Mário Dionísio, a não ser a última pergunta. Telefonei-lhe a dizer que o queria entrevistar. Quando cheguei a casa dele a entrevista já estava toda feita. O que foi uma grande vantagem. Eu não sabia o que ia perguntar ao gajo... Depois, como o Vidal também tinha a Afinidades, levou-me para lá e eu depois levei também o Cardoso Pires, o Mário Dionísio, o Jorge Pelayo, o Joly Braga Santos, o Salazar Sampaio. Aí já comecei a receber, o primeiro pagamento foi 40$00. Também fiz duas traduções, uma delas sobre a Ocupação alemã em França. Tanto O Globo como a Afinidades eram publicações feitas pela resistência francesa, para manter o espírito francês. A Afinidades era uma revista de cultura luso-francesa e tinha como chefe de redacção o Lionel de Roulet, que era cunhado da Simone de Beauvoir, estava casado com a irmã as Simone, a Helene Beauvoir. Uma vez critiquei a Maria Figueiredo, chamei-lhe bas bleu, pretensiosa. Uns dias depois recebo um telefonema do António Maria Pereira pai a chamar-me à ordem. Disse-lhe: “esta conversa não me agrada” e desliguei o telefone. Mais tarde vim a saber que a Maria Figueiredo era amante do António Maria Pereira. A crítica ofendeu-lhe o c******. Foi a primeira reacção que tive ao artigo...
Logo a seguir, juntamente com o Jaime Salazar Sampaio, aparece O Bloco, volume antológico de teatro, poesia e conto...
A literatura em Portugal não existia porque não existia liberdade. Então pensámos fazer uma pequena publicação para dizermos o que quiséssemos... O modelo foi copiado de uma publicação de direita, a Rumos, do Couto Viana, do Bigotte Chorão, etc. N' O Bloco colaboraram o Mário Ruivo, com poemas anti-colonialistas, o Ferro Rodrigues pai, a Rosa Araújo, o Cardoso Pires, o Salazar Sampaio, a Maria Natália, o Daniel de Moraes, que era do PCP e fez a capa, o Francisco Castro Rodrigues, arquitecto, também do PCP, fez um desenho. Meu saiu a História Antiga e Conhecida, que depois o Cesariny adaptou para o teatro ( Um Auto para Jerusalém). Os exemplares foram quase todos apreendidos, nem chegaram a sair da tipografia.
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