1. Formal ou informalmente – que nisto de vida social a gente nunca sabe em definitivo como é que as coisas se apresentam – agradeço-vos o gesto de me terem convidado a estar aqui durante um par de horas a falar da poesia em geral e, particularmente, de alguma que se faz em Portugal e, por vossa desvanecedora vontade, da minha própria poesia.
Sucede então que por suscitação de uma digna Associação espanhola me vejo na circunstância de ser hoje ante vós, de algum modo, o rosto do meu país; o qual, apesar das marginalizações pontuais a que submete os autores que não fazem a vénia a Zeus e a Mamon e de ser frequentemente uma pátria madrasta plena de contradições, me merece o crédito de através de algumas entidades continuar a respeitar a dignidade humana.
Quero agradecer ainda aos convivas que vejo a esta mesa luso-espanhola o acto de se terem deslocado a este local para me ouvirem. E isto porquê? Porque ao escritor, ao artista, é-lhe grato verificar a recta intenção de se ter pela cultura dos dois povos vizinhos um interesse que permite que esta sala se tenha composto apesar de à mesma hora decorrer um palpitante derby entre duas importantes equipas de futebol. Concluo que tal atitude parte dum real interesse pelos mistérios da existência, nomeadamente aqueles que residem na Literatura encarada como algo de luminoso. Por tudo isto proponho-vos que após a intervenção inicial, a leitura dos poemas e o mais que for vindo a condimentá-la – já sem papel – me questionem, mesmo vivamente se assim o entenderem, no sentido de me suscitarem respostas que sejam potencialmente conclusivas de qualquer coisa e reflictam um pouco, como num espelho mágico, este universo simultaneamente belo e inquietante que é o da escrita e o da criação por extenso. Além do mais, sendo a minha poesia, segundo penso, uma tentativa (que também é uma busca) de desconstrução/reconstrução da linguagem e, nessa medida, refractária da facilidade do ponto de vista duma literatura amena e afirmativa, talvez faça sentido ponderar de que maneira ela se apresenta aos olhos de quem lê e, o que simultaneamente me encanta e me espanta um bocado, a procura conhecer e mesmo interpretar. Falo assim porque alguns poetas – parece que não é só comigo – no meu país são tomados e olhados pelo que fazem mas também (ou principalmente) pelo que são civilmente: ajuda um pouco ao “bom nome” ter uma situação, isto junto de gente de letras com pouco chá mas muita sabedoria de manobra e algum desembaraço.
No meu caso isso é, tem sido, razoavelmente marcado e contra mim falo: não sei elogiar os medíocres, institucionais ou particulares, que em Portalegre tentam fazer-se passar por talentarrões ou dirigentes iluminados. Nem pertenço a quaisquer grupos regionalistas vizinhos do Poder (políticos, académicos, futebolísticos, excursionistas, etc.) mas apenas a confrarias do espírito (gastronómico, numismático, xadrezístico…) onde as coisas funcionam por indominável simples cooptação, o que me deixa um pouco inerme e permite todas as atitudes, geralmente desfavoráveis. Ainda por cima, o suplemento (Fanal) de que fui co-coordenador e onde granjeei algum destaque, apesar de ser de boas-contas (ou seja, não se recebia um tostão…) e de não fazer fretes, era uma coisa modesta apesar de séria, como as tradicionais jovens pobres das vilas… Mas adiante!
2. Gostaria de tornar claro, desde já, que não concebo a poesia como instrumento mais ou menos adequado para a instauração de “beleza formal” ou de “bondade socializada”. Na verdade, entendo que a poesia, pelo menos a que faço, é uma aventura no mal, ou seja: uma incursão num mundo fragmentário e desconexo que o poeta busca reformular para que ganhe significado e sentido mediante a realização dos poemas, que a meu ver são entidades que por fim ganharam um padrão coerente. É, digamos, um jogo arriscado nos domínios da realidade, que depende de nós como nós dependemos dela. Se faço poemas é porque não posso deixar de os fazer. Ser poeta não é propriamente uma maldição, mas é sem dúvida uma inevitabilidade que às vezes se agradece ao destino e outras nos causa sofrimento. Se publico é porque, afinal, publicar o que vamos descobrindo constitui de alguma maneira um direito democrático e uma luta contra o aniquilamento, os diversos aniquilamentos que a protérvia societária frequentemente guarda para nós. Mesmo o mais simples, que é dificultar-nos essa publicação. Ultimamente, as “forças vivas” caciquistas utilizam uma nova forma de discriminação regional - que é entregar a editoras da corda a decisão de quem deve ou não deve ser apoiado. É uma forma inegavelmente inteligente e razoavelmente discreta de transformar como por artes mágicas, da noite para o dia, talentos de segunda escolha em autores de qualidade. Na minha cidade essa atitude tem-se aproximado perigosamente do tristemente célebre “tráfico de influencias”.
A despeito de alguma razoável amargura que destas palavras ressalte (como é lamentável, a 30 anos de distancia do 25 de Abril, termos de ocupar-nos destas coisas sórdidas!) faço questão de salientar que as dificuldades a que os autores e homens livres estão por vezes ali sujeitos nunca conseguiram gelar-me por dentro, significativamente, a alegria. Fui sempre uma pessoa de amores, pessoais ou sociais, tanto em relação ao tempo como aos tempos que se evolam inapelavelmente. Nesta conformidade, concluo que provavelmente sou um ingénuo. Se o não fosse talvez não vos falasse assim, simularia conceitos fortes como fazem muitos que conhecemos.(Que conhecemos de vista e de trajectória). Mas às vezes sabe bem dizer-se o que realmente se pensa - que corresponde ao que realmente se passa - como num grande cansaço. Tenham em conta que o poeta, afinal, não é de facto um cavalheiro amável (para citar K.R.Browne) mas alguém que de tanto conviver com certas feras – as da criação, da busca do absoluto, da nódoa sombrio do pecado original – se torna também um pouco fera. E além disso é função dos poetas, se alguma têm, lançarem um olhar atento e interventivo sobre os disparates do mundo, como dizia Chesterton, para melhor situarem as forças contrárias ao Homem, aquelas forças que só visam aniquilar a dignidade de existir só ou em conjunto.
Uma prevenção: se acharem, a dada altura, que estou a prolongar em demasia a sessão não hesitem em fazer-mo saber com energia porque eu, a exemplo do que o mesmo Chesterton disse um dia ao seu cordial inimigo George Bernard Shaw, tenho também o defeito de, à mínima provocação para falar em qualquer parte, arranjar palheta suficiente para, pelo menos, três cartapácios…ou duas horas de conversa. |