As máquinas de uniformizar:
o prestígio da doxa (6)
José Augusto Mourão

(UNL-DCC)

 

Teses
Doxa
Conceitos, preconceitos
O sentido comum
Tradicionalidade
O torpor dogmático
Amarras
Entropia

Coda - Notas

CICLO "A VERDADE EM PROCESSO" - 2004

O torpor dogmático

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No processo da interpretação o destinatário deve poder interpretar correctamente adaptando-as ao contexto e às circunstâncias de enunciação as unidades lexicais veiculadas pelo enunciado: o conhecimento de base da língua e dos códigos utilizados é-lhe necessária mas não suficiente. O destinatário deve possuir um saber enciclopédico mais ou menos vasto e deve poder detectar neste saber os elementos pertinentes para a interpretação das unidades lexicais e sintácticas que compõem o enunciado. A sua enciclopédia deve conter também quadros de interpretação mais globais, estruturas narrativas, cenários elementares, etc., que lhe permitam reconstruir um sentido mais global do conjunto do enunciado ou do conjunto de vários enunciados. Este relacionamento do enunciado com uma porção da enciclopédia é sempre uma conjectura. Em alguns casos, a relação entre enciclopédia e enunciado pode fazer-se de um modo quase automático, graças a hábitos interpretativos consolidados e estereotipados, noutros a correlação exige um esforço de invenção importante. O conteúdo duma palavra apresenta-se sempre como um conjunto de instruções semânticas que permitem ao intérprete operar determinadas inferências pertinentes. Mas a interpretação é um acto cognitivo fundamentalmente falível. No processo da verdade nada é falível porque nada é móvel e interpretável. O dogma é suspeito de imobilidade, tanto para os historiadores como um facto do passado, único, para os teólogos como formulação única da fé.

Não empregamos aqui a palavra “dogma“ no sentido da teoria kantiana, que o condena. Os dogmas, como os entende a crítica, seriam teses filosóficas que ultrapassam mais ou menos a experiência e que são aceites sem controlo crítico. Mas para Kant não há diferença entre “dogma” e “tese racionalista”.

A teologia produziu um tipo de conhecimento particular: os dogmas. E mais do que isso: o dogma produz uma atitude metodológica que nem a filosofia nem a teologia exploram devidamente. Paulo e Agostinho distinguem o saber – a sabedoria deste mundo – da verdadeira sabedoria da fé. A fé não se opõe, como a aceitação da doxa grega, ao saber verdadeiro da episteme , mas ambas, doxa e episteme , distinguem-se da fé cristã enquanto pistis . Lucian Blaga (30) vê nos dogmas mais do que uma necessidade de síntese: a sede do mistério, a tendência para defender o mistério metafísico contra qualquer tentativa de racionalização do espírito humano. O seu ponto de vista sobre o dogma é apenas intelectual e metafísico, independente das suas conotações religiosas. É “dogma” qualquer fórmula intelectual em desacordo com o entendimento e que obriga a ultrapassar a lógica, não a “fórmula de fé” dos teólogos.

Filão de Alexandria tem um papel importante no desenvolvimento do método dogmático contra Heraclito e os estóicos. Heraclito dizia a propósito da substância primordial que se transforma parcialmente em mundo. Filão, educado no monoteísmo judaico, afirma que a substância originária produz existências secundárias sem sofrer o menor empobrecimento. Mas tem de justificar a emanação das existências secundárias (o Logos emana da Divindade). Eis que o intelecto tem de aceitar uma fórmula que, para lá das suas relações com a realidade é antinómica e que não pode ser concebida até ao fim, nem no mundo das abstracções lógicas nem no do concreto. Blaga situa aí o momento de nascimento do dogma, termo que se vai desenvolver ao longo de todo um “éon” (época). A ideia de processão do Espírito Santo a partir de Deus Pai sem que este sofra qualquer empobrecimento é uma ideia muito afastada da concepção filosófica da emanação.

A canonicidade pode apreender-se como a depositária e guardiã dum universo de crenças bem como dum projecto normativo que legifera sobre o mundo das práticas (31). O princípio canónico está ligado à constituição dogmática das formações sociais, estando por isso relacionado com a instauração do sentido próprio a qualquer dinâmica de instituição: Igreja, Estado, colectividades, instituições de crença que regem a dinâmica dos povos e dos grupos. Uma instituição discursiva define-se pelo conjunto da rede de produção, circulação, repartição e difusão (e recepção) dos textos. No caso do discurso teológico, é claro que é uma comunidade que assegura a sua produção. Aqui entram as figuras tutelares (os fundadores), os lugares tenentes (os representantes patenteados, os membros do clero em primeiro lugar), os adeptos (a população dos fiéis, instruídos pela doxa veiculada pela economia teológica em questão). Profetas, padres, doutores (escribas, exegetas, tradutores, ensinantes, etc). Deve notar-se que “a função de codificação é o quadro natural no interior do qual a doxa instituída ao mesmo tempo que a axiologia defendida se apreende anteriormente a qualquer operação de vulgarização; define neste sentido a processo de doxogénese ou de captação institucional da doxa” (32). Em resumo, a ortopraxia entende-se assim como regra de observância da doxa canonizada. A função de diferenciação é por excelência o lugar de reconhecimento da doxa (na modalidade da ortodoxia ) e correlativamente lugar de definição da heterodoxia. O processo de diferenciação do espaço canónico fixa ao mesmo tempo um patamar de tolerância (ou de aceitabilidade) da heteronomia (33).

Quem está num campo, seja defensor da ortodoxia ou da heterodoxia, partilha da adesão tácita à mesma doxa que torna possível a sua concorrência e lhe impõe um limite. O herético continua a ser um crente que prega o regresso a formas de fé mais puras. O dogma exprime as preocupações profundas da época. A Igreja reconhece-se na tendência para dogmatizar e para anular tentativas de organização mítica e racionalista dos dados teológicos e cristológicos. Contra Marcião e Ario (Deus não foi sempre o Pai, o Logos foi criado no tempo, Jesus incarna este ser criado por Deus). Marcião sustenta que há dois Deuses, um do A.T. (o Testamento da carne), o Demiurgo, o autor do mundo, o outro, Jesus Cristo, incarnação do “Deus desconhecido”, o Deus do N.T., do Espírito. Eis uma doutrina não dogmática e uma outra, um ensaio de racionalização da doutrina cristã. Niceia condenará esta “revolução”.

 

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