As máquinas de uniformizar:
o prestígio da doxa (2)
José Augusto Mourão

(UNL-DCC)

 

Teses
Doxa
Conceitos, preconceitos
O sentido comum
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O torpor dogmático
Amarras
Entropia

Coda - Notas

 

CICLO "A VERDADE EM PROCESSO" - 2004

Doxa

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Há algumas noções que permitem uma melhor compreensão do que é a doxa , por exemplo as noções de forma simbólica, de forma de vida ou de estereótipo. Mas comecemos pela própria noção de doxa sobre que pesa uma suspeita antiga. Fala-se de doxa em marketing, na estética bauhaus, na teologia (dogma), na economia (10), na sociologia, na semiótica, nos “media” (11). Fala-se de “doxa cientista” (12). Toth, no Fedro, faz doxósofos. A poesia e a retórica aparecem no Górgias como “ilusões da opinião”. Raul Rolo mimoseia os nominalistas com o ferrete de “teologastros”. A doxa é aquilo que se opõe à verdade, é a opinião, o admitido, o aparente, a glória.

Os conceitos viajam (13). O conceito de verdade também. A noção de verdade aparece nos textos mais antigos - em relação com práticas de sabedoria de adivinhos, magos e poetas com um estatuto alegórico. Alêtheia vem ligada a mnemosune – memória entendida como poder de visão que dá acesso ao passado, ao presente e ao futuro. Esta visão é a da “Planície de Alêtheia onde se sentam os Bem-aventurados, deuses e heróis (14). A palavra poética é eficaz, produz o que diz. Esta palavra é uma realidade física, uma parte das forças naturais. Essa é a palavra da alêtheia , potência ao mesmo tempo poética, adivinhatória e judiciária. Ora esta configuração desfaz-se e transforma-se com a emergência da cidade. A polis institui a igualdade dos guerreiros pela designação dum lugar neutro no centro do seu círculo – o meson - em que é depositado o troféu que se torna comum antes de ser repartido à sorte; centro em que cada um se deve dirigir aos outros. Assim se produz a emergência do espaço público, que é também espaço de debate. Assim a palavra mágica e eficaz dá lugar à palavra dialogada e contestada; à ordália sucedem o inquérito e a necessidade da prova; ao discurso de autoridade substitui-se a troca de argumentos. Assim a palavra perde o seu estatuto de substância plena. Separa-se dos seus efeitos, autonomiza-se como forma e instrumento. Doravante, à alêtheia proferida por uma boca consagrada opõe-se a doxa , que é antes de mais o saber apropriado a uma situação dada e acessível a cada um. O primeiro poeta que testemunha desta mutação, deste “processo de laicização”, como lhe chama Detienne, é Simónidas de Céos. É o primeiro que rompe com a poesia encantatória e ritual, portanto com a concepção performativa da palavra. Simónides acentua o carácter de instrumento e de forma autónoma da palavra, postulando a cisão entre o dizer e o dito, o mundo e a sua representação, a imagem e o real. Destitui deste modo a Alêtheia em favor da doxa. À antiga Mnemósina – a deusa Memória que sustenta a inspiração e a visão adivinhatória – substitui a mnemotécnica. Até se lhe atribui a invenção do alfabeto (15). O velho sophos torna-se profissional da linguagem. Começará aqui um “preço da verdade”?

Os presocráticos escrevem tanto sobre a natureza como sobre a verdade. Parménides intitula o seu poema “Sobre a natureza ou sobre o ente”. Górgias escreve “Sobre o não-ente ou sobre a natureza”: nada é. Protágoras diz que não há diferença entre a verdade e as opiniões. Para Antífão nós somos antes de mais seres lógico-políticos e só depois animais físicos. A lei é convencional, uma questão de opinião, dia doxan; podemos subtrair-nos a ela ; a partir dela podemos negociar; a natureza, necessária, é uma questão de verdade, di´alêtheian; a ela não se escapa (16).

Assim se instala o triunfo do eikos (provável, verosímil) sobre a alêtheia. A doxa situa-se entre o público, domínio da lei e da opinião e o privado em que legisla a natureza, i.é., a “verdade”.

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