As máquinas de uniformizar:
o prestígio da doxa (3)
José Augusto Mourão

(UNL-DCC)

 

Teses
Doxa
Conceitos, preconceitos
O sentido comum
Tradicionalidade
O torpor dogmático
Amarras
Entropia

Coda - Notas

 

CICLO "A VERDADE EM PROCESSO" - 2004

Conceitos, preconceitos

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Forma de vida é um termo associado a Wittgenstein: é o que dois grupos têm de partilhar para que as suas linguagens possam ser mutuamente compreensíveis. É preciso lembrar que o senso comum é prático e pragmático: reproduz-se colado às trajectórias e às experiências da vida de um dado grupo social e nessa correspondência se afirma fiável e secularizante. “A ciência significa para nós uma forma de vida” ou mais propriamente, ela impôs-se como a única forma de vida que torna possíveis as outras ao dar uma finalidade comum à experiência de todos os homens (17), dizia Peirce. O uso dos signos predetermina sempre já aquilo que se pode conhecer condicionando aquilo que se pode ver, fazer e desejar. As regras que balizam o uso dos signos na vida corrente correlatam os juízos e as crenças, fixadas sob formas de certezas, aos factos gerais de acção humana chamados “hábitos”.

Forma simbólica. Ao contrário da configuração da épistémè que designa grandes períodos do pensamento científico e que envolve conceitos como representação, analogia, classificação, troca, uma forma simbólica (Cassirer, Panofsky) designa um quadro de representações organizadas de tal modo que nada podemos ver ou dizer do mundo fora da sua forma constrangedora. Para Cassirer, a “Filosofia das formas simbólicas” deve ser vista como os “Prolegómenos duma futura filosofia da cultura” (1938, cf. WWS, p. 229). Esta forma é um ecrã que serve para construir a nossa visão do mundo, por isso nem nos apercebemos que é um quadro ou uma referência. É um quadro de tal modo interiorizado nos nossos procedimentos de pensamento que se confunde com os conteúdos que fornece. É-nos impossível pensar fora desta forma ou contra ela porque ela é consubstancial às nossas pesquisas, à nossa apreensão daquilo a que chamamos a “realidade” (18). Esta forma-quadro estende-se a todas as actividades humanas de um determinado período, desde a percepção aos costumes e aos comportamentos, mudando com os períodos históricos, com as configurações do saberes e de práticas. A noção de tautismo proposta por L. Sfez é um neologismo formado por contracção de tautologia (o “eu repito logo provo” que reina nos media), de autismo (o sistema de comunicação torna-me surdo-mudo, isolado dos outros, quase autístico), neologismo que evoca uma visão totalizante, senão totalitária (a realidade da cultura ecrânica, sempre mediada, mas que se exibe como realidade primeira). Esta noção designa fundamentalmente aquilo por que uma nova realidade nos advém, sem distância entre o sujeito e o objecto, uma grelha que permite interrogar campos, aparentemente heteróclitos, mas feridos pela mesma doença tautística. O tautismo torna-se a forma da forma simbólica da comunicação. A sua difusão estende-se por várias frentes: produção, distribuição, formação permanente, educação, publicidade, relações públicas, marketing, televisão, rádio, produção dos editores de romances e ensaios.

O conceito de cultura não está longe do conceito explanado antes. Há dois sentidos etimológicos para esta palavra: habitar e cultivar (19). A cultura é, essencialmente, um esforço de organização do tempo, isto é a geração temporal das significações, a tentativa de criar por um lado esboços de sentido duráveis e de lhes conferir por outro lado um sentido no tempo. Trata-se de representação, de presença do espírito. As ideias religiosas ou míticas ao lado de métodos práticos de gestão da interacção social são constantes culturais de qualquer sociedade. Assim podemos considerar as culturas como formas de orientação humana manifestas numa dada época. O homem habita literalmente o lugar do Espelho, o Outro absoluto; é ele que o produz e o cultiva porque o discurso social seria impensável sem ele. O mito é uma condição universal da vida: por toda a parte a representação dos fundamentos deve ser habitada e cultivada. Para Husserl, os limites duma humanidade confundem-se com os da unidade duma cultura. Por cultura Husserl entende a incarnação o cometimento das actividades contínuas de homens que vivem em comunidade, cometimentos cuja existência intelectual durável reside na unidade da consciência colectiva e da sua tradição preservadora (cf. Hua II, p. 21 e seguintes). No seu artigo “A filosofia como ciência rigorosa” de 1910/11, em que constata uma crise da civilização (isto é da cultura). Para ele esta crise assenta na não realização desta ideia de ciência rigorosa que está presente na “obra eterna da humanidade” (cf. Hua, p. 4). Esta concepção da cultura é a mesma partilhada por Cassirer. O fundamento e o conteúdo de qualquer cultura são os cometimentos realizados pela pessoa que se manifestam de maneira concreta e que, para Husserl são o fruto da intencionalidade viva, enquanto que para Cassirer nascem da energia formadora da formação simbólica.

Se a cultura é a mais poderosa máquina de uniformizar, ela é desde logo o principal inimigo a abater (Baudrillard). A antropologia kantiana vê na cultura, entre a exterioridade natural e a autonomia moral, o processo duma emergência e o progresso duma educação: a liberdade aqui aparece distanciando-se da vida que a condiciona e que ela transforma dando-lhe figura de instituição. A “cultura” compreende-se pela sua oposição à simplicidade natural do ser-dado: gesto e palavra, técnica e simbólica marcam conjuntamente a entrada num processo de alteração e de transformação sem retorno. O animal cultural que é o homem compromete assim a realidade numa aventura que nada deixa fora de si; nem a necessidade (objectiva) nem a liberdade (subjectiva), nem as condições (materiais) nem o sentido (espiritual) escapam a esta criação instituinte. Se a Razão pode ser pura, uma cultura não é o nunca, porque é o produto da sua história (F. Rastier, 2001: 281): forma-se, evolui e desaparece nas trocas e nos conflitos com as outras.

Estereótipo = stereos ( sólido) e tupos (tipo, carácter, impressão), é um termo de imprensa. O seu emprego em sentido figurado para designar uma ideia repetitiva é atribuído a Balzac em 1835 quando deplora os lugares comuns dos editoriais da imprensa parisiense. De facto, no início do século XIX “estereótipo” tem apenas o valor de prancha com caracteres não móveis que servia para repetir a impressão. As mudanças sociais e artísticas levaram à condenação dos clichés, dos lugares comuns, dos chavões, das ideias feitas, das expressões estafadas, e depois estereótipo ligou-se, por metáfora, ao valor de frases estereotipadas , esse valor de “repetição”, ganhando assim estereótipo uma conotação negativa (20). O termo entra no campo das ciências sociais em 1922 pela mão de Walter Lippman que o definiu como « pictures in our heads» e foi usado para designar o valor prototípico que os americanos atribuíam ao judeu, ao negro, ao sul-americano, etc. A sociologia retoma o termo para designar as representações que os grupos sociais se faziam relativamente a outros grupos. A psicologia emprega o termo para designar as representações colectivas congeladas que condicionam a nossa percepção do mundo, as rotinas mentais, os “scripts” dos diversos “cenários” do dia-a-dia (21). O estereótipo para Barthes “c'est le mot répété, hors de toute magie, de tout enthousiasme, comme s'il était naturel, comme si par miracle ce mot qui revient était à chaque fois adéquat pour des raisons différentes» (Barthes, 1973, p. 63). Como se vê, o conceito cobre hoje a ideia de rotina mental, de preconceito, de atitude, de juízo, de protótipo.

Pode-se adoptar uma definição de estereótipo que o considera muito simplesmente como o conjunto das características que se associam a uma determinada categoria de objectos, até definições mais específicas que delimitam o campo a grupos sociais e a estereótipos negativos, embora incluam elementos como o número de quem o partilha, a homogeneidade que se aprecia no grupo-objecto e a relativa rigidez e resistência à mudança do estereótipo (22). O mecanismo em que se baseia o estereótipo e o preconceito é praticamente o mesmo.

Os significados lexicais dependem do meio social e físico onde ganham corpo, são próprios de uma comunidade linguística. Importa saber que nas operações discursivas há contágios de valores entre palavras e contágios de estereótipos com outros estereótipos (23). Haveria que distinguir os provérbios e as expressões fixas, as chamadas fraseologias que é aí onde os estereótipos mais se manifestam: “branqueamento de dinheiro”, “pobrete mas alegrete”, etc. Mário Vilela, que estamos a seguir, refere o jornal Folha de São Paulo e uma reportagem que tem por título “os estereótipos” entre os povos do Mercosul. Aí se vê como os estereótipos acompanham os cidadãos conforme a sua origem. Nas ruas de Buenos Aires, uma expressão difundida para se referir aos brasileiros é “macacos”. Já os paraguaios usam o termo “rapai”, equivalente a “rapaz”. Os paraguaios quando emigram para a Argentina trabalha como “camelo” (vendedores ambulantes).

Nos “media” portugueses estereótipo vem associado a outros termos como cliché e chavão, provavelmente também cunha , esquema, máquina : “Uma cultura assente na “cunha”, no “esquema”, no “gancho”, nos pequenos poderes difusos pela “máquina” ( Público , 28.7.99). Há as expressões como “eterno feminino”, “terra-mãe”, outras expressões como “o que está a dar”, “curtir”, “betinho”. Há enunciados marcadores de rivalidades locais, sentenças, fórmulas tidas como marcos estereotípicos do género de:

O que é bom é para se ver
Os olhos também comem, etc.

 

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