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BOLETIM DO NCH
Nº 14, 2005

Açores e Madeira vistos por Marcelo Caetano em 1938
CARLOS ENES

 

Sumário

Summary

Introdução

Visão de Marcelo Caetano

Bibliografia

ANEXOS

Documento 1:
CARTA DE MARCELLO CAETANO AO MINISTRO DO INTERIOR

Documento 2

I - Distrito de Ponta Delgada

II - Distrito de Angra do Heroísmo

III - Distrito da Horta

IV - Distrito do Funchal

V - Considerações finais

Nota dos trabalhos realizados pela Junta Geral do distrito de Ponta Delgada...

IV - Distrito do Funchal

 

Regime administrativo – O regime autonómico só foi aplicado ao distrito do Funchal por decreto de 8 de Agosto de 1901. Debalde procurei elucidar-me sôbre a história da autonomia madeirense; pouco consegui apurar, e êsse pouco reflectia uma impressão de desgovêrno e incúria, de que se salva a gerência do Visconde da Ribeira Brava.

O escol madeirense só agora começa a revelar alguns dirigentes dignos dêsse nome. Até aqui a política local era de puro estilo antigo, feita para consolidar influências à custa dos favores pessoais. Não se orientava o povo, não se procurava educar essa massa inculta e rude, não se remava contra a maré das opiniões falsas e dos juízos erróneos; os caciques deixavam-se levar na torrente e arvoravam-se em procuradores de todos os descontentamentos junto do Poder Central.

A administração distrital na Madeira começa agora a seguir por outro caminho. Há cinco ou seis homens (não muito mais) de espírito novo, com novos processos. Mas falta gente, falta quem coopere nos municípios, faltam bons chefes de serviços, faltam bons funcionários, o clima é amolecedor, a vida no Funchal é aliciadora. O turismo impele para uma existência artificial, e por tudo isto não se pode ainda olhar com confiança inteira o futuro do distrito autónomo.

Não quero, todavia, condenar o sistema de administração, porque observei também muitas vezes nas ilhas que os serviços não descentralizados estão longe, em geral, de ser melhores que os outros.

Situação económica – Não m e alongarei nesse ponto, porque as condições económicas da Madeira são de so bejo conhecidas do Govêrno. Observarei apenas que me parece por fazer, e bem digna de ser encetada na Madeira, uma obra de valorização do seu pobre e néscio povo. A maior parte dos males do distrito vem dessa inferioridade qualitativa, em desacôrdo com o ritmo de vida que a actividade comercial e industrial e o turismo imprimem à ilha. Impunha-se que os serviços sanitários e os serviços agronómicos e pecuários fizessem verdadeiras missões, primeiro de estudo, depois de ensino e persuasão. Torna-se necessário que, além das obras públicas, se cuide de espalhar pela ilha dispensários e centros de saúde (fora do Funchal há um único hospital e êsse com três camas), creches, postos de ensino prático agrícola, postos zootécnicos. Até aqui as élites (incluindo os funcionários técnicos e clero) têm pensado mais em si e nos seus interêsses do que nas 250:000 almas que lhes estão confiadas.

Devo consagrar uma palavra de louvor à acção dos organismos corporativos e de coordenação económica: Grémio de Exportadores de Bordados, Grémio de Exportadores de Frutas, Junta Nacional de Frutas e, em especial, a Junta dos Lacticínios, que está a trabalhar excelentemente, sob a orientação inteligente d o agrónomo Pedro Baptista, que tive ocasião de admirar.

Situação financeira – Presentemente as receitas distritais cobrem as despesas, mas os encargos da dívida atingem 1:320 contos anuais num orçamento de 13:000 contos – exactamente 10 por cento.

Há diversas obras públicas de primeira importância que a Junta não pode fazer pelas fôrças do seu orçamento. Recentemente o Estado resolveu comparticipar com a Junta na obra de conclusão da rêde de viação e empedramento das estradas, mas para que a Junta pudesse concorrer com a sua parte nos primeiros anos houve que conceder-lhe um empréstimo. Depois de decorridos êsses primeiros anos naturalmente terá de se lhe fazer ... outro empréstimo, a menos que se abram perspectivas novas à s suas finanças, tirando-lhe parte dos encargos com a polícia, conforme adiante preconizo.

Em 1937 gastou a Junta em construções e obras novas 1:186 contos, mas nesta quantia estão incluídas meras operações de tesouraria, como sejam a restituição das percentagens retidas para garantia de empreitadas e as importâncias das comparticipações do Estado. Se deduzirmos estas quantias, que somam 317 contos, temos que o dispêndio em obras novas pròpriamente do distrito foi de 869 contos.

Em obras de conservação e aproveitamento gastou 892 contos, o que totaliza para obras públicas 1:761 contos, ou seja apenas 13 por cento do total da despesa, muito menos que no distrito de Ponta Delgada, que tem um orçamento aproximadamente de metade do do Funchal.

O grande dispêndio faz-se com pessoal: as remunerações certas e acidentais somaram 5:360 contos, números redondos, ou seja 41 por cento da despesa total.

Deve notar-se que, realmente, a extensão e densidade populacional do distrito exigem muito mais pessoal que nos Açôres e que a recente reforma dos vencimentos do funcionalismo público agravou a despesa.

Depois, o custo da vida e a representação no Funchal obrigam a pagar melhor que noutros distritos, e por isso, emquanto propomos nos distritos açoreanos para os funcionários técnicos o vencimento-base de 3. a classe, aqui somos forçados a propor o de 2. a classe.

Agricultura e pecuária – É indispensável estudar metodicamente as condições agrícolas, silvícolas e pecuárias da Madeira. Para isso não se pode contar com os técnicos locais: a) porque a multiplicidade das obrigações burocráticas o s impede dêsse trabalho; b) porque é sabido que raramente as pessoas em contacto permanente com os problemas têm dêles a necessária visão de conjunto.

Por isso parece-me que deve prosseguir-se na orientação de enviar missões especiais de técnicos às ilhas para estudo de problemas concretos, e seria para desejar a instituïção de inspecções regulares aos serviços técnicos distritais.

Nesta ordem de ideas, desaconselhei a Junta a que persistisse no propósito de criar os lugares de silvicultor e arquitecto, antes devendo confiar o expediente dêsses serviços a funcionários menos categorizados, chamando para os estudos e orientação geral técnicos de fora, por contrato passageiro.

Proponho, quanto aos serviços agrícolas, a extinção da comissão de vinicultura, hoje reduzida a fazer estatística., a integração das suas funções na delegação da Inspecção Geral das Indústrias e Comércio Agrícolas. Esta delegação actualmente é colegial; mas de facto é o agrónomo, como secretário, quem tudo faz. Acho preferível que passe a ser singular, isto é, representada por um delegado apenas.

Não há na Madeira uma estação ou simples pôsto zootécnico, falta que me parece importante.

A Junta Geral tomou uma iniciativa interessante: a de constituir um Conselho Técnico de Agricultura da Madeira, organismo de coordenação com carácter informativo e consultivo, do qual fazem parte o director da estação agrária, o intendente de pecuária, o regente florestal, o presidente da Junta dos Lacticínios e o delegado da Junta Nacional de Frutas. Este Conselho está a trabalhar e parece que satisfatòriamente.

Obras públicas – A Direcção das Obras Públicas da Madeira está na perspectiva de durante treze anos se consagrar exclusivamente a estradas e edifícios, a fim de cumprir o disposto no decreto lei n. o 28:592.

Por isso propomos que os serviços industriais e eléctricos (que aliás têm muito desenvolvimento neste distrito) sejam dela desanexados, para, juntamente com os de viação, formarem uma nova Direcção. Notar-se-á que presentemente já de facto assim sucede, pois que o engenheiro chefe da secção dos serviço s industriais e eléctricos é também o chefe interino da circunscrição de viação.

Quanto aos serviços hidráulicos, têm, como se sabe, importância capital no distrito: está-lhes entregue a administração das levadas do Estado e a assistência técnica às comissões de heréus, que bem carecidos dela são.

A Junta Geral desejaria que estes serviços também fôssem entregues a uma entidade especializada, Junta ou Direcção da Hidráulica Agrícola da Madeira.

Parece-me porém que o mesmo objectivo se pode conseguir com a simples criação de uma secção de hidráulica na Direcção das Obras Públicas, sem necessidade de mais chefes de serviço e mais pessoal de carteira. Depois de iniciada com intensidade essa assistência técnica se verá a amplitude a dar-lhe nos quadros dos serviços distritais.

Saúde pública – Embora o pôrto do Funchal tenha movimento incomparável ao dos outros portos insulares, parece-me que lhe convém a mesma organização proposta para os Açôres, apenas com a criação de um lugar de inspector de saúde adjunto, em que será provido o actual guarda-mor.

Note-se que ao presente há no Funchal um inspector de sanidade marítima (vago o lugar por aposentação) e um guarda-mor, além do inspector de sanidade terrestre. É gente de mais.

Os serviços de sanidade marítima dispõem de um magnífico lazareto e pôsto de desinfecção, que tiveram sua utilidade, mas que hoje representam uma impressionante imobilização de capital e de ... pessoal.

O lazareto é aproveitado, de há vinte anos para cá, como prisão política, e nessa função consumiu grande parte do seu material hospitalar. E todavia o único hospital madeirense em actividade está pletórico, e recolhe doentes com moléstias infecciosas, sobretudo tifosos, que deveriam ser tratados num hospital de isolamento. Deve pois o lazareto ser, sem demora, aplicado a êsse fim.

Em parte do grupo de edifícios destinados a lavandaria, pôsto de desinfecção, depósitos e armazéns (são uns cinco, além do lazareto) estão hoje instalados o Asilo de Mendicidade, criado e sustentado pela polícia, e um asilo de rapazes dos padres salesianos (?); tudo isto por cedência precária e a título provisório. Impõe-se que seja resolvido de (fi )nitivamente e com critério o destino a dar a êste conjunt o de edifícios. O presidente da Junta pretende fazer reverter parte dêles à sua função sanitária, pondo a funcionar o indispensável pôsto de desinfecção pública, com lavandaria e balneários anexos, e, que se me afigura não só digno de aprovação como de urgente realização.

Os serviços sanitários do Funchal chegaram a ser apreciáveis no tempo da luta antiepidémica; hoje existem pouco mais que no papel.

E todavia a raça laboriosa e resistente da Madeira é constantemente desgastada pela doença, pela miséria, pela impropriedade da habitação, pelo alcool, pela sífilis, pela tuberculose ... O espectáculo da Casa de Saúde do Trapiche, onde os irmãos de S. João de Deus cuidam dos loucos do sexo masculino, é, sob êste aspecto, elucidativo; as formas de loucura são muito mais graves e variadas que nos Açôres, a percentagem de loucos bastante maior, e não estão lá todos. Grassa, por virtude do uso da água inquinada das levadas, a febre tifóide; em algumas regiões existe o ancilostoma, por falta de latrinas, e toda uma povoação e flagelada pelo sarcoma ocular.

Todavia, para as duas ilhas, da Madeira e Pôrto Santo, há um hospital único – o da Misericórdia do Funchal, hoje no edifício dos Marmeleiros. Não há, fora do Funchal, dispensários ou centros de saúde ou postos de cirurgia de urgência e de puericultura nem assistência hospitalar das Misericórdias (salvo num concelho, mas deficientíssima); e de Pôrto Santo ao Funchal são cinco horas de mar mexido, e Pôrto Moniz e Santana não têm estradas que os liguem à sede do distrito!

Urge, pois, que os serviços de saúde comecem a atentar na assistência sanitária rural, tanto mais que o hospital do Funchal não poderá, dentro em pouco, albergar mais doentes nem sustentá-los. Para êsse efeito proponho, de acôrdo com o inspector de saúde, a criação de visitadoras sanitárias, hoje elementos indispensáveis em toda a acção educativa do campo da higiene e profilaxia.

Assistência – Já acima falei da Casa de Saúde do Trapiche, completada por outra para mulheres, a cargo também de uma ordem religiosa. Com hospitalização a alienados gastou a Junta, em 1937, 840 contos, verba que vai em aumento e que representa 7 por cento da despesa total!

Mantém ainda a Junta o Asilo dos Velhinhos, para os dois sexos, servido por irmãs da Ordem Funchalense das Hospitaleiras Portuguesas e que fica realmente barato – 156 contos anuais; e distribue uma sopa dos pobres, onde gastou, em 1937, 260 contos.

Em subsídios a casas de caridade e à assistência privada distribuiu no mesmo ano 286 contos, mas ainda há a juntar a esta verba algumas outras escrituradas no capítulo de «Subsídios» e não no da «Assistência» e que devem somar uns 100 contos.

Aqui no Funchal, como nos Açôres (com excepção de Angra), a Junta Geral é a grande contribuinte da assistência privada, como se vê.

Só na Horta, porém, encontrei um plano de coordenação da assistência. Nos outros distritos autónomos nota-se grande dispersão de esforços, particularismo, falta de colaboração, sobretudo sensível no Funchal, onde talvez não fôsse difícil disciplinar um pouco a beneficência. E há lugar também a preguntar se não seria mais bem empregado o dinheiro na obra de assistência sanitária que preconizo.

Polícia – O problema da polícia na Madeira é, como acima disse, particularmente melindroso e põe-se assim: considerável taxa de criminalidade, povo pouco educado e de tendências rebeldes, à mercê de agitadores, pôrto muito movimentado, muita freqüência de estrangeiros, necessidade de fiscalização da viação e do turismo e de polícia rural.

A actual organização, indiferenciada, da polícia distrital não pode satisfazer de modo nenhum. No distrito do Funchal é absolutamente necessário, a meu ver: separar a polícia administrativa e de segurança pública das restantes; dar autonomia a uma secção de investigação criminal, com director e agentes próprios; criar uma delegação especial da polícia de vigilância e defesa social, em que se integre a actual delegação dos serviços de emigração; organizar a polícia rural, sob a forma de postos municipais com comando central próprio, devendo o comandante rondar constantemente esses postos.

A Junta Geral não pode suportar êste desenvolvimento de serviços com o inevitável aumento de efectivos e seu armamento e apetrechamento. Por outro lado precisa de dispor de verbas para construção do novo liceu, funcionamento do Hospital de isolamento e comparticipações com o Estado.

Podia, pois, fazer-se uma divisão de encargos: ficariam para a Junta a polícia de investigação criminal e a polícia rural, ambas de interêsse local e carácter cívico; passariam para o Estado a polícia de segurança (incluindo a administrativa) e a de vigilância e defesa social (incluindo a internacional), ambas de interêsse geral.

Conclusões:

1. o O distrito do Funchal suporta, em tese, a autonomia, mas a sua grande carência é de escol dirigente;

2. o O problema mais vivo da Madeira é o da valorização do povo e do seu trabalho;

3. o Há ainda sectores da administração, como a saúde e a assistência, em que há a fazer uma remodelação profunda;

4. o Parte dos encargos com a polícia devem reverter para o Estado.