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BOLETIM DO NCH
Nº 14, 2005

Açores e Madeira vistos por Marcelo Caetano em 1938
CARLOS ENES

 

Sumário

Summary

Introdução

Visão de Marcelo Caetano

Bibliografia

ANEXOS

Documento 1:
CARTA DE MARCELLO CAETANO AO MINISTRO DO INTERIOR

Documento 2

I - Distrito de Ponta Delgada

II - Distrito de Angra do Heroísmo

III - Distrito da Horta

IV - Distrito do Funchal

V - Considerações finais

Nota dos trabalhos realizados pela Junta Geral do distrito de Ponta Delgada...

II - Distrito de Angra do Heroísmo

 

Regime administrativo – Publicado em 1895 o decreto que criou o regime de autonomia , só três anos passados, em 6 de Outubro de 1898, êle foi aplicado no distrito de Angra. Não havia grande entusiasmo da parte dos angrenses, e ainda hoje se não sente no distrito aquele arraigado amor à descentralização que há nas camadas cultas de S. Miguel. Para mais, o partido que estava no poder quando em 1898 veio a autonomia para Angra não era o mesmo que tinha provocado o pedido de aplicação, e os funcionários nomeados de novo pertenceram todos ao partido que à data da campanha de autonomia se achava na oposição ...

Situação económica – O distrito compõe-se de três pequenas ilhas: Terceira, S. Jorge e Graciosa, separadas umas das outras por algumas horas de mar.

Essas três ilhas são três economias distintas. A ilha Terceira produz o seu pão, tem abundante gado, exporta carne e lacticínios (manteiga e queijo), produz algum vinho. Mas não tem indústria, pouco comércio, e é servida apenas pelos navios da Emprêsa Insulana (dois por mês) e por uns iates de cabotagem.

A ilha de S. Jorge vive, pode dizer-se, de duas fontes de riqueza (alem da agricultura): os lacticínios e a pesca da baleia. As suas relações económicas estreitam-se mais com a Horta que lhe fica mais próxima, do que com Angra.

A ilha Graciosa é a única onde não existe gado, e não produz, portanto, lacticínios. Toda ela é horta e vinhedo.

A estas três economias correspondem três regimes fiscais, três pautas de impostos indirectos, três proteccionismos dentro de um só distrito! A oposição é, sobretudo, marcante no que respeita ao vinho. O mercado consumidor natural da Graciosa é a Terceira; mas esta ilha também já tem o seu vinho, e defende-se do que vem de fora. O vinho da Graciosa presta-se para queimar, dá boa aguardente; simplesmente os capitalistas de Angra estão interessados nas fábricas de alcool de batata doce de S. Miguel, e, como o alcool simples paga de direitos e impostos tanto como a aguardente, importam-no, para a Terceira, de S. Miguel e desdobram-no com água, obtendo assim uma espécie de aguardente inferior, mais barata do que a da Graciosa.

É um problema muito melindroso o do sistema fiscal dos municípios nas ilhas. Por um lado, porque dos impostos cobrados nas alfândegas tiram as câmaras a principal receita, aboli-los ou proïbir a cobrança no acto do despacho é arruinar todos os municípios insulares, não só porque a incidência sôbre a venda para consumo (como no continente) é muito menos rendosa, como porque as obrigaria a um complicado aparelho de fiscalização e cobrança, vexatório e caro, absorvente da maior parte dêsse rendimento, já de si deminuído.

O melindre do aspecto fiscal agrava-se ao encarar o aspecto económico. Não há dúvida de que a maior parte das ilhas tem as suas economias diferenciadas em relação às outras. A natureza insular dos territórios empresta-lhes o carácter de países fiscais autónomos. Compreende-se que, cultivando os terceirenses o seu vinho, procurem consumi-lo de preferência ao vinho de fora – vindo de outras ilhas ou do continente. Mas é chocante a existência de barreiras fiscais, como estas, entre ilhas do mesmo distrito. Acresce ainda que no exemplo que demos de alcool e da aguardente, a pauta é o instrumento de exploração ao serviço de meia dúzia de capitalistas terceirenses, em prejuízo do pequeno vinicultor da Graciosa.

O traço comum das economias da Terceira e de S. Jorge é a indústria dos lacticínios. Não é difícil prever, porém, uma crise grave e próxima nesta riqueza. Ambas as ilhas têm grandes baldios para pastagens, onde o gado passa o ano, à sôlta, de verão e de inverno, sem abrigo: o pastor apenas procura as vacas para as mungir. Mal alimentadas, produzem leite de qualidade deficiente, desnatado em postos mal apetrechados e sem condições higiénicas: o soro é para os porcos, a nata segue para as fábricas. Os postos, por via de regra, pertencem a cooperativas de produtores, as fábricas a capitalistas. A manteiga e o queijo assim obtidos são de inferior qualidade e não tardará que os mercados consumidores, educados pela apresentação de melhores produtos (os do distrito de Aveiro), recusem os grosseiros lacticínios açoreanos. Isto é fatal se os angrenses não se acautelarem a tempo; mas, como de costume, a crise que vier a produzir-se será imputada ao Estado.

O distrito de Angra era particularmente beneficiado pela emigração para os Estados Unidos: as remessas dos emigrantes davam vida aos relativamente numerosos estabelecimentos de crédito de Angra e Vila da Praia, que não o reduzido comércio local. O estancamento da emigração e o desemprêgo nos Estados Unidos não só deminuíram muito as remessas como têm provocado o retôrno de fundos depositados e colocados cá, para ocorrer a precisões de lá.

Deve notar-se que neste distrito há pouca iniciativa. Na ilha de S. Jorge uma numerosa família foi contemplada com a herança de um parente morto na América, no montante de bastantes dezenas (mesmo até de centenas) de milhares de contos: êsse dinheiro não luziu na economia das ilhas.

Situação financeira – A situação financeira da Junta Geral é francamente má, formando contraste com a de Ponta Delgada: êsse é o grande problema do distrito.

As receitas que em 1928 passaram para a Junta são, de toda a maneira, insuficientes para cobrir as despesas postas a seu cargo.

É certo que havia pessoal de mais nos serviços : a responsabilidade do excesso de funcionários e da sua má qualidade pertence ao Estado, pois eram, seus os serviços que transitara m para a Junta .

Deve fazer-se justiça às comissões administrativas da Junta Geral que passaram de 1928 para cá: todas se esforçaram por reduzir quadros, simplificar serviços, suprimir lugares, e hoje o pessoal está quási reduzido ao indispensável.

A actual gerência do coronel Silva Leal tem sido dominada pela preocupação de economizar: mas o orçamento está incompressível, não se fazem obras públicas e a Junta não pode olhar pelas ilhas de S. Jorge e Graciosa.

Cessada em 1936 a compensação que o Estado concedia, nos termos do § 1. o do artigo 2. o do decreto n. o 15:805, começaram breve as dificuldades. O equilibrio entre a receita e a despesa obtém-se a custo e com sacrifício de necessidades essenciais.

Acresce a isto que a Junta tem usado e abusado do crédito: tinha desde 1927 uma conta corrente com a Caixa Económica da Santa Casa da Misericórdia, destinada a antecipações de receita (uma fonte de dívida flutuante a 6 ½ por cento, mais 1 por cento de comissão sôbre a importância do crédito aberto), e contraiu empréstimos, também em conta corrente caucionada (!), na Caixa Económica de Angra do Heroísmo e na Caixa Geral de Depósitos: no orçamento para 1938 está prevista a quantia de 691.469$70 de encargos da dívida (juros e amortização), mas há a deduzir 480 contos previstos em receita extraordinária para operações de tesouraria por movimentação da conta corrente da Caixa da Santa Casa.

Notar-se-á que no orçamento para 1938 a receita ordinária soma 3:631 contos e a despesa, que na deficiente técnica orçamental dos distritos autónomos hoje se chama obrigatória, soma 4:347 contos.

É preciso corrigir esta classific a ção de despesa. O orçamento das despesas distritais (em todos os distritos insulares) compreende despesas obrigatórias , despesas facultativas e despesas especiais . Pensa-se, à primeira vista, que a despesa obrigatória é a que não pode deixar de ser feita pelas Juntas; mas não. No orçamento inscrevem-se sob essa rubrica as despesas feitas para desempenho das atribuições legais das Juntas , e, assim, a da construção, reparação e conservação de estradas e aquisição de material para os serviços, grande ou pequena, é sempre obrigatória. Ora não é obrigatório construir estradas; a rêde de viação aumenta-se quando o dinheiro chega. Como não é obrigatório gastar em obras 2:000 contos em vez de 200. Por isso a idea que resulta das tabelas sinópticas das finanças distritais induz em êrro quanto aos encargos e disponibilidades das Juntas Gerais.

Quanto à despesa especial , é a que se faz com abonos ao Estado, recuperáveis pelo capítulo correspondente da receita especial .

Eis agora a distribuïção do total da despesa feita em 1937 (4:000 contos), em percentagem, pelos diversos serviços

Os demais serviços consomem percentagens inferiores.

É fácil de ver a viciosa distribuïção da despesa. Mas o pior é que quási tudo é gasto em pessoal, e mesmo a percentagem registada nas obras públicas não corresponde a uma atribuïção de receitas próprias da Junta a êsse serviço, pois que está incluída na despesa a importância do subsídio de 362 contos concedido pelo Estado para reparar os estragos causados por uma tromba de água. Não se fizeram em 1937 nenhumas construções ou obras nova s e as reparações foram todas custeadas por êsse subsídio do Estado.

A Junta Geral já cobra o adicional de 15 por cento sôbre as contribuïções gerais.

Qual o remédio para esta situação? Há dois caminhos:

1. o O de tirar serviços improdutivos à Junta, especialmente a polícia, deixando-lhe assim margem para indispensáveis obras;

2. o O de assegurar uma comparticipação constante do Estado na resolução dos problemas distritais.

Devo observar, porém, que esta segunda solução, à primeira vista mais sedutora, oferece os inconvenientes seguintes:

a) Para comparticipar tem a Junta Geral de dispor, por sua parte, de algum dinheiro, e hoje não dispõe ;

b) O processo d a comparticipação, tal como está organizado, nã o satisfaz: é lenta a resolução dos pedidos e a concessão chega fora da oportunidade da abertura dos trabalhos, pois nestas ilhas, há um período cíclico de desemprêgo quando cessa a ocupação nos campos, e que é preciso aproveitar para as obras públicas.

Portanto: para que a comparticipação seja eficaz faz-se mester que seja rápida e oportunamente concedida e que se dê à Junta maneira de a poder pedir sem ser à força de empréstimos.

Agricultura e pecuária – Estes serviços deixaram-me má impressão: os técnicos não se interessam suficientemente, pois o agrónomo administra propriedades particulares e preside à comissão reguladora dos trigos do arquipélago e o veterinário deixou-se embaraçar na vida de província.

Todavia há muitos problemas que requeriam acção devotada e intensa: aproveitamento dos baldios, povoamento florestal, melhoramento das culturas, introdução de métodos racionais de cultivo, assistência vitivinícola, lacticínios, melhoramentos das raças leiteiras.

Fora da ilha Terceira pouco se faz. Em S. Jorge começou-se o construção de um pôsto agro-pecuário, mas o edifício lá está vazio e desaproveitado. Os técnicos raramente vão às outras ilhas.

Além da falta de dinheiro há, neste pobre distrito, falta de gente ...

Obras públicas – Não há presentemente director nem outro engenheiro. Quem, a título de consultor , orienta os serviços é o director técnico da Junta Autónoma dos portos, que, como único engenheiro do d is trito, elabora projectos, os informa e dirige a sua execução.

Os quadros estão esqueléticos, mas, à falta de dinheiro, o serviço está inactivo. Os chefes de conservação são meros práticos (o de S. Jorge foi oficial de cavalaria até 1919, o da Graciosa é farmacêutico e entrou por ser adido) e na Direcção também não há ninguém capaz.

Entretanto, o distrito tem imenso para fazer. Só a Graciosa, onde quási não há desnivéis n em viação automóvel, tem estradas sofríveis; as de S. Jorge e da Terceira carecem de grande reparação, havendo a notar que nesta última ilha existem já várias carreiras de camionetas para passageiros, com o conseqüente desgaste dos pavimentos. Segundo me informaram, os técnicos avaliam em 4:000 contos o custo dessa grande reparação.

Está orçada para 1938 a despesa neste serviço em 674.926$29, mas desta quantia só 277 contos para obras (conservação e reparação), e conta-se no orçamento da receita com 212 contos de comparticipações do Estado.

Saúde pública – Tudo quanto disse a respeito da separação dos serviços de sanidade terrestre e marítima no distrito de Ponta Delgada cabe aqui dizê-lo com mais forte razão: um serviço especial marítimo para dois paquetes por mês, que chegam de portos vizinhos, de onde saíram na véspera, é mais que excessivo.

Já o decreto n. o 17:677, de 30 de Outubro de 1929, remodelou os serviços de sanidade marítima de Angra, passando a estação de saúde a 2. a classe; mas é preciso ir mais longe e adoptar a solução de um serviço de saúde único, com um só inspector, tanto mais que também aqui está vago o lugar de guarda-mor e o inspector de sanidade terrestre acumula presentemente, sem esfôrço, as funções dos dois cargos.

O estado sanitário do, distrito não é tam bom como em Ponta Delgada; a peste bubónica não desapareceu de todo, há ainda alguns casos, embora poucos, todos os anos. Tem de intensificar-se o combate ao rato e à miséria.

Existe um hospital da Misericórdia em Angra, outro em Santa Cruz da Graciosa e outro nas Velas, de S. Jorge. Só visitei êste último, instalado num velho e desconfortável convento. Recebeu um legado avultado aqui há anos com o qual o médico instalou um a boa sala de cirurgia e um serviço de radiologia.

Assistência – Como em Ponta Delgada, existe a Casa de Saúde de S. Rafael, a cargo dos irmãos de S. João de Deus, para loucos do sexo masculino, cujo internamento é pago pela Junta Geral. As loucas estão internadas num velho pardieiro, quási emparedadas.

A Irmandade de Nossa Senhora do Livramento sustenta duas casas de assistência infantil: o Asilo da Infância Desvalida, para raparigas, e o Orfanato Beato João Baptista Machado, para rapazes. A ambos falta muita cousa; mas são limpos, informados por bo m espírito e a sua própria pobreza é fiadora de que os educandos não serão deslocados do seu meio natural. Agradou-me a visita que lhes fiz. A Junta Geral dá-lhes subsídio irregularmente, conforme as suas posses, por orçamento suplementar. Vivem com muitas dificuldades e merecem auxílio.

Há em Angra uma instituição curiosa e única no País (e não sei se no mundo): a Caixa Económica de Angra do Heroísmo. Esta Caixa tem uns tantos accionistas responsáveis pelo capital, mas que de direito e de facto nada possuem no activo; os lucros de exercício são integralmente destinados às obras de beneficência do distrito. Existe desafogadamente há noventa e três anos e no ano de 1937 distribuía 97.000$, mas quando afluía mais dinheiro da América chegou a distribuir o dôbro e o triplo.

Polícia – Considero este problema um dos que mais urgentemente requerem a atenção do Governo. Em Angra do Heroísmo está (a dominar a própria cidade, no antigo castelo filipino) um depósito de deportados políticos, confiado apenas à guarda do batalhão de infantaria com sede aí. Esse batalhão está em quadros [ sic ] , e os soldados que o constituem são de inferior qualidade.

Ora na cidade os deportados que por lá andaram à sôlta em grande quantidade aqui há anos fizeram perigosa sementeira de ideas, e é quási certo que existem entendimentos entre elementos locais e os presos do forte. No dia do juramento de bandeira da Legião apareceram içadas bandeiras vermelhas e foram distribuídos manifestos comunistas.

E o que é a polícia de Angra? São trinta homens recrutados antes de 1926, na maioria incapazes de serviço activo, pesados, indiferentes, sem armas. Nenhuma confiança se pode ter neste corpo.

Torna-se indispensável reformá-lo, aumentá-lo, instruí-lo e armá-lo. À custa da Junta Geral? Ela despende hoje 220.000$ com polícia e já vimos que não pode gastar mais. Mas o problema de segurança geral não há-de deixar-se dependente da auto-suficiência do distrito.

O Estado tem de chamar a si as polícias dos distritos insulares. A Junta geral de Ponta Delgada poderia ficar a receber, a título de compensação, uma importância anual equivalente ao que hoje a polícia lhe custa. Nos outros distritos a verba disponível ficaria para o fomento, que hoje não lhes é possível.

Instrução – Há em Angra um liceu nacional instalado no antigo seminário, que, sem obedecer a todas as exigências modernas, satisfaz todavia perfeitamente para a pequena frequência que tem. Apenas precisa de um gimnásio e de um campo de jogos.

Para instalar a Escola Comercial e Industrial Madeira Pinto adquiriu o Estado recentemente um antigo palacete por concluir. Dado o preço, foi boa compra. Ao presente o ensino da Escola deixa a desejar, muito que se adapte há-de ser sempre uma escola deficiente. Ao presente o ensino da escola deixa a desejar, muito livresco e de mau teor. No novo palacete preparam-se algumas salas para instalar oficinas, mas creio que uma escola de artes e ofícios deve ter outro ambiente. O problema do ensino técnico profissional não está resolvido nas ilhas.

Pelo que respeita ao ensino primário, a situação pode considerar-se satisfatória: o distrito é dos que apresentam menor percentagem de analfabetos no País.

Conclusões – Do que fica exposto podem tirar-se as seguintes conclusões:

1. o Faltam administradores e técnicos no distrito de Angra;

2. o As receitas não chegam para dotar os serviços postos a cargo da Junta Geral e são absorvidas sobretudo pelos quadros dependentes do Estado;

3. o É necessário que o Estado chame a si a polícia;

4. o Com o que fica à Junta, desde que a polícia passe para o Estado, pode encarar-se a hipótese de uma comparticipação regular nas obras públicas urgentes e sua conservação.