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BOLETIM DO NCH
Nº 14, 2005

Açores e Madeira vistos por Marcelo Caetano em 1938
CARLOS ENES

 

Sumário

Summary

Introdução

Visão de Marcelo Caetano

Bibliografia

ANEXOS

Documento 1:
CARTA DE MARCELLO CAETANO AO MINISTRO DO INTERIOR

Documento 2

I - Distrito de Ponta Delgada

II - Distrito de Angra do Heroísmo

III - Distrito da Horta

IV - Distrito do Funchal

V - Considerações finais

Nota dos trabalhos realizados pela Junta Geral do distrito de Ponta Delgada...

V - Considerações finais

 

Para terminar, registarei ainda as minhas observações sôbre dois pontos que reputo de grande importância: as relações entre os técnicos e as Juntas Gerais Autónomas e a necessidade de inspecções administrativas.

Relações entre as Juntas Gerais e os seus técnicos – Reparei que nos distritos onde já existia a autonomia lavrava uma secreta hostilidade entre os serviços técnicos e as Juntas Gerais de que dependem, e isso mesmo quando os chefes de serviço e os vogais da Junta mantinham entre si as mais amistosas relações pessoais.

Conversei com todos os chefes de serviço e procurei averiguar da razão dêsse atrito. Em geral queixavam-se de excessiva intr om issão das Juntas nas suas atribuições, da instabilidade da orientação administrativa, por vezes impeditiva de uma acção profícua, e da deficiência de dotações orçamentais.

O desejo dos técnicos, em geral, era o de ficarem dependentes dos Ministérios, corresponderem-se com êles, receberem ordens dêles, combinarem com êles a acção a executar e, no fim, apresentar a conta às Juntas G erais com a autoridade do apoio governamental.

Examinando os queixumes, verifica-se que da insuficiência de dotações orçamentais se queixaram, queixam e hão-de queixar sempre todos os chefes de serviço, no continente, nas ilhas e nas colónias. Cada dirigente de um departamento pensa que os assunto s a seu cargo são os mais importantes e traça um largo plano de acção, desenvolvido à fôrça de generosas despesas; mas quem administra e tem a visão de conjunto é forçado sempre a reduzir a proporções mais modestas tam audaciosos projectos.

Não pode deixar de decidir da orientação dos serviços a entidade que os custeia, sob pena de se tornar uma pagadoria irresponsável. Combinar o agrónomo de Ponta Delgada com o Ministério da Agricultura a acção a desenvolver e apresentar a conta à Junta Geral seria muito cómodo, mas incontestavelmente injusto e errado.

A razão do atrito deve ser outra: deve estar em que a autoridade local é muito mais incómoda para os subordinados do que a autoridade longínqua da capital. A Junta sabe o que se faz e o que se não faz, entra nas repartições, fiscaliza, importuna, aflige o técnico; ao passo que o Ministério, distante, só daria notícias de si de quinze em quinze dias e deixaria ao chefe do serviço liberdade de movimentos.

Num ponto, porém, assiste razão aos técnicos: na sua queixa contra a instabilidade de orientação administrativa. O regime de comissões nomeadas em que têm estado os distritos autónomos provoca a mudança frequënte dos dirigentes e a constante modificação de critérios. Hoje vem um vogal que acha importantíssima a arborização, daqui a um ano vem outro que entende muito mais urgente a pecuária, para seis meses depois aparecer um terceiro a querer concentrar os esforços todos nas culturas arvenses ... Tive ocasião de verificar numerosos casos dêste género.

Como obviar a esta dificuldade, conciliando a conveniência da orientação pela Junta, com a necessidade de estabilidade dessa orientação?

A solução que proponho é a do plano trienal aprovado pela Presidência do Conselho e só modificável com igual assentimento. Os técnicos a quem a apresentei acolheram-na bem e os presidentes das Juntas Gerais também.

Necessidade de inspecção administrativa – Se há alguma certeza que eu tenha adquirido n o decorrer dos estudos sôbre a organização administrativa do País, a que nos últimos anos me tenho dedicado, é a da necessidade imperiosa e urgente da instituição de uma inspecção administrativa.

É certo que já existe uma excelente fiscalização à contabilidade e tesouraria, a cargo da Inspecção Geral de Finanças, mas a inspecção administrativa é cousa bem diferente, a exercer por outras pessoas e com processos diversos.

O inspector administrativo cura especialmente da gestão dos interêsses autárquicos e da aplicação das leis. Chega, informa-se directamente da marcha dos diversos serviços, do desempenho das atribuições legais, do critério e do tino com que são empregadas as receitas públicas, da forma como são atendidos os interêsses gerais, do entendimento e do respeito das leis.

Orienta os administradores, sugere medidas, uniformiza práticas, esclarece dúvidas, anima iniciativas, desperta energias, corrige defeitos, repara injustiças, ensina os funcionários, vê o que pode, ouve o que dizem, regista, estuda e informa.

É extraordinário que, tendo nós durante séculos possuído esta magistratura – dos corregedores – na nossa administração local, a tenhamos deixado desaparecer e a não restauremos.

E, todavia, repito que me parece indispensável. Não temos gente no País que saiba administrar, mas encontra-se muito quem esteja animado de boa vontade e desejo de aprender. É preciso ensinar, estimular essas boas vontades e orientá-las segundo certas normas uniformes e sensatas, não as deixar desfalecer no isolamento e no desinterêsse que a correspondência sêca, ronceira e quantas vezes incompreensiva das repartições centrais quási inevitàvelmente provoca.

Por outro lado, não se pode deixar a administração local ao sabor dos caprichos das pessoas investidas na direcção das autarquias. A falta de fiscalização pelas minorias nos cor p os administrativos ou pelas oposições políticas não foi ainda suprida eficazmente de outra maneira. Nem todas as irregularidades, vexames, violências e erros de administração se exprimem nas contas: apesar da vigilância assídua de Inspecção Geral de Finanças, muita cousa há que passa em claro, porque seria do domínio da inspecção administrativa.

De nada valerá fazerem-se novas leis se elas não forem vivificadas na acção – levadas pela palavra e pelo exemplo até ao( s) executores.

Penso, de resto, que em toda a administração local activa, mesmo a dependente do Estado, se deve cada vez mais substituir o grande número de agentes superiores fixos nas circunscrições por missões volantes que orientem e estimulem constantemente os outros, que podem então ser meros subalternos, componentes da rêde fixa. O funcionário técnico estabelecido breve dessora, afundado na burocracia e apoderado do torpor provinciano.

Nesta viagem que fiz às ilhas (e embora sempre acentuasse que não ia em inspecção) tive ocasião de ver a vantagem que haveria nas inspecções assíduas: pelo interêsse com que se me pedia conselho, pelo prazer com que me eram mostradas as realizações e pela boa vontade revelada em suprir as deficiências. E quantas verdades comezinhas andavam esquecidas! E quanta desorientação, às vezes provocada pelas próprias repartições centrais do Estado!

Muitas outras observações poderia ainda aqui registar. Mas reputo-as de menor interêsse e temo to rn ar fastidioso êste já longo relatório.

Terminarei, pois, registando a alegria e o reconhecimento com que em todos os distritos, mas especialmente nos Açôres, foi acolhida a iniciativa do Govêrno ao mandar alguém estudar no local as circunstancias particulares que aconselham remédio legislativo adequado.

Os ilhéus têm, como todos os portugueses separados do continente, a psicologia do isolamento. A primeira explicação que encontram para toda a demora na resolução dos seus casos é o desprêzo do Govêrno. A minha ida foi, para êles, uma prova de atenção, que lhes mereceu elogio e gratidão.

Fui pessoalmente distinguido com inexcedíveis provas de carinho que me renderam; elas dirigiam-se, porém, ao emissário do Govêrno do Estado Novo, e por isso aqui lhes faço referência, para não perderem a sua integral significação.

A impressão que o percurso de oito ilhas açoreanas e das duas do arquipélago madeirense me deixou foi a de que são fáceis de governar – quando as governem.

A V. Ex. a, Sr. Ministro, agradeço a confiança que em mim o Govêrno quis depositar ao confiar-me esta missão; não me desempenhei dela, certamente, como era mester, mas fiz tudo o que pude para cumprir o meu dever.

A bem da Nação.

Lisboa, 22 de Setembro de 19138 – Marcelo Caetano