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Versões do Feminismo na Amazônia brasileira: Orminda e Eneida nos contextos nacional e internacional MARIA LUZIA MIRANDA ÁLVARES |
Sumário |
Introdução |
3.2. O Sufragismo de Orminda Bastos |
Nesse contexto do sufragismo paraense, emerge a figura de Orminda Ribeiro Bastos, jornalista, professora de grego no Colégio Paes de Carvalho, militante espírita e advogada, atuante no Fórum de Belém. Transferiu-se para o Rio de Janeiro em 1925, fez parte da equipe dos advogados do jurista Evaristo de Moraes. Engaja-se ao movimento nacional, sendo uma das fundadoras da União Universitária Feminina, em 1929, associação considerada “filha direta da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino”. Tornou-se assessora jurídica dessa associação, cuja Presidente era Bertha Lutz. A atuação sufragista de Orminda Bastos, no Pará, até 1925, manteve-se diretamente ligada ao jornalismo, tribuna efetiva do feminismo e do anti-feminismo locais; e às conferências que realizava para debater o assunto. Em novembro de 1922, por exemplo, fez palestra na sede da União Espírita Paraense, para as associadas da Liga Cooperativa das Operárias de Fábrica. Em dois artigos para a "Folha do Norte", Orminda Bastos sustenta serenamente uma polêmica sobre a questão do sufragismo, sem deixar-se nivelar pelos despautérios dos seus detratores. No primeiro artigo, "O Voto Feminino no Brasil", publicado em 20 de novembro de 1922, quando os projetos de concessão do direito ao voto da mulher brasileira retornam ao debate, na Câmara Federal, a articulista define o feminismo em duas vertentes, o emancipacionismo e o sufragismo, considerando o primeiro procedente, nas razões que têm a mulher para pleiteá-lo, enquanto o segundo, que levará à concessão do direito do voto, ela considera um risco por ser uma idéia importada e caso não seja acompanhado da instrução e da educação feminina, será um desastre para a política da época. Veja-se esses dois pontos de sua discussão:
O feminismo, nessas bases, "afirma-se vitoriosamente como um princípio", diz Orminda Bastos, visto que não se trata mais em saber se este deve ou não ser admitido, pois ele resulta da prática da própria mulher em viver a suas condições históricas. As formas de mudança foram se fazendo à medida que a mulher confrontava-se com o seu cotidiano e, desses confrontos, foram descolados, gradualmente, das imagens construídas sobre o feminismo, algumas das suas mais fortes estigmatizações, como a fragilidade, a incapacidade intelectual, a dependência, entre outros. Ela cita como um dos motivos da "consagração das pretensões feministas" as transformações advindas com a guerra de 1914, para os europeus, e, para os brasileiros, as mudanças desencadeadas com a abolição da escravatura e a implantação do regime republicano. Quanto ao feminismo sufragista, por ser uma idéia importada, imposta de cima para baixo, cria entusiasmo de um lado, censura de outro, porque não houve aprofundamento de discussão. Impostas pela minoria, as idéias são aceitas, desgostando a maioria, alguns, entretanto, aceitando com medo de "parecer retrógrado e atrasado":
Fundamentando suas restrições ao voto feminino, nos moldes das discussões travadas, Orminda Bastos denuncia a ausência da instrução e da educação das mulheres, tema recorrente nesses questionamentos. Diz que, embora a mulher da zona urbana seja "mais ou menos esclarecida", há uma "formidável massa restante de fora do processo escolar". Quer dizer que, embora haja uma elite feminina esclarecida, mostrando-se à altura de ser cidadã, a grande massa restante não está preparada para assumir com isenção a moralidade eleitoral necessária à prática política. O motivo básico, diz ela, é a ausência de um nível de instrução e de educação à mulher brasileira, negando-se-lhe uma formação intelectual e integração cultural, visto que, seu preparo tem priorizado uma "destinação doméstica" para a qual, dizem não haver necessidade de grandes conhecimentos. Orminda vê a educação tradicional transmitida pela família brasileira em geral, repelindo como "ato vergonhoso", o trabalho externo da mulher, exigindo-se ao homem o provimento do lar. Para ela, esta condição isola a mulher, girando as suas aspirações em torno do casamento, instituição responsabilizada socialmente pela garantia material do gênero. Desta forma, diz, à mulher é exigida a direção do mundo doméstico. Fechando-se ao mundo de fora e dedicando-se a esse mundo privado, a mulher se isola intelectualmente, conservando uma mentalidade retrógrada de dois ou três séculos atrás, aceitando a condição de tutelada perpétua de fato, mas não de direito. Se algumas vezes foge às imagens que a vinculam aos deveres domésticos ou aos comportamentos e valores morais exigidos, estas regras configuram-se como liberdade e emancipação. Tanto a mulher frívola, quanto a recatada, diz Orminda Bastos, se assemelham, na deficiente e restrita educação recebida, deixando de importar-se por assuntos mais sérios. Desde a mulher pobre, quanto às da classe média e as da elite, priorizam as limitações de suas próprias condições históricas, despojadas de um maior discernimento intelectual, ou porque não lhes foram dadas as condições necessárias para absorvê-lo, ou porque o desprezaram por outras prioridades mundanas. Estas limitações dificultam um discernimento consciente e livre num processo eleitoral, diz a articulista. Assim, em sua opinião, para que haja viabilidade à concessão do voto feminino, primeiramente, é necessário dar educação e instrução à mulher, fatores de utilidade também ao traquejo feminino, no movimento externo, pois, através dele, a mulher despertaria para as coisas sérias e do interesse da coletividade. Orminda Bastos conclui dizendo que a concessão do voto feminino sem esse preparo básico e inicial, é "uma brincadeira de mau gosto". Recorrendo a alguns temas levantados pelos opositores ao sufragismo, a feminista não esconde, entretanto, a argumentação, em torno dos prováveis responsáveis pelo isolamento cultural e intelectual da mulher. A acusação maior à família brasileira, confronta, entretanto, outras responsabilidades da própria mulher de todas as classes sociais existentes, que se deixam acomodar às imposições do costume tradicionalista, renegando outras condições da identidade feminina para firmar-se numa única, a sua "natureza" doméstica. Este artigo de Orminda Bastos, publicado em 1922, início da organização e sistematização da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e da formação de núcleos sufragistas, em quase todos os Estados brasileiros (ALVES, 1980; HAHNER, 1981), fortaleceu um debate mais expressivo, em torno da questão, sem, entretanto, estimular a criação, naquele momento, de um núcleo organizado de atividades feministas, no Pará. Considera-se, então, este momento, o marco inicial do movimento sufragista do Pará. Muito embora a questão já se mantivesse presente, na preocupação dos articulistas e jornalistas, desde a década de 1910, é a partir deste momento que os anti-feministas (não somente os anti-sufragistas), sentir-se-ão ameaçados nos seus postos políticos. Isto pode ser constatado através da leitura cronológica das notícias e dos artigos publicados, na imprensa, analisados por ÁLVARES (1990). Alguns dias após a publicação do texto de Orminda Bastos, o jornalista do jornal “Folha do Norte” , Carlos B. de Souza, aproveita a oportunidade das restrições feitas por uma mulher ao voto feminino para reafirmar sua posição anti-sufragista:
O artigo de Carlos B. de Souza é longo, pleno de exemplificações expressando os motivos da "necessária exclusão" da mulher da condição de cidadã. Os termos empregados pelo jornalista, ao referir-se a uma provável concessão do direito do voto feminino, tendem a demonstrar o nível de ameaça do novo papel da mulher, daí porque considera necessária a transcrição do texto de Orminda Bastos "em todas as capitais do país", devendo transformar-se num "grito de alarme", um "protesto escrito" contra o "mal ameaçador", contra a "epidemia", contra o "presente extravagante" que teimam em dar à mulher. Em outros parágrafos desse texto, delineia-se o real motivo do medo masculino à ameaça sufragista: a ausência da "empregada doméstica" do "santo tabernáculo" do lar. O confronto entre os elogios à figura feminina, "rainha da meiguice", "soberana do amor", e os atributos de identificação da futura "eleitora", de "parcos conhecimentos intelectuais", "função incompatível com o seu sexo", "rainha destronada", parecem não corresponder a uma mesma pessoa. Isto demonstra a convicção das acusações de Orminda Bastos que, aliás, não foram tangenciadas pelo jornalista, contra a educação patriarcal a que era submetida a mulher de todas as classes sociais, pela família tradicional brasileira, o que corresponde a um vício cultural impregne, de condicionar o sexo à sua bio-fisiologia, transformando estas condições, num fator cultural contraído pela dependência afetiva. O que o jornalista está apontando na acusação à "eleitora", é a ausência de uma "empregada doméstica" responsável por todo o serviço caseiro e pela vigilância aos filhos. Percebe-se que a sua visão é parcial, demonstrando-se através da exclusão do marido e do pai da educação dos filhos e dos afazeres domésticos, detalhe invisibilizado pela naturalização dos papéis masculinos e femininos da época. No outro texto de Orminda Bastos, "A Emancipação da Mulher", publicado em agosto de 1923, na Folha do Norte, as suas idéias feministas, prosseguiram, fortalecendo uma imagem tradicional passada secularmente, sem levar às generalizações, mas identificada através das classes sociais a que esta mulher pertencia. Seu ponto de vista, em relação ao direito eleitoral feminino, não se desvinculara de sua concepção anterior referente ao estímulo das condições intelectuais necessárias ao discernimento da mulher quanto ao processo eleitoral. Esta preocupação da feminista tem procedência, se levarmos em conta o momento de desgaste moral do sufrágio, através da deformação das práticas eleitorais sentidas desde os primórdios da implantação do regime republicano no país. Os pontos levantados, no artigo de Orminda Bastos (2), são basicamente, o conceito de emancipação feminina, a prática desta emancipação e os fatores que concorrem para atingi-la, como a educação/instrução, o trabalho e a emancipação política. Sobre o conceito de emancipação feminina, diz Orminda Bastos que é o direito que tem a mulher de "colaborar com o homem, na vida social, em igualdade de direitos e deveres". Esta emancipação não pretende a superioridade feminina nem o retorno ao desequilíbrio existente, pois é este que se exige correções. A emancipação, diz, é o resultado do despojamento da dependência da mulher ao homem, através do trabalho, sem que esta, entretanto, perca a "docilidade". Diz que a independência econômica é o primeiro pressuposto da liberdade de ação e das idéias dos indivíduos. Orminda vê a participação das mulheres nos encargos materiais de subsistência do lar, como um aspecto da igualdade dos direitos femininos. Nas classes média e alta, diz a articulista, as mulheres deixam aos cuidados do homem a manutenção da sobrevivência, sendo esse encargo, "sacrifício resignado", que ele assume, mesmo com a perda de sua supremacia de chefe de família. Na classe operária, a igualdade de salários é mais uma situação criada na igualdade de direitos, pois vê o desnivelamento das condições de trabalho e dos salários, entre os dois gêneros. Neste caso, ela vê uma dupla situação: ao mesmo tempo em que avilta o trabalho da mulher, desvaloriza o trabalho do homem, pela "concorrência inconsciente, mas esmagadora". Sobre o sufragismo, sua opinião conserva-se a mesma: é favorável ao voto qualificado, ou seja, o direito do voto não deve ser recusado à mulher, mas deve ser exercido por quem tem instrução e capacidade de discernimento das condições políticas e da questão pública. Ela é favorável a que a emancipação civil deva preceder a emancipação política. A reação à posição feminista de Orminda Bastos, veio através do texto do jornalista Cezar Pinheiro (3) "A Emancipação da Mulher". Alguns pontos desse artigo são esclarecedores de uma postura generalizada anti-sufragista:
São pontos de temática recorrente. Ao mesmo tempo em que visam reforçar as qualidades "naturais" atribuídas à mulher, constróem óbices à emancipação, utilizando estigmatizações sobre esses mesmos atributos. Pelo que se observa, a reação ao sufragismo nos artigos de Cezar Pinheiro e Carlos B. de Sousa, a perspectiva de conquistas emancipacionistas é ameaçadora, podendo comprometer os novos rumos das funções masculinas. O apelo à fragilidade orgânica e emocional da mulher, à sua responsabilidade na "derruição" da base da sociedade pela quebra das funções materno/maritais, são exemplos da preocupação masculina diante das ameaças de "invasão" feminina ao espaço público da esfera política. Por que tanto medo? O que representaria naquele momento a presença da mulher, nos espaços eleitorais, como eleitora? O que significaria a recusa em aceitá-la como igual, politicamente? Das duas, uma: ou a política partidária representava a única forma de resistência de poder que garantiria ao homem a permanência, num recorrente discurso de desigualdade em relação à mulher, ou a "ameaça emancipacionista" representava ameaça à inversão dos papéis. A "derruição" social derivaria da forma redistributiva dos encargos considerados "menos pesados" do que os da política, quando na verdade, o "fragilismo orgânico e psíquico" feminino eram mera invenção, para que os homens fugissem desses encargos muito mais pesados do que os seus. É de supor que os dois mecanismos estejam na base do discurso patriarcalista e anti-emancipacionista daquele momento. Mesmo porque, há registro de que a imprensa usou de outros artifícios para obstaculizar o avanço do ideário feminista, entre as paraenses da década de 1920 (Cf. ÁLVARES, 1990). Orminda Bastos é, sem dúvida, a liderança pioneira do sufragismo paraense da década de 1920. Sua figura mantém um nível equilibrado no debate jornalístico, apresentando suas próprias dúvidas sobre a concessão irrestrita do voto à mulher e à filiação do movimento brasileiro ao movimento norte-americano. Sua preocupação, subjacente nos textos já analisados refere à essencialidade da realidade histórica brasileira, em dissonância com a norte-americana. Seu compromisso é claro, com um maior instigamento ao interesse cultural que deveria pautar a percepção da mulher às suas condições de desigualdade com o sexo oposto. A “anarquia social” vivenciada pelo sistema político brasileiro e o “mau caminho” que tomaria o voto feminino, nessas condições, preocupam Orminda. Em 1925, essa jornalista deixa o Pará, embarcando para o Rio de Janeiro, tornando-se advogada auxiliar, no escritório de Evaristo de Moraes. Juntamente com outras profissionais liberais, criou em 1929, a União Universitária Feminina, grupo que representava uma forma de “lobby” aos interesses das sufragistas. No Rio de Janeiro, passou a integrar a equipe jurídica da Federação, contribuindo substancialmente, com os projetos da entidade, debatidos internacionalmente através da Associação Feminina Pan-Americana e defendidos por Bertha Lutz, nos diversos congressos e conferências realizados. Orminda Bastos foi responsável pela redação final das reivindicações da mulher brasileira incluídas, no Ante-Projeto da Constituição de 1934. A imprensa paraense acompanhava os passos de Orminda Bastos, registrando-lhe a ascensão profissional e de militante feminista. |
(1) O Voto Feminino no Brasil. A Província do Pará, Belém, 24 nov. 1992, p. 1. (2) Esse artigo é uma palestra que a jornalista fez às operárias em agosto de 1923, quase um ano depois do primeiro artigo. (3) Folha do Norte, Belém, 11 de set., 1923, p.2. |