Existem, bastante ignorados entre nós, alguns projectos de peças de teatro da autoria de Baudelaire cujas datas de realização foram situadas entre 1843 e 1854-61 (1). Três desses projectos têm títulos mais ou menos definidos como «La fin de D. Juan», «L’Ivrogne» e «Le marquis du 1er Housards» (2) e são planos de extensão variável; outro projecto, o primeiro conhecido (1843), teria provavelmente o título de «Ideolus» (3) é o mais completo (2 actos, 22 páginas) e resultou de uma escrita em colaboração entre o jovem Baudelaire, então com vinte e dois anos, e o poeta Ernest Prarond; outros ainda são somente títulos (Falkland, Les Vierges Sages et les Vierges Folles, Le Club des Cocus, Un Drame sur les Bohémiens, etc.) ou são meras anotações de ideias do género “Une pièce à femmes”, “Le catholique dandy”, “Revers de Tartufe”, “etc.) (4).
Como assinalam os exegetas, com Rolland Barthes em lugar de destaque discutindo estes projectos do ponto de vista, semiológico, da “teatralidade”, talvez com a excepção de «L’Ivrogne» -- cujo esboço, desenvolvido em anotações numa carta ao actor Hippolyte Tisserant (1854), parece indicar a ligação íntima ao poema homónimo na sua primeira parte (5) --, em nenhum destes projectos teatrais se reconheceria o poeta de Les Fleurs du Mal. O que se poderá reconhecer, porém, será a existência de uma outra teatralidade patente na obra do poeta que foi, aliás, o primeiro crítico a analisar a teatralidade inerente à vida urbana como uma forma de modernidade e um dos artistas que ousaram transportar a arte para a vida através da construção da persona do dandy.
Mas é como crítico que a intuição teatral do poeta amplamente se revela, quer ao analisar as ideias estéticas de Wagner quer ao divagar premonitoriamente sobre um teatro artificial em Mon coeur mis a nu onde encontramos uma visão que será, aliás, recuperada, no final do século, por Alfred Jarry (no seu manifesto “Da Inutilidade do Teatro no Teatro” de 1896 e “Doze Argumentos de Teatro, de 1897, onde se refere à personagem de Hamlet como “uma abstracção que anda”) (6) e concretizada, plasticamente, pelas “máscaras” de Edward Gordon Craig. Diz Baudelaire:
Cependant, je ne nie pas absolument la valeur de la littérature dramatique. Seulement, je voudrais que les comédiens fussent montés sur des patins três hauts, portassent des masques plus expressifs que le visage humain, et parlassent à travers des portevoix; enfins que les rôles de femmes fussent joués par des hommes. (cit. in Pichois, p. 1441)
Como reiterou recentemente (2000) o ensaísta galego Xesús González Gómez da Universidade da Coruña, seguindo de perto a análise de Barthes, o problema do projecto de teatro de Baudelaire terá sido que o poeta
não tomou o teatro a sério. Os seus «projectos» são a outra cara da sua obra. Ou melhor, como disse Barthes, podemos afirmar que possuía o agudo sentido da teatralidade mais perturbadora e mais secreta, aquela que situa o actor – digamos, a personagem que está em cima do palco – no centro do prodígio teatral e que constitui o teatro como o centro de uma incarnação em que o corpo é duplo: corpo vivo procedente de uma natureza trivial e corpo enfático, solene, gelado pela sua função de objecto artificial. . . .Este “agudo sentido” não aparece nos seus projectos: reflecte-se na sua obra poética, sobretudo em Le spleen de Paris (Pequenos Poemas em Prosa), onde cada poema é como o quadro de uma representação teatral. (p. 47; tradução e sublinhado meus)
Acrescenta Barthes, na sua análise, referindo-se especificamente ao que considera, muito epocal e estruturalisticamente (1954), aliás, como traços do “malogro” teatral do poeta:
Tempos e lugares, sempre que são indicados, demonstram o mesmo horror do teatro, pelo menos do teatro tal como se podia imaginar no tempo de Baudelaire: o acto e a cena são unidades com que Baudelaire se embaraça imediatamente, que ele ultrapassa incessantemente e cuja dominação remete sempre para mais tarde; umas vezes sente que o acto é demasiado curto, outras vezes, demasiado longo; ora (“Marquis du 1er Housards”, acto III) introduz um retrocesso que, hoje, só o cinema poderia realizar; ora (“ La Fin de Don Juan”) o lugar é ambulante, passagem insensível da cidade para o campo, como no teatro abstracto ( Faust [de Goethe]); de um modo geral, no seu próprio germe, esse teatro explode, muda, como um elemento químico mal fixado, divide-se em «quadros» (no sentido pictórico do termo) ou em narrativas. Acontece que, contrariamente a qualquer homem de teatro verdadeiro, Baudelaire imagina uma história completamente narrada, em vez de partir da cena; geneticamente, o teatro não passa nunca de concreção ulterior de uma ficção em torno de um dado inicial, que é sempre de ordem gestual (liturgia em Esquilo, esquemas de actores em Molière): aqui, o teatro é manifestamente pensado como uma metamorfose meramente formal, imposta fora de tempo a um princípio criador de ordem simbólica (“Marquis du 1er Housards”) ou existencial (“L’Ivrogne”). (pp. 62-63; sublinhado meu)
Embora não seja meu objectivo analisar, nesta Comunicação, o conteúdo formal dos projectos teatrais baudelairianos, avaliando, do mesmo passo, a “ideia de teatro” construída neles pelo jovem poeta, não posso, no entanto, deixar de assinalar que, mesmo nestes projectos, poderemos encontrar «intuições» geniais do poeta relativamente a um «teatro de futuro». Se nos ativermos, aqui, aos aspectos criticados por Roland Barthes, detectaremos traços de uma preciosa modernidade teatral por detrás das inconclusas idealizações teatrais do poeta, sendo um desses traços, e o mais evidente, justamente, a “imaginação narrativa” que será a base do célebre e relevante «teatro épico», contestação do teatro dramático aristotélico-burguês levada a cabo, no século XX, em tempo de guerra e revolução, na Alemanha, por Piscator e Brecht nas primeiras décadas do século XX, na sequência de uma mais seminal reconfiguração do teatro como a que é levada a efeito por Meyerhold e outros no quadro da Revolução de Outubro na Rússia.
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