NICOLAU SAIÃO
RAPSÓDIA LATINA (2)

Tempos atrás - recordarão talvez os leitores de muito boa memória - foram aqui saídas umas traduções a que me abalancei a partir de autores de língua espanhola.

Insistindo através dos tempos, nas minhas horas, perpetrei algumas outras de autores do espaço francófono, o que deu o bloquinho que ora aqui se deixa na língua da “doce França”, como dizia no meu velho e saudoso livro dos tempos liceais...

RAPSÓDIA LATINA (1)

INDEX

Léopold S. Senghor - Para uma jovem negra de calcanhar róseo

Philip Dennis - Sobre a vidraça coberta de névoa, quantas vezes

Philip Dennis - O vento sopra até junto desta palavra que as linhas

Céline Arnauld - Os meus três pecados Dadá

Benjamin Péret - Tempo diferente

Benjamin Péret - A doença imaginária

Magloire Saint-Aude - Reflexos

André Breton - Poema

Tristan Tzara - A primeira aventura celeste do Senhor Antypirine (fragmento)

Vicente Huidobro - A tempestade

Magloire Saint-Aude
Reflexos

Atado, franzino, o mofo do nada

na minha gravata de cavalo

flácido como o desconhecido e sobre os caminhos.

 

Lamentações nos escarros dos mortos.

 

A negligente franquia paga para falar

fora das minhas ancas

como um alazão árabe.

O êxtase o luto a luxúria

na gordura dos repiques dos estertores.

 

No calafrio das rendas, ó minha bela emoção

- frio de lâmpadas frias.

 

Doce e gelada a rua da Madalena

hortelã-pimenta de extintos lumes.

 

Eu saio dos liames do meu sol invulgar.

Serei eu o intérprete dos séculos

a escultura dos ventos dos centauros?

 

Desço, desenraizado repetido

num cabelo antecedido p’los meus dedos.

 

E como a suavidade da carícia

para onde vai, ó paz, o meu coração?

 

No galope dos mudos zeladores

dobro-os congelo-os

- castos de vida

nos faróis recortados.

 

Amargo é quem nasce para os elogios

e a vós deseja, espíritos

enclausurados e marmóreos

 

Pois este é o poema do prisioneiro

o tilintar dos sóis rememorados

 

E as matracas enterradas

no coração do peregrino.

 

Eis o meu sudário sem coroa

na vaidade deste baile

nos saltos de Antinéa

enluvada por este ideal.

 

A estrela do mendigo ouve

ouve o respirar vazio

da minha morte

da minha angustiada estupefacta

escrita

este meu lenço rendilhado de cambraia.

 

Retorcidos nos meus olhos apagados

a caneta e o poema que não atende a causas.

 

Limitado à desgraça sem repouso

Edith é a minha própria face lívida.

 

Mas meus olhos sempre os retiro

do enterro dos olhos ressuscitados…

in “Poèmes”

(Esta tradução, a primeira em língua portuguesa, foi feita a partir dos fragmentos poéticos encontrados na OPUS INTERNATIONAL nº 19/20. O volume inteiro deste autor haitiano teve recentemente a sua republicação em França, com chancela da Gallimard.)

Nicolau Saião. Nascido em 1946 em Monforte do Alentejo (Portalegre). Poeta, pintor, publicista e actor/declamador. Tem colaboração diversa em revistas e publicações como "águas furtadas", "DiVersos", "Bíblia", "Bicicleta", "Elvas-Caia", "Abril em Maio", "Saudade", "365", "Os arquivos de Renato Suttana", "Imagoluce", "Judo e Poesia", “Colédoco”... Autor de "Os objectos inquietantes", "Flauta de Pan", "Os olhares perdidos" (poesia),"Passagem de nível" (teatro), "Os labirintos do real - relance sobre a literatura policial" . É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Até se aposentar recentemente, foi o responsável pelo "Centro de Estudos José Régio"(CMP). Vive em Portalegre.