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MARCO AQUEIVA::::..........: |
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VALISES
A modelo, a valise e o pintor
Pego I e Pego II
Da religiosidade
Uma valise entre o mortal e o
herói olímpico
Uma valise para Lourenço
Diaféria
Macabéa mal cabe na valise?
Valise do eterno marear |
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Pego |
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i |
Guardei a escova e o creme dental. A mão deteve-se em algo pegajoso. Mas
como
catupiry
lá dentro?!!
Germes florescem sem que percebamos. Já os vejo deserdando minhas mãos
da limpeza. Já os vejo alastrando poderosos a chaga que não pode jamais
fechar. Já os sinto absorverem-me o sangue e as forças. O sofrimento
iminente pede cautela.
Como,
como
não me deixar contagiar pelo avanço, avanço de uns restos de
catupiry
sobre
os dedos? Abro a valise e retiro a escova, o creme e o fio dental,
linha 10 corrente, correria de crianças e um olhar melancólico atrás da
vidraça, o pente, a mão retraída do menino mínimo por sua timidez, o
espelho, o jardim que se ri da menina, o lenço de papel, o sonho que se
dispersa ao vento, uns cacos de sombra, um temor de obscura notícia, uma
agenda de telefone, uma gravura que só então rememorei em sonho…
A
água cristalina entre meus dedos não adivinha o sangue negro e
espesso que jorra pegajoso do interior da valise. |
ii |
Lavou
as mãos e os olhos e perguntava-se. As palavras mal jorravam da valise
dispersando-se do sangue negro e espesso e o escrivão, outro que
também teimava ignorar por completo, prosseguia imune ao dia branco,
alusivo ao refluir da vida em dias seguidos de paixão extrema,
registrando friamente a ação sem estremecimentos. Quase não flui mais a forma
como antigamente fui. Sob o salmo de louvor, os véus da iniqüidade.
Quantas vezes a vida em rotação. O tempo desenganado. Com
frieza derrubou o sujeitinho e abaixou-lhe até o joelho a calça.
Distraiu-se por um momento com o baixo-relevo minúsculo na valise.
Aparição ou delírio, aproximou-se. Corcunda ou ancião com um saco às
costas? A desproporção era enorme entre a valise e seu possuidor. Um
amplo saco e um calvário extraordinário. A vida é um
corredor percorrido com leveza por poderosos e retorcimento por
fantasmas. O labirinto interior saúda o condenado que ignora seu
destino. Sustentou o olhar do outro, e o que é de humano nos olhos
esgarçava-se por completo. Desceu-lhe nova pancada. Do silêncio nenhuma
cor sem refúgio. Não sairá da vida mais que uma breve sombra comovida e
hostil. Além da mudez, tudo poderia ser reinventado. Desde menino sabia
que bastava lavar bem as mãos para lanchar ou fazer a lição. |
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Marco Aqueiva, poeta, autor de Neste embrulho de nós (Scortecci, 2005), vencedor do III Prêmio Literário Livraria Asabeça, é professor de literaturas brasileira e portuguesa no ensino superior. É o idealizador, editor e administrador do Projeto Valise 2008 no endereço http://aqueiva.wordpress.com/ |
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